A náusea, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A náusea, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não, não vou aqui fazer uma análise do livro de Jean Paul Sartre. O mundo em que o livro “A Náusea” foi escrito e publicado desapareceu sob os escombros da II Guerra Mundial. No mundo em que nós vivemos, os objetos inanimados não podem mais adquirir a capacidade de invadir nossas consciências para definir quem somos, pois passamos a maior parte de nossas vidas conectados ao mundo virtual. É nele que os escombros do mundo real são produzidos sem que possamos mais sequer fazer uma distinção entre realidade e ficção.

Quando os atenienses inventaram a democracia, pedras brancas e negras eram utilizadas para que os cidadãos pudessem votar “sim” ou “não”  nas propostas colocadas na assembleia. Eles escreviam o nome daquele que queriam condenar ao ostracismo num pedaço de cerâmica. A relação entre os homens livres e as coisas (pedras brancas e negras e pedaços de cerâmica) eram então capazes de definir não só as subjetividades deles como o destino da cidade.

A substituição das coisas pelo papel complicou a vida democrática. Durante o processo de apuração cédulas em branco podiam ser maliciosamente preenchidas, votos nulos as vezes eram contados como válidos para beneficiar o candidato do mesário e votos perfeitamente válidos eram anulados por escrutinadores desonestos. Os partidos fiscalizavam o processo de apuração, mas as fraudes eleitorais também podiam se introduzir no sistema quando da totalização dos votos antes da proclamação do resultado.

Na fase atual as urnas são eletrônicas e a contagem e totalização dos votos são automatizados. Os partidos podem testar e fiscalizar o sistema. Mas a insegurança que ele gera é bem conhecida.

Não é disso, porém, que pretendo falar. Apesar das bravatas de Luiz Fux, o TSE não foi capaz de coibir a explosão de mentiras grotescas que um candidato espalhou no Twitter, no Facebook e no WhatsApp para prejudicar seu principal adversário.

O escândalo envolvendo Jair Bolsonaro e os empresários que financiaram ilegalmente a campanha de fake news do PSL foi divulgado pela Folha de São Paulo. Esse é, sem dúvida, o fenômeno mais importante desta eleição. O tratamento que será dado ao caso pelo TSE definirá tanto a qualidade e a higidez da nossa democracia quanto o compromisso do Judiciário com sua missão de garanti-la.

Se a Justiça não tomar qualquer providencia, sua omissão será equivalente à certidão de óbito do sistema constitucional brasileiro. Eleito e empossado com base numa campanha de difamação legitimada pelo Poder Judiciário, Jair Bolsonaro poderá fazer o que bem entender. Afinal, ele terá chegado ao poder num contexto em que a distinção entre legítimo e ilegítimo terá sido totalmente destruída pelos juízes.

Se o Judiciário cassar o registro de Bolsonaro o resultado da eleição não será capaz de preencher o vazio que o PSL conseguiu criar no sistema político brasileiro. Dezenas de milhões de eleitores do Coiso ficarão irritados, milhares deles poderão ser recrutados por terroristas interessados em desestabilizar o país. A oposição que o novo presidente irá enfrentar será ainda mais destrutiva e economicamente prejudicial do que aquela que vinha corroendo nossa democracia desde que a imprensa embarcou na aventura do golpe de 2016.

Unida durante a deposição de Dilma Rousseff, a imprensa se dividiu neste momento. A Folha de São Paulo fez o que nenhum outro veículo de comunicação ousou fazer: ela se distanciou da Rede Globo. Num primeiro momento, o clã Marinho preferiu ficar ao lado de Jair Bolsonaro ignorando o escândalo. Alguns dias depois o episódio das Fake News em favor do mito  foi noticiado no Jornal Nacional. Ao que parece a  TV da Igreja Universal não vai atacar seu candidato.

A campanha suja feita ilegalmente para beneficiar o Coiso se voltou contra ele. Nas redes sociais a notícia do escândalo é explorada à exaustão. A disputa PT x PSL se transformou numa guerra entre News x Fake News. Cada cidadão poderá escolher a verdade que lhe parecer mais verdadeira. Essa escolha, porém, não será capaz de revitalizar o campo político e/ou reforçar a legitimidade do campo jurídico. Produto da degradação de ambos, essa escolha apenas irá aprofundar a decadência da democracia brasileira.

Desde que entrou na política, Jair Bolsonaro se distinguiu dos outros parlamentares por viver insulado numa bolha ideológica em que: o ódio pode substituir propostas de governo; uma parcela da população pode usar a violência contra a outra; a exclusão social pode ser transformada em política de Estado e; a tortura e o assassinato político são permitidos e desejáveis. No mundo virtual em que o candidato do PSL vive o diálogo com as pessoas diferentes deve ser substituído pela lógica amigo/inimigo num contexto hierárquico em que ele mesmo se colocou como aquele que deve ser obedecido.

Durante o processo do Mensalão, Jair Bolsonaro defendeu a aplicação da “teoria do domínio do fato” contra José Dirceu e José Genoino. Luiz Fux, Gilmar Mendes e Rosa Weber usaram essa teoria para encarcerar os dois líderes petistas. Obrigado a falar sobre o escândalo, o Coiso disse que não é responsável pelo que os empresários amigos dele fizeram para beneficiá-lo. Existem indícios de que ele sabia o que estava ocorrendo.

A margem de votos que Bolsonaro conquistou sobre Fernando Haddad é uma prova inequívoca do benefício que ele recebeu. Além disso, em momento algum o Coiso desautorizou publicamente a campanha de Fake News quando ela começou a definir o resultado do primeiro turno. Esses dois detalhes deverão ser inevitavelmente levados em conta pelos Ministros do TSE. Rosa Weber, Gilmar Mendes e Luiz Fux despacham neste Tribunal. Portanto, será interessante ver se eles serão tão rigorosos com o PSL quanto foram com o PT.  A “teoria do domínio do fato” será empregada contra o Coiso?

Como se fosse um vírus, a realidade virtual que habitava apenas a consciência do Coiso conseguiu contaminar a rede de computadores em que os brasileiros passam a maior parte de suas vidas. Desde o golpe de 2016 nossa democracia já estava em frangalhos. Agora os frangalhos dela se multiplicam à exaustão e foram espalhados de um lado ao outro do país para complicar ainda mais uma eleição polarizada. Se a candidatura de Bolsonaro não for cassada produzindo mais instabilidade seremos obrigados a escolher entre News e Fake News como se ambas fossem escolhas igualmente legítimas. A náusea já tomou conta do Brasil, o remédio será necessariamente amargo.    

 

PS: A jornalista da Folha de São Paulo que noticiou o escândalo aqui mencionado está sendo ferozmente atacada e ameaçada na internet. Jair Bolsonaro nem mesmo foi eleito e as “verdades mitológicas” sobre ele já não podem mais ser contestadas com fatos. A primeira vítima do mandato dele será a liberdade de imprensa que a própria imprensa utilizou de maneira abusiva para derrubar Dilma Rousseff injustamente. Essa ironia não é trágica, nem chega a ser cômica. Ela é nauseabunda.  

 
Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. O comportamento ambíguo da

    O comportamento ambíguo da Globo nesse episódio do whatsapp deixa claro, para mim, que o comportamento dos Marinho é estratégico.

    Objetivo nº 1, total e absoluto, inarredável, deste grupo é impedir a volta do PT ao poder; em nome desse objetivo primordial, qualquer coisa será tolerada.

    Na impossibilidade de não divulgar os fatos, devido à repercussão nas redes sociais, aqui e lá fora, ela o fez, em termos tíbios e com linguagem cuidadosamente estudada para não aprofundar a narrativa, nem prejudicar abertamente o candidato em posição de derrotar o PT.

    Bolsonaro eleito, a Globo, que sabe perfeitamente que Edir Macedo não está apoiando o candidato por PSL por convicção ou empatia religiosa, e sim pelas verbas publicitárias que hoje jorram, majoritariamente, para o grupo Globo, e que ele quer ver destinadas ao seu próprio grupo, mudará automaticamente o tratamento ao capitão. Pois o aumento da verba publicitária para a Record, será o passo decisivo para a emissora do bispo começar a cumprir o objetivo declarado de Edir Macedo: destruir a Globo. Processo que está em curso, com a adoção de uma programação popular-religiosa de grande apelo (aqui na Bahia, no horário vespertino destinado à repetidora local, a TV Itapoan tem derrotado sistematicamente a TV Bahia), e até mesmo na mídia independente, através de PHA, esteja este consciente ou não de estar sendo usado como um peão.

    A Globo passará a dar, em âmbito nacional, a Bolsonaro, o mesmo tratamento que tem dado ao Crivella, no âmbito carioca.

    Portanto, a grande questão é: nessa guerra que se prenuncia, entre Globo e Record, de que lado ficarão os togados e os militares?

    Quem tem mais bala na agulha, para chantagear e pressionar os togados, Globo ou Record?

    E quem terá saliva mais doce na língua, para lamber as botas dos militares?

    E a pergunta final, que os fatos responderão: com uma eleição que poderá ter sido decidida nas redes sociais, a Mídia tradicional ainda terá força para influenciar a vida do país, como tem tido, até hoje?

     

  2. Fakenews e boatos
    A República em 1889 foi implantada através de um jogo de boatos e mentiras. Os seus autores se vangloriaram delas, tudo para um bem maior. Os democratas e que perderam.
    O judiciário e a mídia hegemônica vão fazer o papel de enviarem isso tudo para debaixo do tapete.
    Viva a constituição viva o Bolso!

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