ECONOMIA: DO COMPULSÓRIO À TAXA DE JUROS

O depósito compulsório e a taxa de juros

A saída para a crise brasileira até poucos meses atrás não foi justamente baseada em medidas governamentais para estimular o consumo interno, com o intuito de evitar um quadro recessivo em nosso País mais forte do que o verificado em 2009? A questão é bastante polêmica e não há uma única resposta segura.

O governo anunciou dia 3 de dezembro, um conjunto de medidas na área econômica, com o objetivo de enfrentar alguns problemas relativos ao chamado aquecimento do ritmo da atividade de nossa economia. Por se tratar de opção pouco utilizada pela equipe comandada pelo Presidente Henrique Meirelles, ao longo da sua longa permanência à frente do Banco Central, a divulgação do pacote pelos principais veículos de comunicação foi de ainda maior difícil compreensão por parte do público.

A surpresa veio pela adoção de tais medidas ainda na gestão do ex-todo poderoso número um da autoridade monetária, quando a própria Presidenta eleita já havia anunciado a saída dele a partir de 1° de janeiro próximo, com sua substituição pelo Diretor do Banco Central, Alexandre Tombini, integrante da carreira de funcionários da instituição.

Todos estávamos habituados à liturgia do ritual dos anúncios das novidades em matéria de política monetária. O cenário básico se repetia com a freqüência das reuniões do Comitê de Política Monetária (COPOM). Composto pelos próprios diretores do BC, aquela reunião especial, a cada 45 dias, se travestia de uma característica especial: ali estaria sendo definido o novo patamar da taxa de juros referencial para o conjunto dos chamados agentes econômicos. A famosa taxa SELIC, utilizada pelo governo para remunerar seus títulos públicos, os papéis emitidos pelo Tesouro Nacional. Tais ativos são vendidos inicialmente pelo governo federal para que ele arrecade recursos e consiga rolar sua dívida pública (no nosso caso, esse estoque de dívida só tem aumentado!). Em seguida, os títulos adquirem autonomia e vida própria, passando a ser negociados no mercado financeiro dito secundário.

Sim, mas e daí? Qual a novidade? Devagar, vamos com calma, que hoje o assunto aqui é mais complicado. Essa sistemática de reuniões do COPOM se assenta no modelo adotado no Brasil a partir do Plano Real (e consolidado depois da desvalorização cambial de 1999), do assim chamado “regime de metas de inflação”. Para se combater a tendência histórica e crônica de elevadas taxas de crescimento dos preços em nosso País, optou-se por essa solução mais radical e ortodoxa. O governo define uma meta de inflação para um periodo futuro (em geral um ano, 12 meses) e tenta fazer um acompanhamento periódico dessa performance a cada reunião do COPOM. O colegiado que define a meta de inflação é outro: trata-se do Conselho Monetário Nacional (CMN), composto pelo Ministro da Fazenda, pelo Ministro do Planejamento e pelo Presidente do BC. Se ao longo do periodo, houver alguma sinalização de elevação do crescimento dos preços acima da meta fixada, o COPOM opta por elevar a SELIC. Em caso oposto, se houver a compreensão de que há uma tendência à baixa na inflação, o Comitê pode optar por reduzir o nível da SELIC.

Alguém com certeza pode estar se perguntando a respeito dos porquês de tal modelo. Questão, aliás, mais do que justificada. O fundamento teórico de tal opção de política de estabilização da economia é o famoso descompasso entre oferta e demanda. Ou seja, assim como no caso do mercado da batatinha, o pressuposto é de que se no conjunto da economia houver um maior nível de demanda do que de oferta de produtos e serviços, verificar-se-ia uma tendência generalizada de pressão altista nos preços praticados. Como a autoridade monetária pode atuar para evitar tal risco? Esse modelo prevê que a ação deve ser na linha da redução da demanda. O governo eleva o patamar da taxa de juros e o conjunto dos agentes econômicos tenderiam a direcionar seus recursos monetários para a forma de poupança, atraídos pelo nível elevado da remuneração financeira. O resultado seria uma diminuição da pressão da demanda por bens e serviços na chamada “economia real”. Haveria um movimento de reequilíbrio entre oferta e demanda, e com isso a meta de inflação, antes sob o risco, voltaria a estar sob controle.

Ocorre que a adoção de tal modelo provoca uma série de outros efeitos sobre a própria economia, que acaba por comprometê-lo até mesmo em seu intento inicial de lograr o equilíbrio macroeconômico. Hoje não há espaço aqui para discutir tais fatos, mas todos sabemos das conseqüências sobre a valorização cambial (ao atrair recursos externos especulativos) e sobre a elevação dos níveis de gastos públicos que a própria ortodoxia busca combater com tanta convicção (o pulo do gato, no caso, é não considerar a despesa orçamentária com juros como gasto público…). Os dados falam por si: ao permitir um regime de câmbio dito flutuante, o real é uma das moedas que mais se valorizaram frente ao dólar nos últimos anos. Com um estoque de dívida intena beirando o 1,8 trilhão de reais, uma taxa de SELIC a 10,25% exige um valor anual de despesas financeiras no orçamento federal de quase R$ 200 bilhões.

Mas o fato é que qualquer manual básico de macroeconomia apresenta algumas alternativas para a redução da chamada “demanda agregada”, ou seja, o conjunto das capacidades monetárias que empresas, indivíduos e governo têm para tentar realizar a oferta agregada de bens e serviços. Apenas uma delas é a elevação da taxa básica de juros, a nossa SELIC. Mas há outro instrumento que não foi quase utilizado ao longo dos 8 anos em que Meirelles esteve à frente do BC. Trata-se do chamado “depósito compulsório”.

Em termos bem sintéticos e simplificados, esse conceito refere-se a um percentual sobre o total dos ativos dos bancos e demais instituições financeiras que os mesmos são obrigados a recolher junto ao BC. Trata-se de uma medida prudencial em termos do sistema financeiro. Como já vimos em outros artigos, os ativos dos bancos são compostos, fundamentamente, por depósitos de terceiros, não pertencem a tais instituições. E elas se utilizam de tais recursos para suas operações de empréstimo e crédito. Ou seja, elas captam recursos de uns e emprestam os mesmos a outros. E o diferencial entre a taxa que remuneram os depósitos e a taxa que cobram dos que tomam os emprestimos é uma de suas fontes de lucros. Um aspecto importante no funcionamento do sistema financeiro é que os bancos tendem a emprestar um volume maior do que aquele que têm em depósitos. É a chamada “alavancagem” do sistema, que se revela catastrófica nos momentos de crise, com o temido fenômeno da “corrida aos bancos”. Se todos forem recuperar seus depósitos num curto periodo de tempo, os bancos ficam a descoberto, quebram. Daí porque fatores como credibilidade e clima de confiança são fundamentais no equilíbrio do sistema.

Assim, para atenuar tais riscos, os BCs exigem esse depósito compulsório. Uma parte dos depósitos totais do sistema financeiro ficam retidos junto à autoridade monetária, de maneira a evitar uma exposição exagerada dos bancos. 

Por outro lado, esses depósitos cumprem igualmente uma função essencial no equilíbrio macroeconômico. Como vimos, a ação dos bancos, ao ofereceram empréstimos, assemelha-se às impressoras da Casa da Moeda. Eles introduzem novas capacidades monetárias na economia, o chamado fator multiplicador bancário. Os bancos, assim, geram moeda. Com o depósto compulsório, o governo tem uma outra ferramenta para reduzir a quantidade de moeda no mercado, ou seja, para reduzir a demanda agegada. Assim, percebe-se que elevar o depósito compulsório pode resultar no mesmo efeito econômico que promover a elevação da taxa SELIC. No nosso caso atual do Brasil, com a vantagem de não elevar os gastos financeiros do governo federal e não estimular ainda mais a entrada de capitais externos de natureza especulativa.

Há outras medidas no pacote com a mesma intenção de conter a euforia consumista. São as decisões de maiores garantias para concessão de crédito ou consórcios. O objetivo é também diminuir o ritmo de consumo, uma vez que tais medidas tendem a aumentar os juros na ponta para os consumidores ou tomadores de empréstimos. Mas, de qulaquer maneira, sem comprometer o nível de despesas financeiras do governo federal, a exemplo do que ocorre com o aumento da SELIC.

Para finalizar, já antecipo que a pergunta que não quer calar não vai ser respondida aqui neste curto espaço. Mas vale a pena trazer a dúvida. Seria realmente necessário o governo lançar tais medidas? Apresentar um pacote que traz embutido no seu interior a intenção de aumentar os juros na ponta, para reduzir o nível de consumo atual? Afinal, a saída para a crise brasileira até poucos meses atrás não foi justamente baseada em medidas governamentais para estimular o consumo interno, com o intuito de evitar um quadro recessivo em nosso País mais forte do que o verificado em 2009?

A questão é bastante polêmica e não há uma única resposta segura. Mas o nível de consumo que a sociedade brasileira está efetuando parece apresentar sinais de estar acima da capacidade de produção interna. Tanto que boa parte dos bens passaram a ser importados, nesses últimos tempos. O nível de endividamento parece estar acima da capacidade das famílias e empresas honrarem tais compromissos no curto e médio prazos. É o risco de nos aproximarmos de uma eventual “bolha”de crédito. 

Aquilo que o economês chama de “nível de capacidade instalada” parece estar chegando próximo a seu limite, em função do baixo nível de investimenos das últimas décadas. Isso significa que o aumento da demanda agregada não consegue ser atendido pela oferta. Tal tendência pode ser ainda mais acentuada caso o governo adote as tão necessárias medidas no setor externo, com desvalorização cambial e controle de capitais externos especulativos. O consumo de bens importados será desestimulado e a demanda vai pressionar mais por similares produzidos internamente. A grande dificuldade é que a recuperação da capacidade produtiva não reage tão rapidamente como a sede consumista.

Assim, talvez faça realmente sentido a linha geral do pacote anunciado. O debate fica mais no plano da sintonia fina, dos pequenos ajustes para evitar que as conquistas recentes não sejam zeradas por um ajuste viés de ortodoxo, como os cortes de gastos públicos não-financeiros. Mas voltaremos ao assunto.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Redação

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