2020: a ação política como esperança, por Jaqueline Morelo

Houve resistência e muita luta, ainda que o ano tenha transcorrido como uma tempestade furiosa

2020: a ação política como esperança

por Jaqueline Morelo

É bem provável que muitos estejam hoje se perguntando se houve algum acontecimento ou fato positivo para o país e para os brasileiros em 2019. Nesse balanço que compulsoriamente fazemos no fim do ano, possivelmente os aspectos negativos do atual governo empurrem para baixo qualquer sentimento esperançoso que possamos ter com a chegada de 2020. O temor é que a Odisseia deixe o espaço ficcional para se concretizar aqui mesmo na terra, mais precisamente no Brasil. 

A despeito das adversidades que nos atingiram, do projeto de destruição do país em curso, das medidas governamentais que retiram direitos, cortam gastos públicos, eliminam programas, extinguem cargos indispensáveis ao atendimento da população, enfim, da exclusiva obediência ao capital financeiro, se quisermos enfrentar esse poder, constituído e exercido de forma estratégica, inclusive com parte expressiva do judiciário e da mídia, devemos valorizar as ações de enfrentamento e oposição que, como indivíduos e coletividade, conseguimos realizar em 2019. Dessa forma, reconhecendo nossa imaginação criativa, nossa capacidade de mobilizar recursos e afetos para a luta contra os retrocessos, em defesa da dignidade, da vida e da democracia, será possível sobreviver com esperança. 

Houve resistência e muita luta, ainda que o ano tenha transcorrido como uma tempestade furiosa, com aprofundamento das desigualdades sociais e aumento da informalidade no mercado de trabalho e do desamparo social dos mais vulneráveis, Amazônia em chamas, assassinatos de lideranças indígenas. A violência estrutural do país foi exacerbada pelos discursos e entrevistas nonsense do presidente e de ministros, agravados pela disseminação diária de fake news, replicadas por robôs e massas de indivíduos acríticos, docilmente robotizados pela internalização de valores e ideologias amplamente disseminados pela mídia hegemônica e pelas igrejas neopentecostais. 

Como já diversas vezes denunciado por parlamentares e técnicos de diferentes áreas, especialmente em audiências públicas no Congresso Nacional, nunca antes na história do país um presidente e ministros de Estado foram tão despudoradamente desrespeitosos com o povo, tão desprovidos de conhecimento e capacidade para o exercício de suas funções, tão compulsivos a desdenhar a liturgia do cargo público que ocupam.

Também pela primeira vez o ritmo frenético ditou o envio ao Congresso, pelo executivo, de Projetos de Emenda Constitucional (PECs) e Medidas Provisórias, algumas das quais descabidas, rejeitadas total ou parcialmente após terem cumprido o papel de nos assombrar, pois o susto quase diário, o estranhamento, os fatos que extrapolaram a realidade a ponto de nos fazer crer que participávamos de um episódio ficcional de suspense, foram também usados como estratégia para provocar, ao mesmo tempo, a suspensão do que é familiar à vida e a ascensão do grotesco com a finalidade de produzir, por fim, a insegurança e o medo que paralisam a ação, o enfrentamento, a mobilização. 

Apesar disso, a sociedade não assistiu bestializada a todos esses acontecimentos – usando aqui a expressão de Aristides Lobo ao referir-se à proclamação da República como episódio no qual não houve ação política nem da população, nem de organizações políticas ou de qualquer tipo. E pela primeira vez número expressivo de brasileiros se conscientizou do fato incontestável de que somos uma sociedade fragmentada, formada inclusive por indivíduos despudoradamente agressivos, preconceituosos e beligerantes. Esse entendimento foi importante e orientou a ação de movimentos sociais, por meio de atos, manifestos e criações artísticas de protesto. Em todo o país, houve engajamento e uma rede entrelaçada por afetos foi tecida, alinhavando pessoas a projetos, costurando sonhos e esperanças. Milhares de grupos de discussão, estudos e solidariedade, virtuais e presenciais, foram formados. A sociedade civil se manteve viva e atuante. 

Houve também muita resistência cultural. Atacada frontalmente, a classe artística se uniu, produzindo composições, slams, vídeos, manifestos, poesia. No cinema, apesar do desmonte da política do audiovisual, foram lançados em 2019 dezenas de filmes excepcionais, com temáticas e estéticas diversas, como Bacurau, A vida invisível e Democracia em Vertigem. Músicos de diferentes estilos denunciaram, em shows por todo o país, arbitrariedades, violência policial, o assassinato covarde de Marielle, a impunidade. A atriz Fernanda Montenegro, em autobiografia recém-lançada, se posicionou: “É a Cultura das Artes que faz uma nação. Sem ela, é apenas uma fronteira.” 

Portanto, a despeito de todos os obstáculos já mencionados, agravados pela volta da censura, tivemos resistência e luta política, ainda que em um momento de grandes mudanças. Como descrevi em outro artigo, aqui publicado, estamos no limiar entre o mundo conhecido que se configurou a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e uma nova era, regida pelo capitalismo neoliberal, na qual o capital financeiro se tornou hegemônico. 

Limiar (Schewelle), termo usado pelo filósofo Walter Benjamin, indica não somente a separação entre dois ambientes ou espaços temporais, mas inclui a noção de transição, mudança gradual, movimento. Não se apresenta de maneira definida, mas como passagem entre dois extremos, zonas intermediárias, que conectam espaços e possibilitam encontros. 

Essa imagem é fundamental para nos inspirar a continuar construindo espaços diversos, sem radicalismos, que possibilitem a convergência de ideais comuns. Se não é possível prever a duração desse período de transição, que possamos ser capazes de construir as pontes necessárias à prática da alteridade, a resistência dos valores éticos que dignificam e conferem sentido à ação humana. E que esses valores éticos guiem nossa ação política em 2020, na busca por uma sociedade mais justa e igualitária, mais respeitosa, tolerante e solidária. Que a esperança esteja sempre presente em nossas vidas. 

Fernanda Montenegro nos inspira mais uma vez: “Sobrevivemos pela força da vida mesma. A esperança precisa deixar de ser só votiva. A esperança tem que ser uma ação viva. Foi isso que os meus imigrantes me ensinaram. Fé numa nova terra.”

Jaqueline Morelo é jornalista, cientista social e mestre em Ciência Política. E-mail: [email protected] 

Redação

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