Na Chã do Moreno, Solânea para os mais novos

1. Outro dia comentei o filme O Paraíba, de Samir Abujamra. Foram muitas as alegrias pois o filme trata do encontro de Samir com o seu destino. Nascido em Campina Grande, seu pai foi um dos engenheiros da Camargo Correia, construtora do Anel do Brejo, a pista que une Campina Grande às cidades brejeiras e outras. Na Chão do Moreno, Solânea, ao cortar o cabelo com seu Vicente, foi ele me contando sua vida e, vejam, foi também um dos construtores do Anel do Brejo. Veio como “pião” do Ceará e trabalhou como apontador de caçambas. Enquanto passava a máquina em minha vasta cabeleira (abrindo uma mini-estrada) desfiou todos as etapas de construção da rodovia. Falei-lhe do filme e ficou empolgadíssimo. Está por aqui há 43 anos, aprendeu o ofício de barbeiro e atende todos os dias, na mais abnegada missão. Cuida das cabeças dos mais cabeçudos e dos amiudados.

2. Na Chã do Moreno, quando a temperatura cai e um friozinho vem beijando nossa pele, alguém chora na sanfona. Não se derrama em lágrimas, derrama-se em notas musicais picotadas de antigos chorinhos. Seu Deusinho do Acordeon inicia sua jornada de intenso aprendizado. Humilde como muitos dos sertões profundos, deixa-me entrar em sua casa com apurada receptividade. Fala-me de sua vida, não reclama da sorte, lamenta não possuir uma sanfona nova, uma super 6, como adianta. Mas não precisa. Nessa noite foram choros de Waldir Azevedo, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Sivuca, Dominguinhos. Forrós e sambas sertanejos pularam do fole para o meio do avarandado. E eu, agraciado pela sorte, senti a pancada dos baixos no centro do peito. Quem terá urdido tamanha agilidade em seus dedos? Os escolhidos vêm ao mundo com uma caixa-forte repleta de mistérios. Chora sanfona sentida…

3. Fui caminhando pela noite adentro. As ruas vazias da Chã do Moreno, varridas por um vento frio nascido na embocadura da Serra da Borborema, exalam a solidão do coração de alguns viventes. Sigo ensimesmado, observando pormenores. Aqui um grupo de quatro jovens, olhando ávidos para a tela dos celulares, queimando um “fumo” ( a fumaça os trai e escodem a bagana). Ali, um antigo hospital desativado onde outros queimam uma pedra de crack. Por acolá, uma frota de mototáxis. Mais adiante, dois homens em situação de rua, disputando uma vaga no chão com três cachorros. Um bêbado não sabe para onde vai. E eu varro a rua principal com meu radar atento. E eis que, no éter, um som de música. Sigo no rastro e encontro o Grêmio Social Morenense. Sua porta entreaberta deixa-me ver um grupo reunido, ensaiando o Bicho Carpinteiro. Pedi guarida e o Regional Paus e Cordas deixou-me ficar ouvindo o melhor. Os males da cidade grande chegaram por aqui, mas o bem, o lúdico, o sensível habitam a resistência e o céu baixa à Terra, com seus anjos e suas harpas, sanfonas, violões, cavaquinhos e educadíssima percussão. 

4. Deixei a Chã do Moreno na boca da noite. Cheguei em Campina Grande já noite feita. Concluída a terceira etapa das Rotas do Cordel na Borborema, fiz a viagem de 52 km avaliando as ações. Tudo foi bom, mas precisa ser melhor, sempre. Não basta fazer, tem que adornar. Não basta adornar, tem que expor. Não basta expor, tem que louvar. Não basta louvar, tem que ter fé. Não basta ter fé, tem que fazer. É esse o ciclo do uroboro. Trago amigos novos, pessoas destemidas, poetas valentes, professores fiéis, alunos sonhadores. E agora, neste exato momento, sigo para o Recife. Estou com uma boa agenda para lá. Meu peito é um quintal repleto de pés de capim-santo, louva-a-deus e esperança. Vou na direção do sol

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Redação

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