Fome, manga e o caroço da memória, por Lúcio Verçoza

Em pesquisa rápida na internet é fácil encontrar notícias sobre mortes de jovens que buscavam frutas. Não se trata de matérias antigas, a maioria do século 21.

Fome, manga e o caroço da memória¹

por Lúcio Verçoza

Nem só de manga vivem os homens e mulheres, eles também se alimentam de memória. As narrativas da história oral se misturam com o presente. Há várias décadas, em uma época na qual o centro de Maceió era margeado por sítios, uma criança atravessou a Rua Barão de Atalaia e pulou a cerca em direção às inúmeras mangueiras, cajueiros e plantações de coco. Quando estava em cima do galho do cajueiro, o menino foi surpreendido pelo estampido. Não conseguiu correr, dizem que já caiu morto. O tiro partiu da espingarda do proprietário da terra. Após a autópsia, descobriram que no estômago do garoto só havia um pouco de caju, recém-chupado.  

O tempo passou, no terreno encontra-se atualmente o campus do Instituto Federal de Alagoas (antiga Escola Técnica). Na hora do recreio, vários jovens caminham pelo pátio, alguns deitam sob a sombra, talvez na mesma posição em que caiu o corpo sem vida. Ninguém sabe o nome do menino assassinado por tentar saciar a fome. Durante certo tempo, a área ficou conhecida como “Sítio do Doutor Caju”. Hoje poucos conhecem essa história. Sem a força da história oral, talvez esse fato não tivesse chegado até o presente. É como o caroço de manga, uma semente que sobrevive porque não pode ser engolida ou digerida. Uma história que foi contada de uma geração para outra com o sentido de não ser esquecida.

Retornando ao presente, a atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina, afirmou que a agricultura não é assunto de segurança nacional no Brasil porque “nós não passamos muita fome, porque nós temos manga nas nossas cidades, nós temos um clima tropical”.  Como se nossas cidades fossem um imenso pomar sem cercas, muros e concreto armado. Como se fosse possível plantar sem ter acesso à terra. Como se fosse simples comer frutas na cidade sem a mediação do dinheiro. Como se qualquer quantidade de viventes com fome pudesse ser considerada pouca.

Em pesquisa rápida na internet é fácil encontrar notícias sobre mortes de jovens que buscavam frutas. Não se trata de matérias antigas, a maioria do século 21. Uma das que mais chama a atenção, de dezembro de 2016, tem o seguinte título: “Garoto é baleado e morre ao subir em muro para pegar manga”². O menino tinha 13 anos de idade e vivia no sul da Bahia.

Não é que um punhado de manga ou de caju tenha mais valor do que a vida de uma criança, mas, da perspectiva de quem efetuou o disparo, se trata do direito sagrado de defender a sua propriedade privada – e esse direito sagrado estaria acima de tudo e de todos. Com a posse de armas facilitada, é provável que a coleta de manga se torne algo ainda mais perigoso.

Mas nem só de manga e memória vivem os homens e mulheres, também se alimentam de futurar. De sonhar com mangueiras que não saciem somente o estômago. Com uma sombra que não caiba apenas quem está dentro do terreno rodeado de cerca elétrica. Um mundo em que se possa andar com seus amigos, sem ser discriminado.  De atravessar o tempo mais adverso carregando o futuro germinado na semente da memória.

Lúcio Verçoza – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal-Fapesp, 2018).

¹ Este texto foi escrito a partir da lembrança de antigos moradores de Maceió e da fala da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, proferida no dia 9 de abril de 2019 – durante sessão na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados.

² A matéria, publicada pelo G1, está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/12/garoto-e-baleado-e-morre-ao-subir-em-muro-para-pegar-manga-diz-policia.html

 

Redação

4 Comentários

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  1. Teve também a fala de um ministro judeu que considera desimportante nordestino estudar Filosofia e Sociologia. Eu digo: imagine, então, nordestino estudar Engenharia de Produção, ou Medicina. Se tal ministro pensa que basta os nordestinos terem conhecimento sobre agricultura, com a ajuda de Israel, porque não sabe entender brasileiro não gostar de judeu, ente outras, é por seguir Tereza Cristina, que também vê o povo mais carente saciado com manga num país tropical.
    No fundo, o ministro disse aos nordestinos, que o lugar dele é o mato e que ele vá plantar batata. Quanto à mulher, sábia, pobre não precisa sentar-se a uma mesa pra comer bem, e se fartar, como ocorre a ela e a milhões de brasileiros bem-sucedidos.
    No fundo, também, está Paulo Freire, e toda aquela política, da qual pensávamos ter superado. A política contra o povão em especial os nordestinos. Quando prenderam Paulo Freire, prenderam também Djalma Maranhão. Enquanto o Mestre dava impulso ao seu projeto de alfabetização e liberdade de pensamento dos adultos agricultores de Angicos/RN, Djalma Maranhão arregaçava as mangas para levar a cabo seu projeto de alfabetização de meninos de pés descalços que encontrava no ócio das ruas. Paulo Freire se safou da morte no exílio. Djalma, morreu no exílio de depressão e saudade da sua terra.
    Mas, o Brasil daqueles anos de chumbo não é mais o mesmo. Com a abertura da democracia, mesmo com FHC no poder, muito foi melhorado, até que surge Lula para dar uma real transformação ao NE brasileiro. Nem sei se posso afirmar que no NE existem mais meninos e homens de rua como há nos grandes centros. Aqui em Natal, onde vi morar após décadas vivendo fora, posso garantir que somente depois de Bolsonaro estou começando a ver alguns pedintes pelas ruas.

  2. Super emocionada lendo esse texto! O povo brasileiro, milhares, mostrando sua cara, a maldade antes escondida, aflorando bestialmente contra os mais pobres e em situacao de miséria! Estão emponderados pela besta que assumiu o poder! Quando morei em Recife ao lado da minha casa em Boa Viagem havia um terreno com muitas árvores frutíferas e que eu havia alugado para fazer uma sementeira, vender plantas! Um rapaz entrou e pegou umas frutas, pra vender naturalmente! Os seguranças de um colégio em frente o prenderam e chamaram a polícia! Estavam batendo nele! Eu cheguei e mandei que o soltassem imediatamente! Disse a ele que quando quisesse me pedisse que eu lhe daria! Muito triste ver tanta gente ruim, perversa, no Brasil! Essa ministra é gente da pior qualidade! Vergonha existir gente dessa laia!

  3. E talvez aqueles que se alimentarem das mangas que encontrarem pelas ruas, serão os mais saudáveis. A ministra dos venenos, como é chamada, está liberando geral os agrotóxicos que corroerao nossas entranhas. Os ruralistas agradecerão, pois na certa terão seus plantios orgânicos. SOCORRO!!!

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