As origens liberais do “Deus Mercado”

Claudio Santana Pimentel

 

O presente texto pretende apresentar a partir dos trabalhos de Peter Seele e Lucas Zapf, as origens liberais da noção de Deus Mercado. Minha intenção é expor a tese básica dos autores, a argumentação que a fundamenta e suas implicações e consequências. Dessa maneira, pretende-se contribuir para uma visão um pouco mais refinada da discussão ética em economia e de suas implicações para a sociedade, a partir de uma pesquisa pouco acessível ao público de língua portuguesa e que tende a ficar restrita aos especialistas.

Seele e Zapf têm se dedicado a pesquisar a relação entre religião e economia, e apresentaram uma interessante discussão sobre a percepção divinizada do mercado em dois de seus trabalhos, Economics, um capítulo de The Oxford Handbook of The Study of Religion, obra parcialmente disponível para visualização no Google Books, e, principalmente, em seu artigo “The Markets Have Decided”: Markets as (Perceived) Deity and Ethical Implications of Delegated Responsibility, em português, em livre tradução: “Os Mercados decidiram”: Mercados (percebidos) como divindade e implicações éticas da responsabilidade delegada. 

Em Economics, os autores fazem uma breve recensão das relações entre economia e religião, desde a Antiguidade Clássica até o mundo contemporâneo. Com Adam Smith (1723-1790) a teoria econômica ganha estatuto próprio. Ela deixa de ser vista como uma administração dos bens domésticos que se estende, guiada pelos mesmos princípios de parcimônia, aos bens da Cidade (Aristóteles), ou como algo que deve estar submetido à concepção religiosa de mundo, como na Idade Média, sendo disso exemplo a condenação da usura por Tomás de Aquino (e que falta o santo nos faz na hora de negociar um empréstimo no banco!). Ainda na Modernidade nascente, a economia encontra-se submetida aos interesses dos recém-surgidos estados nacionais, período conhecido como Mercantilismo. Adam Smith transforma completamente a maneira de se compreender a atividade econômica, afirmando sua independência dos interesses político-teológicos e sua completa autonomia. É o crescimento da riqueza, por meio da livre atividade econômica, que conduz ao desenvolvimento da sociedade, e esse crescimento e desenvolvimento somente são possíveis numa economia livre: Liberalismo à vista.

O indivíduo é egoísta, motivado pela busca do seu próprio benefício. Mas, ao agir em associação com outros indivíduos, cada um deles interessado no seu próprio bem-estar, o resultado obtido é vantajoso para todos, e maior do que eles poderiam alcançar agindo isoladamente. 

Como explicar o funcionamento dessa “máquina” (metáfora que os autores não empregam, mas vale a pena lembrar que estamos no mundo de Isaac Newton), o mercado? Segundo Seele e Zapf, é aí que Smith emprega a metáfora da “mão invisível”. Um salto metafísico, em que a autonomia do mercado e a perfeição (suposta) de seu funcionamento são justificadas a partir do transcendente:

O pensamento econômico de Smith escapou das restrições religiosas da escolástica medieval. Ele confia na análise racional e naturalista. Entretanto, Smith não era um ateu nem mesmo um secularista. A crença em uma mão divina mantendo a ordem social era ainda presente. A “mão invisível” sugere a divina providência. Sua revelação é o mecanismo do mercado […]. Portanto, religião não é apenas um tema subjacente para Smith. Ele aplicou as regras do mercado à própria religião e condenou a preferência política do estado por um grupo religioso, rotulando isso como uma inaceitável intromissão no mecanismo do mercado, dificultando a competição religiosa, eficiência, diversidade e livre escolha. Para Smith, isso era verdade para toda commodity no mercado, incluída a religião. (Seele; Zapf, Economics, p. 115)

 

A ideia de Smith não apenas permaneceu até o século XXI, mas desdobrou-se indo além do seu emprego original. É o que os autores procuram demonstrar em “The Markets Have Decided”. Nele, os autores constatam o emprego de uma retórica teológica nas referências ao Mercado, tanto da parte dos seus operadores, como na linguagem dos jornalistas/colunistas de economia na imprensa, e até mesmo nas palavras daqueles que se pretendem críticos ao sistema. Os operadores do mercado se expressam como sacerdotes; não agem e falem por si mesmos, mas como emissários de uma mensagem superior e inquestionável. Além do plano linguístico, o próprio funcionamento do mercado mostra-se como algo metafísico: “O mercado está em toda parte e em lugar nenhum, ao mesmo tempo. Ele não apenas controla os processos de troca, mas também prevê o futuro e o cria ao mesmo tempo, por atuar hoje no que irá ocorrer amanhã.” (Seele; Zapf, “The Markets…, p. 3).

Assim, a medida em que se atribui ao mercado um caráter metafísico, vai sendo atribuído também personalidade, que é uma característica religiosa fundamental no pensamento ocidental cristão. Não se trata só de metafísica, mas também de religião. Como afirma Zizek em The Pervert’s Guide to Ideology, ao corrigir a afirmação de Sartre, “Se Deus não existe tudo é permitido”, “Se Deus existe, aí sim, tudo é permitido”. Segundo o filósofo, Deus autoriza o crente e legitima suas ações, por mais terríveis que sejam. Vejamos como isso se dá na cabeça dos operadores da economia, voltando a Seele e Zapf:

 

[…] atores no mundo financeiro podem eximir-se das possíveis consequências sociais de suas ações retoricamente, ao fazerem a si mesmos subordinados à vontade do mercado e submissos às feições dessa entidade que não são negociáveis e que são simplesmente passadas aos atores, não inventadas ou justificadas. Isso se alinha com a afirmação de uma “bolha moral” para caracterizar a crise financeira e suas consequências éticas. Uma comparação com a expressão “Eu somente obedeci ordens.” pode explicar porque o mercado como uma entidade metafísica revela padrões definidos no nível da ética individual ao qual os atores individuais que constituem o mercado estão em conformidade. (Seele; Zapf, “The Markets…, p. 19)

 

Ou seja, a percepção do mercado como uma divindade serve para explicar/justificar as decisões econômicas. Não, os economistas não necessariamente sentem prazer em ver aposentados e viúvas à míngua. O mercado o exige. Ao menos, é assim que eles pretendem se justificar. Se você não aceita ou é incapaz de compreender, é um herege (uma sindicalista, por exemplo). Bom, todos sabem onde os hereges terminam… Começo a sentir que há algo queimando…

Se o operador econômico ganha millhões em bônus enquanto milhares de trabalhadores perdem seus empregos e suas famílias seu sustento, estes não são os vilões da história. O mundo funciona assim, dizem eles. E funciona assim porque é metafísica ou teologicamente necessário, o que invalida toda e qualquer crítica ao sistema, que passa a ser um “sacrilégio”.

Bom, entendo eu que se algo é necessário, hoje definitivamente, é a desmitologização e a dessacralização da lógica econômica. A economia precisa ser reduzida aquilo que realmente é: uma forma histórica, e como tudo que é histórico, transitório, da organização dos meios de produção. Forma essa que, no seu atual estágio, atende aos interesses de uma pequeníssima porcentagem da população mundial. 

Ou o mundo continuará a funcionar como desejam os Meirelles e outros sacerdotes do neoliberalismo, com os pobres e os trabalhadores (trabalhadores cada vez mais pobres) a serem imolados na sua pira sacrificial. Como bem mostrou Costa-Gravas, em O Capital:

 

https://www.youtube.com/watch?v=2p7wKCCzUzg align:center

 

Referências

SEELE, Peter; ZAPF, Lucas. Economics. In: STAUSBERG, Michael; ENGLER, Steven (Ed.). The Oxford Handbook of the Study of Religion. Oxford University Press, 2017, pp. 112-123.

SEELE, Peter; ZAPF, Lucas. ” The Markets Have Decided”: Markets as (Perceived) Deity and Ethical Implications of Delegated Responsibility. Journal of Religion and Business Ethics, v. 3, n. 1, 2015.

Redação

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