A Estrada 47

A pátria é a língua e a História partilhada por aqueles que a fazem e a transmitem. O patriotismo se ocupa especialmente da História Militar, pois uma pátria sem Forças Armadas está condenada a deixar de existir. Isto explica porque os russos comemoram com tanto fervor marcial a derrota dos nazistas há 70 anos. Também explica o lançamento do filme “A Estrada 47”.

Por razões muito óbvias a cultura marcial foi associada à Ditadura Militar e – em razão da censura, da ostensiva vigilância, do encarceramento e exílio de dissidentes, das torturas e assassinatos sem fim cometidos por policiais e militares de 1964 a 1985 – acabou sendo dissociada do patriotismo no Brasil. Nosso país tem Forças Armadas, mas os brasileiros não devotam muita atenção ou admiração às mesmas. Os cidadãos brasileiros, com toda justiça, nutrem certa desconfiança dos militares e dão gargalhadas se forem convocados a homenagear soldados em público.

“A Estrada 47” é uma homenagem aos pracinhas que lutaram na II Guerra Mundial. Mas não é uma homenagem qualquer, pois este filme é muito diferente dos filmes de guerra feitos nos EUA e na Europa. O realismo de “A Estrada 47” evoca a natureza não marcial da nossa cultura. A tradicional coragem indômita dos heróis de Hollywood, clichê do cinema de guerra produzido por norte-americanos, é substituída pelo medo pavor e pela hesitação.

Sob a pressão do batismo de fogo, os soldados  brasileiros abandonam seu posto. Eles foram mordidos por um “formigamento” incontrolável. O mesmo “formigamento” que fez soldados norte-americanos fugirem quando dois de seus tanques acabaram explodidos por minas na Estrada 47. A narrativa do filme é surreal e, portanto, bem brasileira. Após a debandada um punhado de soldados brasileiros se reúne e resolve fazer algo para não sofrer as consequencias da indisciplina e da covardia (o “formigamento”). A coragem perdida vai sendo lentamente recuperada.

Os problemas da FEB na Itália foram narrados sem beleza literária pelo Mal. Mascarenhas de Moraes:

“Mui pouco se avançou no adestramento militar do 1o. Escalão de Embarque durante o seu primeiro mês de permanência no Teatro de Operações na Itália.

O obstáculo principal a esse desenvolvimento foi, como no Brasil, a falta de material de instrução.” (História da II Guerra Mundial 1939-1945, volume VI, Edgar Mac Innis, Editora Globo, 1a. edição – 3a. impressão, 1958, apenso escrito pelo Mal. Mascarenhas de Moraes, p. 287).

“O equipamento militar do grosso da Divisão não se processou no quadro das previsões de tempo do comandante do V Exército.

Os 2o. e 3o. Escalões de Embarque levaram trinta e cinco dias para receber todo o suprimento bélico e os trabalhos de distribuição aos Órgãos de Serviço brasileiros, a cargo da P.B.S., só foram dados por concluídos no dia 22 de novembro.

Em meio a essa balbúrdia e esse ambiente de atropelo, a instrução se desenvolveu com imperfeições, cujas repercussões se fizeram sentir nos embates iniciais de algumas unidades do grosso da 1a. D.I.E.” (História da II Guerra Mundial 1939-1945, volume VI, Edgar Mac Innis, Editora Globo, 1a. edição – 3a. impressão, 1958, apenso escrito pelo Mal. Mascarenhas de Moraes, p. 289)

“Completamos a nossa instrução em estreito contacto com o inimigo, senhor de vantagens topo-táticas indiscutíveis.

Amargamos, nessa aprendizagem, alguns reveses decerto inevitáveis.

Enfrentamos, como remate ao nosso adestramento, um inverno bem rude nas gélidas escarpas dos Apeninos.

Nessa conjuntura, a que fomos levados pela força dos acontecimentos, forjou-se a capacidade combativa da tropa brasileira e aprimorou-se o sentimento de responsabilidade dos chefes em todos os escalões da hierarquia.

Nos erros cometidos e nos reveses sofridos, fomos buscar os ensinamentos que nos levaram a tão sensacionais e espetaculares vitórias.” (História da II Guerra Mundial 1939-1945, volume VI, Edgar Mac Innis, Editora Globo, 1a. edição – 3a. impressão, 1958, apenso escrito pelo Mal. Mascarenhas de Moraes, p. 291)

O pânico dos soldados brasileiros retratado no filme não foi admitido abertamente pelo Mal. Mascarenhas de Moraes. Mas pode ser subtendido da narrativa transcrita e deve ser creditado à três fatores: falta de instrução militar adequada, clima inóspito e situação tática desvantajosa. Com treinamento melhor e fartura de equipamento militar, os norte-americanos também eram vítimas do panico, fenômeno que raramente pode ser visto nos filmes de guerra produzidos nos EUA.  

A paisagem desolada do inverno itálico fornece a moldura perfeita para um nonsense militar. Em sua jornada os soldados brasileiros visitam o posto abandonado por norte-americanos, encontram um jornalista que procura motivo para falar mal da FEB, arrumam um aliado italiano e fazem um prisioneiro alemão. O alemão logo se torna amigo de um soldado piauiense. Ele ajuda os brasileiros a encontrar a Estrada 47 e a desarmar as minas anti-tanque nazistas. Em retribuição eles tentam salvar a vida dele.

Em certo momento, o prisioneiro alemão diz aos pracinhas da FEB que é um absurdo o Brasil participar daquela guerra. A afirmação procede, mas precisa ser colocada no seu contexto. Nos anos 1930 o Brasil foi o maior parceiro comercial da Alemanha fora da Europa. As vantagens concedidas ao nosso país pelo regime de Hitler (os famosos “marcos de redesconto”) transformaram a Alemanha num parceiro comercial importante do Brasil. Não é segredo que o Estado Novo estava mais próximo do III Reich do que dos EUA. As ameaças de invasão do nordeste feitas pelos EUA devem ter pesado na balança para fazer o Brasil combater os alemães na Itália. A construção de uma moderna siderúrgica com tecnologia norte-americana em nosso país também fez parte da barganha.  

O conflito entre italianos, pró e contra o Eixo, é um fator de complica a atuação da FEB. A deserção de alemães também. Como saber quem é aliado ou inimigo no caos? Aquele punhado de brasileiros abre a rota para os Aliados, mas no fim os norte-americanos (provavelmente os mesmos que correram de medo) reclamam  ter realizado  a façanha. Um filme bom e bem feito, crível. Talvez esta seja a razão pela qual não tenha feito muito sucesso no lançamento. Assisti “A Estrada 47” sozinho numa sala do Kinoplex em Osasco que comporta mais de 200 pessoas.   

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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