Nossa única esperança é mesmo a ciência, por Mariluce Moura

Todas as medidas que estão sendo tomadas pelos governos federal, estaduais e municipais no Brasil são no sentido da supressão do vírus, mas se esse alvo é impossível de alcançar, pelo menos se põe em marcha um processo de mitigação

Nossa única esperança é mesmo a ciência

por Mariluce Moura

Um dos mais respeitados epidemiologistas do país e dos maiores especialistas em modelos matemáticos dinâmicos aplicados a doenças infecciosas, Eduardo Massad, 67 anos, estima hoje que o Brasil terá, neste ano, cerca de 1 milhão de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2, terá entre 100 mil e 500 mil casos da doença que esse vírus provoca e em torno de 10 mil mortes dela resultantes, números variáveis na dependência da efetividade das medidas de contenção social da pandemia.

Esse cenário que ele traça se assenta em dados atuais e em uma experiência de praticamente quatro décadas com as várias epidemias de doenças infecciosas que desde os anos 1980 desafiam as estratégias e programas de saúde pública no país. Experiência, a propósito, que com frequência fez sua pesquisa extrapolar o âmbito do trabalho acadêmico na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e ser usada em intervenções diretas no traçado de programas eficazes e mais baratos de vacinação no país e em outros fronts.

Uma experiência que lhe permite também, hoje, mesmo nesse momento crítico que o mundo enfrenta, fazer um alerta e uma defesa: “O novo coronavírus possivelmente ainda não é o ‘big one’, mas um ensaio geral para o vírus de grande agressividade do qual os cientistas vêm falando há alguns anos e que exige já a preparação para o desenvolvimento de vacinas e drogas. O candidato provável é um H5N1”. A defesa, enfática, que ele faz, é da ciência: “Nossa única esperança é mesmo a ciência”.

“Visão mais calma”

Eduardo Massad. | Foto: arquivo pessoal

De volta à atual epidemia, ele diz que a cada dia muda sua visão. “Primeiro eu achava que a epidemia ia ser muito branda, depois fiquei bastante preocupado, refletindo como e quando as medidas de contenção social bateriam num limite, e, neste momento, tenho uma visão mais calma, acreditando que teremos um resultado semelhante ao que se deu com o vírus H1N1 em 2009”, conta Massad. A propósito, a gripe espanhola de 1918, que se estima ter matado após a I Guerra Mundial cerca de 50 milhões de pessoas, quando a população do planeta ainda não alcançara os 2 bilhões de habitantes (hoje somos 7,7 bilhões), e tantas vezes comparada nessas últimas semanas à atual pandemia, foi na verdade uma infecção provocada por uma cepa de H1N1, ele esclarece

Massad lembra que o saldo da virulenta virose de 2009 foi a contaminação de 700 milhões de pessoas em todo o mundo, enquanto as projeções para o novo coronavírus, “mantidas as condições atuais, permitem estimar que 1 bilhão de pessoas serão atingidas e, desse conjunto, entre 10% e 15% terão a doença. “É uma doença nova, e exatamente por isso em princípio todos são suscetíveis a ela”, diz. Também o peso dos não sintomáticos na disseminação do vírus é muito significativo.

Preocupa bastante, no Brasil, ele ressalta, a falta de condições sociais para uma adesão forte às medidas de distanciamento destinadas à contenção do vírus. “Num adensamento populacional como o que temos nas zonas periféricas de nossa cidade – argumenta –, o isolamento proposto simplesmente não é possível”. Para além de ser uma impossibilidade distanciamento social de seis, oito pessoas, numa casa de dois cômodos, as pessoas não aguentam ficar em casa nas condições propostas mais que duas semanas, se tanto.

Assim, é quase um exercício de fantasia comparar a situação brasileira com a de Singapura, por exemplo, onde estão sendo feitos testes com todos que apresentam sintomas, mesmo brandos, e, se positivo, são postos num isolamento hospitalar, com pressão do ar negativa como a de centros cirúrgicos. Até o momento, nenhuma morte por coronavírus foi registrada na cidade-estado asiática. “Estamos falando de um lugar com 6 milhões de habitantes e muito rico, não de uma cidade com 12 milhões de habitantes e muitos pobres, como São Paulo”, ou muito menos de um país como o Brasil, com cerca de 210 milhões de habitantes, dos quais 55 milhões, pelo menos, são pobres.

Entretanto, não há nada a fazer, diz o pesquisador que há pouco concluiu e submeteu a uma revista científica um modelo de contaminação do coronavírus por viagens, senão continuar com a campanha de isolamento. Todas as medidas que estão sendo tomadas pelos governos federal, estaduais e municipais no Brasil são no sentido da supressão do vírus, mas se esse alvo é impossível de alcançar, pelo menos se põe em marcha um processo de mitigação e há muito ainda muito a fazer nesse sentido. “Eu moro na fronteira entre São Paulo e Osasco. Ontem fui ao cartório e constatei que, se São Paulo está com as ruas bastante esvaziadas, em Osasco, com mais de 1 milhão de habitantes, a vida seguia praticamente normal. Ora, é praticamente uma cidade dentro de São Paulo e a circulação numa produz impactos na outra”, comenta.

Avenida Paulista esvaziada em 20/03, primeiro dia de comércio fechado em São Paulo. | Foto: Roberto Parizotti/FotosPublicas
Inviabilidade de testes generalizados

Por outro lado, insistir no caminho de ampliação dos testes para todos que apresentem sintomas suspeitos com o objetivo de aumentar o controle da pandemia, como recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS), não é viável no Brasil, na visão de Massad. “Se canalizarmos recursos para os testes, vamos ter problemas com outras doenças”, diz. E da estação de gripe, que está começando, à dengue, passando por febre amarela e sarampo, não faltam doenças que precisam ser mantidas sob controle e exigem investimentos no Brasil.

O que é fundamental entender, ele observa, é que hoje, mesmo que “num passe de mágica” tivéssemos a droga para tratar covid-19, o impacto na magnitude da epidemia seria muito pequeno. “A letalidade cairia, mas o ímpeto da epidemia, sua capacidade de contaminar como um todo, seria pouco afetada, a menos que se conseguisse tratar também os oligossintomáticos (doentes que apresentam poucos ou fracos sintomas)”, comenta.

Sua avaliação é de que, se as condições locais forem parecidas com as da China, a curva epidêmica no Brasil atinge o pico entre final de abril e começo de maio (dois meses), e até agosto terá terminado a epidemia deste ano. Decerto a gripe sazonal que está às portas pode piorar a capacidade de diagnóstico do novo coronavírus no país e inflacionar o numero de suspeitos. Além disso, pode ser também que uma doença agrave a outra – ainda não se sabe nada sobre os efeitos do cruzamento das duas. por isso mesmo, é mais recomendável que se faça largamente a vacinação da gripe.

De qualquer sorte, Eduardo Massad, atualmente professor da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, não acredita que no Brasil se tenha um quadro parecido com o da Itália ou mesmo da Espanha e Portugal. “A Itália tem a terceira população mais velha do mundo, por isso a letalidade lá é tão maior, não é uma questão de displicência. A situação da Espanha e Portugal é a mesma, muito diferente do que acontece no Brasil”.

Por outro lado, é um dos primeiros países afetados com uma grande desigualdade social capaz de gerar padrões de letalidades diferenciados, e há que se estar atento a isso. No modelo que elaborou com base na China, Massad encontrou que para cada 1.300 viajantes que saíam da China no pico da epidemia, um estava infectado com o vírus, e em cada país que chegava, principalmente no sudeste asiático, cada um tinha 23% de possibilidade de gerar um caso secundário. Adiante se verá se essa dinâmica tem paralelo no Brasil.

Futuro

E vencida a epidemia deste ano, o que se espera? Uma vacina pode estar disponível entre 12 e 18 meses. Fármacos de tratamento podem ser identificados em menos tempo. “Vacinação em massa seria o ideal daqui a um ano, um ano e meio, a par da expectativa de que o vírus retorne mais atenuado no próximo ano”.

Eduardo Massad pensa que hoje estamos no Brasil numa situação de epidemiologia muito pior do que na época em que ele traçou seus primeiros modelos. Aliás, em texto de 1996, resultado da primeira entrevista que fiz com ele (Notícias Fapesp número 8, abril de 1996), escrevi: “A garantia dada por Massad de que para se obter uma cobertura ótima de imunidade contra sarampo, cachumba e rubéola, bastaria vacinar a população na faixa etária entre um e 10 anos – contrariando a recomendação da Organização Panamericana de Saúde, OPAS, de vacinar toda a população entre 9 meses e 15 anos -, permitiu ao Governo do Estado de São Paulo economizar cerca de US$15 milhões na última grande campanha de vacinação contra essas viroses, em 1992”.

Em paralelo aos esforços de pesquisa voltados ao Sars-covid-2, com a busca de vacina inclusive com técnicas de biologia molecular, a sugestão do epidemiologista é “começar a observar as gripes aviárias, vírus de transmissão entre animais que, a qualquer momento, podem sofrer uma mutação e pular a escala, ser transmitido do animal para um humano e daí entre humanos”. Vacinas e tratamentos antivirais voltados ao virus da gripe, testando todas as combinações com antígenos H e antígenos N, precisam ser buscados já.

Redação

2 Comentários

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  1. O percentual de idosos na população da Itália é mais elevado do que o percentual de idosos da população brasileira, mas em termos absolutos, o nosso número de idosos é o dobro do número de idosos da Itália. Portanto, se deixar como está prá ver como é que fica, aqui vai morrer duas vezes mais idosos do que na Itália.

    Assim, o trecho a seguir não faz sentido do ponto de vista matemático:

    “Eduardo Massad, atualmente professor da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, não acredita que no Brasil se tenha um quadro parecido com o da Itália ou mesmo da Espanha e Portugal. “A Itália tem a terceira população mais velha do mundo, por isso a letalidade lá é tão maior, não é uma questão de displicência. A situação da Espanha e Portugal é a mesma, muito diferente do que acontece no Brasil”.

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