A justiça na era da programação

Em meados do século XIX, quando meu bisavô paterno foi Juiz Provincial na Comarca de Xiririca (atual Eldorado – SP), todos os atos processuais eram todos manuscritos. Portanto, o equilíbrio entre os atores processuais era muito grande. Advogados e promotores produziam manualmente suas alegações, as decisões judiciais também eram manualmente escritas pelos membros do Judiciário.

O advento da máquina de escrever começou a provocar um desequilíbrio entre os atores processuais. Enquanto advogados e promotores datilografavam suas peças os juízes passaram a ser apoiados por datilógrafos nos cartórios e nas salas de audiência. Quando muito, eles datilografavam suas sentenças em casa.

Quando os computadores começaram a ser utilizados nos Fóruns eles apenas substituíram as máquinas de escrever. Durante um período os atores processuais continuaram trabalhando com a mesma dinâmica estabelecida durante a era da máquina de escrever.

O advento do processo digitalizado provocou uma ruptura. Quando os programadores entraram em cena, os advogados ficaram numa posição processual bem mais frágil do que os promotores e juízes. Sempre que os sistemas são modificados, os juízes e promotores se adaptam rapidamente às novas regras e podem contar com os programadores que prestam serviços ao Judiciário e ao Ministério Público.

Como cada Tribunal utiliza um sistema diferente (o da Justiça Comum de São Paulo não é igual ao utilizado pelos outros TJs, o da Justiça do Trabalho é diferente do da Justiça Federal e dos empregados pelos TJs, cada Tribunal em Brasília utiliza seu próprio sistema de e-processo), os advogados são sempre pegos de surpresa. A capacidade de adaptação dos defensores não é a mesma da dos juízes e promotores. Sempre que o sistema muda, o advogado fica num mato sem cachorro.

Ontem, por exemplo, perdi quase 2 horas para cadastrar uma petição incidental no website do STJ. O sistema havia mudado e ficado muito diferente do que era quando eu o utilizei pela última vez alguns meses antes. Semana passada, por mais que tenha tentado, não consegui cadastrar uma petição num e-processo em trâmite perante o TST. Liguei para o suporte técnico do Tribunal e fui deixado ao telefone sem uma resposta para minha dúvida. Visitei os escritórios de vários colegas e não conseguir realizar a operação nos computadores deles. Uma tragédia… Após 27 anos de advocacia perdi um prazo. Apesar de ter feito as contra-razões a um Agravo Interno não consegui enviar a petição para o TST.

Hoje fui almoçar com a advogada Kátia Fogaça Simões, colega da época da faculdade. Após comentar o que havia ocorrido comigo ela me contou uma historia recente ainda mais esdrúxula que ocorreu com ela. Ela fez um acordo trabalhista em audiência, mas a ata respectiva se perdeu antes de ter sido cadastrada no sistema do TRT/SP. Nenhuma das partes tinha uma cópia da mesma. A Vara produziu a certidão abaixo. Minha colega cadastrou uma petição com os termos do acordo, mas a empresa ainda não se manifestou e deixou de cumprir o avençado.

 

Imaginem a seguinte situação: diversas testemunhas são ouvidas e a ata desaparece antes de ser cadastrada no e-processo. Dias depois uma testemunha fundamental é atropelada e morre. O prejuízo causado á parte será inevitável e irreparável, mas o culpado pelo dano será o sistema ou o programador (um ator que se tornou essencial ao processo digital muito embora não precise ter qualquer formação jurídica).

Alguma coisa deve ser feita. As soluções mais simples continuam sendo as melhores. Antigamente cada parte ficava com uma cópia da ata de audiência datilografada (ou digitada num computador). Caso ocorresse qualquer coisa com os autos do processo a restauração do mesmo era possível, pois os advogados podiam colaborar com a Justiça.

Quando os programadores entraram em cena a colaboração dos advogados não deixou de ser uma necessidade processual. Muito pelo contrário. Bugs como o que ocorreu no caso da minha colega Kátia Fogaça Simões seriam facilmente contornáveis se as partes recebessem uma cópia impressa da audiência. Problemas como os que afetaram minha atuação profissional, porém, não serão facilmente contornados. Mas alguma coisa terá que ser feita, pois a jurisdição não é um privilégio a ser distribuído por programadores e sim um direito que os juízes devem colocar à disposição dos cidadãos. 

 

 

PS: No detalhe foto do Fórum de Eldorado-SP tirada por mim alguns anos atrás. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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