Angela Davis: A Tradição Radical Negra, por Ruben Rosenthal

Teóricos, ativistas e mulheres negras tiveram papel essencial em consolidar a Tradição Radical Negra. Críticas ao capitalismo racial são fundamentadas na associação de ideias e práticas políticas originadas na história dos povos negros

Ativista pelos direitos civis há mais de 50 anos – Rio de janeiro, 2019 | Foto: Maurício Scerni

do Chacoalhando 

Angela Davis: A Tradição Radical Negra

por Ruben Rosenthal*

O texto a seguir foi extraído de entrevista de Angela Davis1, publicada originalmente em Futures of Black Radicalism, 2017, Londres: Versobooks, ed. Gaye Thereza Johnson e Alex Lubin. A tradução em português2 (de Portugal) da entrevista completa, na qual este artigo se baseou, foi editada e formatada, para publicação em três partes. Foram incluídos adendos explicativos, com o intuito de introduzir os leitores (não familiarizados), no universo do ativismo negro norte-americano.

Na entrevista, Angela cita por diversas vezes a Cedric Robinson (1940-2016), que chefiou o Department of Black Studies e o Departmento de Ciência Política, da Universidade da Califórnia, além de ter atuado como diretor do Center for Black Studies Research. Ela salienta que, “desde a primeira leitura de Black Marxism, The Making of the Black Radical Tradition, sentiu afinidade com a abordagem de Cedric”.

Neste seu primeiro livro, publicado em 1983, Cedric Robinson demonstra que a teoria marxista é insuficiente e inapropriada para explicar a história de resistência dos negros. “As teorias marxistas, ao valorizarem a experiência e as referências históricas europeias, não reconhecem a importância das comunidades negras como agentes de mudança e de resistência contra a opressão”.

Para o escritor e professor, o radicalismo dos negros deve ter vínculos com as tradições africanas e a experiência dos negros fora do continente africano, em particular, em países no Ocidente, para onde foram levados como escravos, ou submetidos a formas diversas de opressão.

Black Marxism Cedric Robinson

Importantes pensadores negros radicais do século 20, como William Du Bois, Cyrill James, e Richard Wright, foram influenciados tanto pela emergência do marxismo na Europa, como pela resistência dos negros à opressão. Em Black Marxism, Robinson desenvolveu uma importante genealogia (do racismo)3, que girou em torno do trabalho destes três autores, conforme lembra Angela.

No início da entrevista, a ativista, feminista e acadêmica, foi questionada pelos editores Johnson e Lubin, sobre a interação de seus estudos com a Tradição Radical Negra, seja se inspirando nela, ou mesmo avançando com esta tradição. Estes estudos tratam da abolição das prisões (que ela chama de “complexo prisional-industrial”), feminismo negro, blues e cultura popular, e do internacionalismo negro, com foco na Palestina.

AD recorreu ao exemplo de Cedric Robinson, para mostrar a herança deixada por ele, ainda em vida, para as novas gerações de acadêmicos e ativistas, que começaram a assumir sua noção de Tradição Radical Negra.  “Cedric nos desafiou a pensar o papel dos teóricos e ativistas radicais negros, na criação de histórias sociais e culturais, que nos inspirem a ligar as nossas idéias e as nossas práticas políticas, à críticas profundas ao capitalismo racial4”.

AD também chamou a atenção para o papel central das mulheres em forjar uma Tradição Radical Negra, citando o trabalho H L T Quan, professora, cientista política e documentarista. Segundo assinalou Quan, ao avaliar a integralidade do trabalho de Cedric, incluindo Black Movements in America Antropologhy of Marxism, “toda a resistência, com efeito, se manifesta no gênero e se manifesta como gênero. O gênero é de fato, tanto uma linguagem da opressão, como de resistência”.

A entrevistada reconhece que aprendeu muito com Cedric Robinson sobre os usos da história: “as formas de teorizar a história, ou permitir que ela se teorize, são cruciais para o nosso entendimento do presente, e para a nossa capacidade de, coletivamente, encararmos um futuro mais habitável. Cedric argumentou que as suas notáveis escavações da história emanam do estabelecimento de objetivos políticos no presente”.

AD acrescenta: “O meu primeiro artigo publicado, escrito quando estava na prisão5, e que se centrou nas mulheres negras e na escravatura, era, na verdade, um esforço para refutar o discurso prejudicial, cada vez mais popular, focado no matriarcado negro6. Este discurso estava representado nos relatórios oficiais do governo, assim como pelas idéias masculinistas7 generalizadas, como a necessidade de hierarquias de liderança baseadas no gênero, concebidas para garantir a dominância masculina negra. Estas idéias já circulavam no movimento negro no final dos anos 1960 e no início dos anos 1970”.

E prosseguindo: “Apesar de não ser esta, a forma como eu pensava o meu trabalho na época, certamente que hoje não hesitaria em relacionar esta pesquisa com o esforço de tornar mais visível, uma tradição radical feminista negra”.

Angela Davis 2

A nova formação de um campo científico – estudos prisionais, com uma visão explicitamente abolicionista – situa-se dentro da Tradição Radical Negra. Segundo Angela, isto decorre “tanto pela relação genealógica com o período da história dos EUA a que nos referimos como Reconstrução Radical8, como, naturalmente, pela relação com o trabalho de Du Bois, e com o feminismo negro histórico”. O trabalho de Sarah Haley, Kelly Lytle Henandez, e de uma empolgante nova geração de investigadores, ao ligarem suas pesquisas aos princípios ativistas, ajudam a revitalizar esta Tradição.

AD: “A cada geração de ativismo antirracista, ao que parece, o nacionalismo negro limitado volta, como uma fênix, para reivindicar a fidelidade dos nossos movimentos. O trabalho do Cedric foi, em parte, inspirado pelo seu desejo de responder às limitações do nacionalismo negro dos tempos da sua (e da minha) juventude. Evidentemente, é extremamente frustrante testemunhar o ressurgimento de tipos de nacionalismo, que são, não apenas contraproducentes, como contrariam o que deveria ser o nosso objetivo: o florescimento negro e, como tal, humano”.

Angela Davis considera empolgante presenciar como as novas formações juvenis – Black Lives Matter, BYP100, The Dream Defenders – estão ajudando a moldar um novo internacionalismo feminista negro, que destaca o valor das teorias e práticas queer9.

Será visto no próximo artigo, na continuidade da entrevista, o pensamento de AD sobre o grupo ativista internacional Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), fundado em 2013, com origem na comunidade afro-americana, e que luta contra a violência e o racismo sistêmico contra os povos negros no mundo.

Notas do autor:

Além das explicações no início do artigo sobre o trabalho de Cedric Robinson, as notas a seguir se propõem a auxiliar o leitor no entendimento do pensamento de Angela Davis.

1 Angela Yvonne Davis (1944-), ativista política norte-americana, acadêmica, e autora de diversos livros. Professora emérita da Universidade da Califórnia.

2 Tradução de Andréa Peniche e Paula Sequeiros, Rede Anti Capitalista.

3 Black Marxism procura rastrear a “genealogia do racismo”, mostrando seu surgimento, mutações, bem como consequências ideológicas e sociais. Na página 66 do livro: “O racismo, como se tentou demonstrar, se estendeu profundamente nas entranhas da cultura ocidental……A compreensão da configuração particular da ideologia racista e da cultura ocidental precisa ser revisada historicamente, através de sucessivas épocas de dominação violenta e de extração social, que afetaram diretamente aos povos europeus durante a maior parte dos milênios.

O racismo se insinuava não apenas nas estruturas sociais, nas formas de propriedade e modos de produção medievais, feudais e capitalistas, mas, também, nos mesmos valores e tradições de consciência, através dos quais os povos destas épocas chegaram a compreender seus mundos e suas experiências”.

4 O capitalismo racial: o racismo já permeava a sociedade feudal ocidental, onde irlandeses, judeus, ciganos e eslavos já eram vítimas do colonialismo, privações e escravidão na Europa. Com base no trabalho de outro intelectual radical negro, Oliver Cox, Robinson questionou a ideia marxista de que o capitalismo representou uma negação revolucionária do feudalismo.

Ao invés, o capitalismo emergiu de dentro de uma ordem feudal na civilização ocidental já permeada com o racismo. Assim, capitalismo e racismo não representam rompimentos da antiga ordem, mas uma evolução, para produzir um sistema moderno de “capitalismo racial”, dependente da escravidão, violência, imperialismo e genocídio.

5 No início da década de 70, Angela Davis foi procurada pelo FBI, e encarcerada por 18 meses, por ter comprado armas que foram utilizadas na invasão de um tribunal, quando ocorreram quatro mortes. Em 1972 ela foi absolvida das acusações.

6 Embora o “matriarcado negro” seja um mito, contém alguns elementos de verdade, pois as mulheres negras não assumiram posições passivas perante a história. No entanto, uma visão completamente deformada é de que a comunidade negra é assentada em bases matriarcais, e de que isto resultou na “castração psicológica” do homem negro, e trouxe resultados negativos, como baixa educação, desordens de personalidade, delinquência juvenil.

A solução dos problemas (para os masculinistas) seria reorganizar a sociedade negra em linhas patriarcais, para resolver o problema da dominação pela mulher negra (The Myth of Black Matriarchy, R. Staples, The Black Scholar, vol. 12, n.6, nov./dez. 1981, pp. 26-34).

Se por um lado o feminismo busca eliminar a discriminação que produz desigualdades, o “masculinismo” abraça a noção de que os homens são mais poderosos que as mulheres, e que devem ter a autoridade. Acadêmicos com visão orientada para o gênero tornaram visível o papel fundamental desempenhado por líderes e ativistas femininas do movimento negro, previamente não reconhecidas.

Os princípios masculinistas inspiram uma identidade coletiva poderosa que enfatiza força, dignidade e orgulho, mas, frequentemente, incentiva violência, e tende a obscurecer os temas profundos de raça e desigualdade de classe, que estavam no núcleo da luta original (I Am a Man!: Race, Manhood, and the Civil Rights Movement, Steve Estes, University of North Caroline Press, 2005)

8 A reconstrução radical (1867-1876):  Após o assassinato do presidente Abraham Lincoln, em 1865, coube ao democrata sulista Andrew Johnson, no governo dos Estados Unidos, levar adiante um projeto de Reconstrução nacional que revelava frágil compromisso com os direitos civis dos negros. Em geral, foi reconhecido o acesso dos negros aos tribunais e o direito de possuir propriedades. Por outro lado, foram estipuladas multas e penas de prisão para negros que fossem considerados vadios, dentre outras proibições.

Nas primeiras décadas do século XX, historiadores negros lideraram os estudos revisionistas sobre a Reconstrução, desafiando esta visão tradicional do período como “era trágica”. Em 1935, o estudo do ativista político e acadêmico negro, Wiliam Du Bois, redirecionou o rumo das discussões sobre o período, ao ressaltar a importância dos negros na reconstrução da democracia americana. Em seu livro, Black Reconstruction in America, ele demonstrou o papel do negro emancipado no esforço para a formação de uma ordem política inter-racial e democrática, a partir das cinzas da ordem escravocrata.

O autor ressaltou o papel do voto negro na restauração do sul à União, no estabelecimento de uma nova democracia – para brancos e negros – e na instituição de escolas públicas. As oportunidades de desenvolvimento foram abraçadas pelas comunidades negras, com os negros se tornando trabalhadores livres, e, por iniciativa própria, ampliando chances de se educarem.

Posteriormente, o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, no século XX, viria a demonstrar que a mobilização permanente seria a garantia para o efetivo acesso das comunidades negras ao pleno direito de cidadania.

O termo queer  tem sido usado na língua inglesa com conotação ofensiva, para designar gueis masculinos ou femininos. Com Angela Davis e outras feministas negras, latinas, operárias e lésbicas, surge a crítica ao feminismo clássico, que havia se mostrado branco, de classe média, acadêmico e elitista. Nesta época, surgem também os estudos de gênero, que constroem uma crítica a este feminismo. A teoria queer começa a se consolidar por volta dos anos 90 com a publicação do livro Gender Trouble (Problemas de Gênero), da feminista Judith Butler.

Pertencer ao movimento queer implica na defesa da aliança entre diversas minorias “por meio da diferença”, sobretudo as minorias sexuais, raciais, religiosas e as mulheres. As vivências das mulheres trans, das travestis e das pessoas não binárias que se identificam com a feminilidade, podem ser compreendidas como experiências femininas e respeitadas como tal.  A teoria queer pode ser vista como uma teoria de empoderamento que torna forte os transviados, e os permite ocupar espaços.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador