Cracolândia, A Política de Acordo com a Cara do Freguês 

 

Esta semana a cidade de São Paulo, foi palco de mais um descalabro do prefeito que diz não ser político, portanto, o que se espera de fato é que não saiba  o que está fazendo em termos de política pública, tomou mais uma decisão equivocada, afinal para ele que se identifica como um trabalhador, gerir uma cidade é simplesmente deixar o ambiente bonito e limpo para que seus clientes (cidadãos) possam ficar felizes e lhe retribuir em aprovação e futuros votos. 

Uma cidade em que tudo e todos necessitam parecer com concreto armado, desde os muros antes grafitados e pixados e agora pintados de cinza até as pessoas. Padrão e hegemonia. Não é pouco repetir a obra de Machado de Assis, “O Alienista” em que um médico começa a internar as pessoas por todo e qualquer motivo até que não sobre mais ninguém na cidade, todo comportamento e hábito humano é para ele anormal. Não vou contar o final, porque é uma obra que vale a pena ser lida, ainda mais nestes tempos de tanta intolerância. 

Eu iniciei sobre outros assuntos, porque o problema da Cracolândia, sinto desapontar,não é a droga, não é o crack e seus usuários. Você não pensou que todas as pessoas na cidade de São Paulo que fazem uso de crack precisam estar na Cracolândia. O crack pode ser fumado na sala, no banheiro, no quarto em qualquer lugar dentro ou fora de casa. Mesmo sendo considerada uma droga ilícita pode ser consumida em qualquer ambiente. 

Então porque uma megaoperação com mais de 900 policiais ? Parece que o prefeito João Doria ainda acredita em Guerra às Drogas que é um conceito muito antigo e desatualizado para lidar com um problema tão complexo. Foi Richard Nixon, um presidente americano dos anos 1970,quem  lançou a Guerra às Drogas. Sua intenção era extinguir uso milenar de plantas como a coca, a maconha e a papoula.  O país vivia uma epidemia de crack e cocaína e altos índices de violência. A ideia era tratar vício como crime, não como problema de saúde pública, e impor penas severas mesmo para delitos menores e não violentos. 

Hoje, especialistas argumentam que essas medidas duras e o foco em punição em vez de tratamento não aumentaram a segurança, nem reduziram a reincidência ou o consumo de drogas. 

 As drogas não devem ser combatidas, porque a guerras às drogas é uma batalha perdida. Não deve ser esta a pergunta e jamais este tipo de abordagemAs intenções declaradas de Dória são as mesmas que Nixon anunciou e que foram amplamente desmentidas pela ciência e pela realidade, acabar com o tráfico e o consumo de drogas através da repressão aos elos mais visíveis e fracos da cadeia do comércio.  

Imagina que você tenha um problema de saúde e precisa ser operado, então você se dirige ao hospital e depois de toda a preparação te encaminham para o centro cirúrgico, você deitado vê uma pessoa de jaleco, com uma bota de plástico branca e uma faca afiada na mão, você sentindo um estranhamento com aquela situação, resolve perguntar: – O senhor é o médico? E ele “não, sou o açougueiro, sei cortar uma carne como ninguém” e começa a te descrever todos os tipos de corte que podem ser feitos na sua carne. As ações que o estado e a cidade de São Paulo tomaram referente a Cracolândia tem o mesmo equívoco tratar um problema de saúde como um problema de justiça. Justificar arbitrariedades, truculência e violação de direitos. Não adianta dizer – Ah, mas o prefeito foi lá e fez. O que ele fez foi uma ação midiática para por fim ao programa “Braços Abertos” do prefeito Haddad e iniciar o programa “Redenção”. 

  O Braços Abertos foi um dos programas brasileiros  com uma política moderna, avançada, que bebe das fontes da saúde coletiva, da reforma sanitária, que é o conceito ampliado de saúde. Oferecia um pacote de direitos que contemplava, de saída, como elemento central do processo de cuidado, a oferta de trabalho, renda e moradia. Isso se inspira num conjunto de ideias bastante novas e revolucionárias do tratamento de álcool e drogas que nasceu no Canadá e que atende pelo nome de House First, ou seja, em primeiro lugar, casa, você não vai colocar casa como um prêmio do processo, não é necessário a abstinência para que a pessoa possa ter os seus direitos básicos atendidos.  

Colocar a abstinência como uma condição é torná-la uma questão moral e então o que produzimos é um estigma, o que se fabrica são narrativas  de culpabilização. A Cracolândia é um território  controverso, não é possível enfrentar de modo simplificado problemas de tamanha complexidade 

 

A Manicomização, o que os olhos não em o coração não sente? 

O que estamos assistindo é um exercício de controle social e uma estratégia para a ampliação da economia neoliberal a partir do exercício do poder e da violência. A economia neoliberal se fortalece através da intensificação de uma economia bélica, já que a lógica de guerra às drogas e a lógica de consumo não são lógicas opostas, elas se alimentam e se fortalecem mutuamente. A Organização Pan-Americana da Saúde, representação regional da Organização Mundial da Saúde no continente americano, crítica a priorização que tem sido feita  pela internação compulsória para o tratamento de usuários de drogas. 

A OPAS afirma que considera “inadequada” e “ineficaz” a “adoção da internação involuntária ou compulsória como estratégia central para o tratamento da dependência de drogas”. A Organização declarou que a “priorização de medida extrema como a internação compulsória” está na “contramão do conhecimento científico sobre o tema” e pode “exacerbar as condições de vulnerabilidade e exclusão social dos usuários de drogas”. 

O Brasil “priorizou a implantação de serviços comunitários para o tratamento da dependência de álcool e outras drogas e o resultado foi a expansão da rede de atendimento e do acesso ao tratamento”. No entanto, diz a nota, “ainda que a lei 10.216 de 2001 descreva a internação como uma das estratégias possíveis para o tratamento dos transtornos mentais, alguns estados e municípios têm utilizado a internação como principal forma para lidar com a dependência de drogas”. 

A “Nota Técnica da OPAS/OMS no Brasil sobre internação involuntária e compulsória de pessoas que usam drogas” de 2008, em conjunto com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime, descreveu dez princípios gerais que orientam o tratamento da dependência de drogas. 

Um deles, intitulado “Tratamento da dependência de drogas, direitos humanos e dignidade do paciente”, explicita que o “direito à autonomia e autodeterminação, o combate ao estigma, ao preconceito e à discriminação e o respeito aos direitos humanos devem ser observados em qualquer estratégia de tratamento para a dependência de drogas”. 

O documento também recomenda que o tratamento não deve ser forçado aos pacientes. “A internação compulsória é considerada uma medida extrema, a ser aplicada apenas a situações excepcionais de crise com alto risco para o paciente ou terceiros, e deve ser realizada em condições e com duração especificadas em Lei. Ela deve ter justificativa clara e emergencial, além de ter caráter pontual e de curta duração”, afirma a OPAS. 

A Organização levantou preocupação com a garantia dos direitos humanos e com o respeito ao processo legal para autorizar e manter a internação compulsória para lembrar que  agências das Nações Unidas – entre elas a OMS – emitiram em 2012 um comunicado conjunto sobre os Centros de Detenção e Reabilitação Compulsória. O documento recomendou aos países que estes centros sejam fechados, ou, na impossibilidade do fechamento imediato, que sejam seguidas recomendações descritas no documento. 

“As agências recomendam claramente que seja priorizada a implantação de ações e serviços de saúde comunitários com características voluntárias. As internações compulsórias só devem ser utilizadas em circunstâncias claramente definidas como excepcionais e, mesmo assim, devem respeitar os direitos humanos previstos na legislação internacional”, afirma a nota emitida pela OPAS. 

 

 

Eu sou um deus 

E gostaria que o outro fosse minha imagem e semelhança.  

Muitas pessoas demonstraram estar de acordo com a política higienista do prefeito de São Paulo, mesmo depois que derrubou um prédio com pessoas dentro, permitiu que a polícia tratasse com truculência os usuários. 

Quando falamos em usuário de drogas, estamos falando das pessoas que fazem abuso de substâncias e que necessitam de cuidados e nem todos os usuários de drogas se encaixam neste perfil. A Cracolândia é o local mais vulnerável e portanto, com maior visibilidade para ações midiáticas de políticos oportunistas, arregimentando a opinião pública com a utilização de todos os estereótipos e preconceitos que possa ter uma pessoa em estado de extremo sofrimento. 

Mas parece que se retirar da frente, a miséria humana tão gritante na Cracolândia esta ira se calar, a desigualdade é um território infindo, ele é movente e renasce por toda a cidade, atravessa os olhos que não querem ver, as bocas que os escarnecem. Bater nos mais fracos é sempre o ato dos covardes. 

É  o outro, desabitado, desmoronado, com sua pele fina e repleta de escaras, seu indizível, o impalpável, sua dor humana no seu sentido mais radical que esta veia aberta não vai nos permite esquecer.

 

Para não dizer que eu não falei das flores 

 

Eu não vou contar nenhuma história de superação, porque as histórias na Cracolândia são de vidas que experimentam os seus limites mais dolorosos. Tornar a vida viável para quem experimentou tanta brutalidade é um imenso desafio, tocar uma pele fina sem devastá-la. É necessário afeto, é preciso acolhimento, é preciso tempo. 

​O que o prefeito de São Paulo, com sua sanha por limpeza e lucros conseguiu fazer foi criar uma Nau dos Insensatos, a Cracolândia é um território movente e agora espalha-se sem direção pela cidade.

​O caminho mais rápido é a desumanização, aquela que vê o outro que jamais será o mesmo que nós, que aguenta o não cotidiano, o não lugar, a não vida, a não possibilidade. No poema a flor e a náusea de Drummond ele nos ensina a arte da delicadeza :”Façam completo silêncio”

​Uma flor nasceu na rua!

​Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego

​Uma flor ainda desbotada

​ilude a polícia, rompe o asfalto

​Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

​garanto que uma flor nasceu

​É feia. Mas é flor. Furou o asfalto. o tédio o nojo e o ódio

Redação

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