O batismo de cores criadas comercialmente desafia a nomenclatura

O que inovações e neologismos para designar as cores são capazes de dizer sobre a linguagem e nossa visão de mundo — Por Edgard Murano

 

Uma semana antes do casamento de Grace e Keir Johnston, realizado em fevereiro na ilha de Colonsay, na Escócia, a mãe da noiva enviou à filha uma foto do vestido que planejava usar na cerimônia para saber sua opinião. A peça de elastano, em estilo tubinho, sem mangas e com detalhes em renda, destacava-se pela combinação elegante de cores, embora os noivos não tenham chegado a um consenso sobre quais seriam essas cores. A baixa qualidade da foto, provavelmente tirada com um celular, conferia uma certa ambiguidade aos tons retratados. Dias depois, uma amiga do casal que foi à festa postou a mesma imagem em seu Tumblr acompanhada da seguinte mensagem: “Gente, por favor me ajudem, esse vestido é branco e dourado ou azul e preto? Eu e meus amigos não chegamos a uma conclusão e estamos enlouquecendo com isso.”

Era o início de mais um desses fenômenos efêmeros que nascem e morrem nas redes sociais, batizado de “Dressgate” (um trocadilho entre dress, vestido, e o caso Watergate dos EUA). O assunto, no entanto, para além das expectativas de parentes e amigos próximos do casal, viralizou de tal maneira que, em questão de horas, já era tema de programas matinais e noticiários no mundo inteiro. De um lado, defensores do “azul e preto” e, de outro, entusiastas do “branco e dourado”, caracterizando um verdadeiro Fla-Flu cromático-filosófico onde o que parecia estar em jogo era o próprio destino da humanidade.

150226_SLATEST_TheDress-proof590.jpg.CROP.promo-mediumlarge— Os termos para as cores nas línguas naturais fazem mais do que expressar descontinuidades na percepção do espectro luminoso. O léxico cromático é uma maneira de classificar o mundo, de atribuir valores aos seres e processos cotidianos através das qualidades sensíveis que são organizadas por cada idioma de forma particular — afirma Evandro Bonfim, pesquisador do Museu Nacional-UFRJ.

Embora do ponto de vista óptico (luz) e perceptual (olho-cérebro) todas as pessoas enxerguem as mesmas cores, do ponto de vista da linguagem, afirma Evandro, cada povo tem sua própria “cartela”. Mesmo que o caso do vestido tenha se restringido a uma questão cognitiva, o fato é que uma discussão banal sobre a cor de uma peça de roupa serviu de estopim para deflagrar um velho dilema em nossa cultura. Qual o lugar das cores, afinal, dentro das línguas? De que maneira cada idioma recorta, entre infinitos matizes, determinados tons específicos cristalizando-os sob diferentes nomes? Mais do que apenas ver as cores, só podemos enxergá-las por meio da linguagem?

Cores especializadas

Uma das teorias mais prolíficas no campo da terminologia das cores encontra-se no livro Termos para Cores Básicas: Sua Universalidade e Evolução (1969), do antropólogo Brent Berlin em colaboração com o linguista Paul Kay. De acordo com a tese desenvolvida pela dupla a partir de pesquisas com povos nativos da América Latina, existem sete estágios para classificar as culturas segundo sua percepção cromática:

Estágio 1: escuro/frio e claro/quente

Estágio 2: vermelho (cor impactante)

Estágio 3: verde ou amarelo (presentes na natureza)

Estágio 4: verde e amarelo

Estágio 5: azul (algumas línguas usam uma mesma palavra para designar azul e/ou verde)

Estágio 6: marrom (presente na natureza)

Estágio 7: violeta, rosa, laranja ou cinza.

Para Berlin e Kay, em todas as línguas existiriam termos para preto/escuro e branco/claro. No caso de haver três cores, a terceira seria sempre “vermelho” e, no caso de quatro, a quarta seria “amarelo” ou “verde”. A designação das cores azul, marrom, violeta, etc. estaria reservada a estágios mais avançados do desenvolvimento da linguagem — premissa que angariou críticas segundo as quais esta seria uma visão etnocêntrica e ocidentalizante, pressupondo uma semântica universal. Trocando em miúdos, quanto mais “sofisticada” uma cultura, de mais termos para classificar as cores ela dispõe. É bem verdade que, desde então, outros estudos surgiram, seja para negar ou corroborar as teses esboçadas em Termos para Cores Básicas. Seus postulados, contudo, ainda persistem como referência no campo de estudos das cores.

Na esteira dessa especialização da terminologia cromática, descrita pelos estágios propostos por Berlin e Kay, não deixa de ser surpresa o fato de que a palavra “azul”, até a era moderna, não existisse em alguns idiomas mais antigos, caso do grego, do chinês, do japonês e do hebraico. Em 1858, ao analisar aOdisseia — poema épico escrito no final do século 8 a.C. por Homero —, o pesquisador inglês William Gladstone encontrou cerca de 200 menções à cor preta e 100 à cor branca, mas poucas menções ao vermelho (15 ao todo) e menos de dez ao amarelo e ao verde. Na obra do poeta grego, coisas díspares como ferro e ovelhas, por exemplo, possuem a cor violeta, ao passo que o mel das abelhas é apresentado como verde. Ao termo “azul”, por sua vez, não há menção, haja vista que o mar, para Homero, era “vinho escuro”.

— Nas línguas indígenas brasileiras, por exemplo, não há cores fora dos corpos e superfícies coloridas. Nem se pode também separar a cor de outros atributos, como o vermelho da plenitude existencial, como no caso do Xavante, e o azul, a cor da paisagem mítica e imortal dos Guarani Mbya — explica Evandro.

Tal constatação, longe de indicar algum tipo de daltonismo entre os antigos, mostra como as cores podem ser algo visceral, intimamente ligadas a seres e objetos, muitas vezes impermeáveis à abstração cromática, mais propensas à especificação do que à generalização. Não por acaso, Berlin descobriu que os Aguarunas, no Peru, não possuíam um termo para “cor” genericamente falando, do mesmo modo que a língua Pirahã também não apresenta termos para cores como uma realidade à parte.

— Há muitas línguas que não têm a palavra “música”, embora tenham instrumentos musicais, e isso porque a música é um som ou ruído da natureza como qualquer outro, não se tratando de uma realidade especial separada — explica Bonfim.

Screen Shot 2015-07-07 at 15.54.48Cores de mercado

Em termos contemporâneos, sobretudo em áreas como Design, Moda e Artes Visuais em geral, as nuances de cor são um elemento importante, impossível de ser negligenciado ou simplificado, extrapolando em muito as cores primárias, embora se componham a partir destas. As diferenças são tão sutis que, para não se perder em discussões subjetivas, os tons passaram a ser identificados — e numerados — segundo diversos sistemas e coordenadas, como no caso do famoso Pantone — empresa fundada em New Jersey, nos EUA, em 1962 —, cujo sistema, largamente utilizado pela indústria, chegou a ser incorporado pela legislação de vários países para definir com precisão a tonalidade de suas bandeiras.

A especialização é tamanha — e mais do que justificável, em se tratando de uma questão sui generiscomo a das cores — que todos os anos são lançadas novas edições do Guia Pantone, haja vista que os tons degradam-se com o passar do tempo, alterando assim suas características cromáticas. Além disso, periodicamente a empresa também elege a “cor do ano”, responsável por ditar tendências no mercado. Em 2015 foi eleita a cor “marsala”, um tom mais fechado e inspirado no vinho homônimo; em 2014, a cor escolhida foi a “orquídea radiante”, cuja descrição no site da Pantone carrega nas tintas do maneirismo publicitário: “Radiant Orchid floresce com a confiança e o ambiente mágico que intriga o olhar e faz faíscas na imaginação. É um roxo mais que expressivo, criativo e abrangente para não falar no seu charme sedutor. A harmonia cativante da mescla entre fúcsias, tons roxo e rosas, Radiant Orchid emana grande alegria, amor e saúde”.

A necessidade mercadológica de descobrir e nomear novas cores se faz sentir, a exemplo do repertório cromático “radiante” da Pantone, em todos os segmentos nos quais a estética seja um fator preponderante. De marcas de esmalte e tinturas para cabelo até roupas, cosméticos e tintas de parede, reside sobretudo na cor o apelo da novidade de cada produto. A Suvinil, por exemplo — tradicional marca de tintas imobiliárias da BASF —, renova seu leque de cores a cada quatro anos em média, cabendo sempre à área de marketing da empresa a responsabilidade de batizar os tons.

— Os nomes são definidos por um grupo de trabalho da área de marketing a partir de analogias com objetos, lugares e sensações que remetam à cor apresentada, por exemplo. A escolha do nome é feita a partir da junção dessa analogia com o apelo que o nome terá entre os consumidores — explica Mauro Borba Porto, gerente de produto da Suvinil.

A cada dia surgem inovações e neologismos de uma criatividade tão rica e colorida quanto aquela determinada pelas combinações rígidas de sistemas de cores, como o CMYK, adotado para publicações impressas (do inglês CyanMagentaYellow e Black Key), ou o RGB, utilizado em monitores (RedGreenBlue). Uma conjunção de fatores — mercado, comportamento, tendência, etc. — é considerada para o desenvolvimento de uma nova cor — ou, antes, para o batismo de uma tonalidade até então conhecida apenas por suas coordenadas cromáticas.

— Divulgamos anualmente uma pesquisa com as tendências de cores da marca. Cerca de 30 tons do leque de cores da marca são selecionados a partir de estudos comportamentais e estéticos, realizados principalmente no Brasil, a partir da observação de movimentos sociais e de sentimentos compartilhados pela sociedade no momento analisado. Após essa observação, analisamos as cores associadas aos comportamentos e ideias identificados e então cruzamos com algumas cores selecionadas a partir de uma pesquisa estética, da análise de materiais e dos mercados de design e decoração — explica Porto, que destaca fatores comportamentais e estéticos envolvidos no lançamento de uma cor, como se equivalentes a um Zeitgeist cromático (“espírito de época”, em alemão).

Cores e estereótipos

No terreno dos comportamentos e sensações, é a criatividade publicitária que costuma se sobressair ao designar as cores. Marcas de esmalte já são velhas conhecidas do consumidor brasileiro por batizarem seus tons com nomes extravagantes e vendáveis, como “vermelho paixão”, “tapete vermelho”, “shade of innocence”, “goiabiquini” e “shimmering orange crush”, só para ficarmos em exemplos mais sugestivos.

A Colorama, uma das marcas de esmaltes mais conhecidas do mercado brasileiro, é outra empresa que, assim como a Suvinil, faz pesquisas de tendência e comportamento para lançar seus produtos. “Como para a mulher brasileira o esmalte é um acessório fundamental e, muitas vezes, a escolha da cor está relacionada ao seu estado de espírito, o nome do esmalte entra nesse universo para tornar tudo mais lúdico e interessante”, informa a porta-voz da empresa por meio de sua página oficial no Facebook. “Por exemplo, o Batom Vermelho, da linha Única Camada, representa bem a busca pelo tom vermelho sedutor, assim como a ousadia de uma cor mais vibrante e arrojada é perfeitamente traduzida pelo nome Atrevida”.

Foi de certa forma atrevimento, aliás, que deu dores de cabeça a uma outra marca de esmaltes brasileira. Eventuais excessos de criatividade, se é que se pode colocar nesses termos, levaram a Risqué (“ousada”, em francês) a ser duramente criticada nas redes sociais por reproduzir estereótipos de gênero em sua campanha. O lançamento da coleção “Homens que amamos”, em março deste ano, trouxe cores batizadas com expressões e frases que romperam com o mais tênue referencial figurativo que costuma servir de elo entre os termos e as cores designadas, apostando em abstrações conceituais para evocar correspondências entre homens e tons — “João disse eu te amo” (nome da cor violeta); “Guto fez o pedido” (cinza); “Zeca chamou pra sair” (cinza-escuro); “André fez o jantar” (laranja), entre outras cores que descrevem comportamentos masculinos que, na cabeça dos idealizadores da campanha, seriam almejados pela maioria das mulheres. Não deu outra: no mesmo dia, paródias de caráter feminista inundavam as redes sociais — “Daniel me mandou tirar o batom vermelho”, “Antonio acha que lugar de mulher é na cozinha” — levando as críticas ao topo dos trending topics do Twitter. (Até o fechamento desta edição, a assessoria de imprensa da marca não havia respondindo às solicitações da reportagem para comentar os critérios da campanha.)

Se a marca de esmaltes pecou pelo excesso de abstração — e de estereótipos, diga-se de passagem —, o fato é que volta e meia a língua se utiliza de processos morfológicos e semânticos para “traduzir” uma especificidade cromática lastreada em elementos da realidade ou mesmo em sensações: amarelo-canário, amarelo-queimado ou mostarda, amarelo-manga, vermelho-sangue, azul-celeste, azul-piscina, verde-água, verde-oliva, vermelho-terracota, branco-gelo, azul-turquesa, entre outras cores que nada ficam a dever à cartela de cores homérica. Algumas denominações, como a já citada “orquídea radiante”, podem até causar estranheza ou admiração. Outras, porém, de tão recorrentes, acabaram abandonando a cor básica que as acompanhava e passaram a responder, por exemplo, apenas pelo termo específico — terracota (vermelho), celeste (azul), mostarda (amarelo), bordô, etc.

Tome-se o caso da cor “bordô”, ou castanho-avermelhado (em inglês, maroon): trata-se literalmente da cor do vinho tinto de Bordéus (Bordeaux), na França. O repertório cromático guarda ainda surpresas interessantes, como a cor “xanadu”, referência ao nome popular da planta Philodendron, nativa da Austrália, que consiste de um verde-acinzentado; ou o azul “ONU”, uma espécie de azul mais claro e apastelado que a média, característico do logotipo das Nações Unidas; o “feldgrau” (field gray ou, em tradução livre, cinza campo), semelhante ao verde, marrom e cinza utilizados pelas tropas alemãs na primeira metade do século 20; o “gamboja”, um tom mais profundo do açafrão, entre o amarelo-mostarda e o laranja, e que dá nome ao pigmento empregado por monges budistas para tingir suas vestimentas; e ainda o poético “carmesim”, um vermelho forte, brilhante e profundo marcado sutilmente pelo azul, que resulta num tom de púrpura, entre o vermelho e o rosado (a cor deriva do corante produzido por um inseto e às vezes é atribuído ao céu do crepúsculo).

“A cor integra um dos domínios mais ricos da experiência diária do homem”, afirma a pesquisadora Emilia Maria Peixoto Farias, da Universidade Federal do Ceará, em seu artigo “A linguagem metafórica das cores” (http://goo.gl/XQ8Mc1). Para ela, “a experiência cromática serve como fonte não somente para descrever e categorizar objetos do mundo mas, também, para expressar emoções e sentimentos numa comprovação de que o homem conjuga linguagem e sistema visual para falar do mundo exterior e do seu mundo interior”.

Cor e linguagem

Essa conjugação entre idioma e visão, objetividade e subjetividade, serve-se, como de praxe, de processos metafóricos e metonímicos para acontecer, valendo-se tanto de sentidos figurados como de não figurados para traduzir a linguagem visual. No artigo “Os matizes do vinho e suas definições”, a pesquisadora Cristine Henderson Severo, da UFRGS — não por acaso, proveniente de um estado com forte tradição vinícola — aborda o repertório cromático dos enólogos sob o ponto de vista da semântica, equacionando o fator visual com o cultural na formação dos vocábulos. “A lexicalização da cor deriva de processos individuais, baseados diretamente na experiência visual, e coletivos, originados na construção de conceitos pertencentes a uma determinada cultura” (no caso, a dos especialistas em vinhos).

O estudo analisa as propriedades conceituais de 18 termos utilizados pela Enologia para designar as tonalidades do vinho que, muitas vezes, indicam a idade da bebida. Esses termos, segundo Cristine, se dividem em dois tipos: 1) “termos que apresentam metaforização, em que os valores focais recuperam uma imagem externa ao léxico das cores”, como amarelo-âmbar, amarelo-palha, vermelho-rubi, vermelho-tijolo e rosa-cereja, e 2) “termos que apresentam especificação, em que, ao contrário da metaforização, não se recupera uma imagem externa que possa auxiliar na caracterização de uma determinada cor básica”, como amarelo nítido, branco com reflexos, branco com reflexos alaranjados, rosa-pálido e vermelho-violáceo, entre outras cores correntes do vocabulário sommelier.

Em termos de metáfora e metonímia, um bom exemplo dessa tese é o amarelo-canário, lastreado na imagem da conhecida ave da fauna brasileira. Temos aqui subentendido que a cor de um pássaro específico (canário) é a cor do amarelo em geral — ou seja, a parte pelo todo —, estabelecendo-se assim, predominantemente, um processo metonímico. Já no caso do amarelo-ouro ou amarelo-dourado, por sua vez, o que predomina é o processo metafórico, em que se compara a qualidade mineral do ouro, sua textura e seu brilho à cor amarela.

Mais do que discutir a adequação dos termos às cores designadas — seja o metonímico “amarelo-canário”, a poética “orquídea radiante” ou o conceitual “João disse eu te amo” —, esses exemplos do repertório cromático contemporâneo apenas mostram o quão arbitrária é a relação entre as palavras e os significados, dizendo mais sobre o idioma em si do que sobre os tons propriamente ditos. Seja “azul” ou “vinho escuro” o mar de Homero, azul e preto ou branco e dourado o vestido da mãe escocesa, persistem o engenho e a criatividade na nomeação do espectro luminoso como uma daquelas questões intangíveis, uma vez que discriminá-la e denominá-la implica em, inevitavelmente, circunscrevê-la e limitá-la. Talvez seja desse daltonismo do método, dessa ponte impossível de estabelecer entre a cor e seu nome, que resulte uma linguagem tão carregada nas tintas da expressão, como se tentássemos compensar, reféns dochiaroscuro verbal, o fato de enxergarmos a língua apenas em seus contrastes.

*Artigo publicado na revista Língua Portuguesa 
(Ed. Segmento), julho de 2015
Redação

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