Das bolinhas de gude às crises financeiras

“O mundo é um lugar estranho onde estranhas coisas acontecem!” Meu pai costumava dizer isto sempre que sua imaginação era subitamente capturada por algo pitoresco, impensado, caótico e, enfim, estranho. Hoje uma destas coisas estranhas ocorreu comigo.

Uma música vulgar e irritante irradiava do carro tunado parado próximo ao ponto de ônibus, então desci a rua. Encostei na mureta que sustenta a grade da escola e fiquei com o olhar tão nublado quanto o tempo, ora observava as rolinhas tristes que se alimentavam na grama ora mirava os prédios cabisbaixos morro abaixo. Escapando por uma fenda nas nuvens, o sol reluziu em algo bem a minha frente do outro lado da grade.

Intrigado cutuquei o objeto reluzente com o guarda-chuva notando que ele estava quase todo enterrado. Removi o mesmo de sua tumba e o fiz rolar até a grade. Apanhei e limpei o que se revelou uma bolinha de gude. Mas então, ocorreu o impensado. Minha imaginação, quase sempre sonolenta, despertou e chutou minha objetividade.

“Não, isto não é apenas uma bolinha de gude usada, esquecida, perdida, abandonada, enterrada por uma eternidade. Isto é uma parte do seu passado, de sua infância. Lembra?”

Lembrei de tudo. Das minhas apostas ousadas de 20, 30, 40, 50, 100 bolinhas de gude em partidas emocionantes disputadas na calçada do Arnaldo, sob a sombra de um enorme abacateiro que já deixou de existir há mais de uma década. Lembrei que quando comecei a jogar bolinhas não era nem bom nem ousado. Apostava apenas uma burga (alguém ainda usa esta gíria para designar bolinha de gude?) de cada vez e voltava para casa acabrunhado por ter perdido apenas 5 ou 6 delas num dia.

Também lembrei que quando perdi o interesse nas bolinhas fiquei um tempão jogando milhares delas da laje, sentindo um prazer imenso ao ver a molecada disputando as bolinhas no tapa e reclamando das pelotadas que levavam na cabeça e nas costas. Da imaginação fui à lembrança, desta voltei mais tarde à segurança da razão. E se o sistema financeiro funcionar exatamente daquela maneira?

Primeiro as pessoas adquirem algumas ações (bolinhas) e então, inseguras, passam a apostar algumas delas com medo de perder. O sucesso as faz acumular muitos títulos então elas passam a fazer apostas cada vez maiores e mais ousadas sabendo que poderão recuperar as perdas que eventualmente sofrerem. Então, em algum momento, cansadas daqueles títulos (ou das bolinhas) resolvem liquidar tudo de uma só vez porque elas já não valem nada. O valor de uma coisa é subjetivo para quem tem aquilo em excesso e desperdiçar. O valor só é objetivo para quem deseja adquirir o que ainda não tem.

Para mim, moleque travesso, não fazia sentido acumular milhares bolinhas que eu não mais desejava e que não queria ter o trabalho de vender. Suponho, porém, que quem tem ações não deseja mais ou que precisa desesperadamente vender seja obrigado a abaixar o preço até que o valor subjetivo das mesmas encontre a objetividade. As bolinhas que eu joguei não tinham preço para mim (elas somente foram fonte de prazer enquanto estavam sendo adquiridas nas apostas) e eram gratuitas para os garotos que lutavam para as apanhar.

Os títulos de crédito podres apostados intensamente nas bolsas de valores pouco antes da crise financeira eram como as minhas bolinhas (não tinham valor algum). Mas ao contrário de mim, que não perdi nada ao me livrar do que já não desejava, os apostadores do mercado financeiro continuavam querendo lucrar no exato momento em que haviam perdido quase tudo. O desespero deles quebrou a economia porque produziu mais desespero. Suponho que desespero financeiro e crédito sejam coisas incompatíveis.

Meu desinteresse produziu apenas alegria dos outros moleques, além de alguns galos é claro. Pode uma crise financeira ser evitada mediante a destruição ou distribuição gratuita dos títulos indesejados? Esta meus caros é a pergunta que somente os economistas podem responder. Felizmente não sou economista, sou apenas alguém que encontrou esta bolinha de gude: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=942717052418790&set=a.198878050136031.49141.100000415136357&type=1&theater .

 
Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. minha bolinhas de gude

    Interessante que lendo seu artigo também me lembrei das minha bolinhas de gude, lembro como se fosse hoje quando ainda moleque enterrei junto com um amigo de infância um lata (aquelas de leite ninho) cheia de bolinha de gude no pátio de casa, isso a mais de 35 anos atrás, na casa em que morava na época, hoje nem sei mais se alguem encontrou aquela lata, talvez tenha modificado o pátio e encontrado elas. Mas na questão financeira do texto achei muito inteligente a comparação da sua vivência de época de criança com o uso das bolinhas de gude, realmente parece-me que o Mercado Financeira faz exatamente isto que você colocou no seu texto, que aliás foi muito bem colocado, parabéns! por último aproveitando, eu acabei de solicitar sua amizade no seu facebook. abraços!

    1. Sem querer desenterrei suas

      Sem querer desenterrei suas bolinhas de gude. Ha, ha, ha…

      O seu comportamento (enterrar as bolinhas) é muito diferente do meu (que as doei aleatoriamente aos moleques interessados). As bolinhas que enterrou você poderia desenterrar a qualquer momento, desde que não esquecesse o local.  No meu caso, as bolinhas somente poderiam ser recuperadas se eu voltasse a fazer o que não desejava mais fazer (jogar e apostar). Mesmo tendo esquecido, você considerou suas bolinhas um tesouro. Eu já não atribuia às minhas valor algum. Portanto, o seu comportamento também foi “econômico” (poupar e esconder). Talvez até mais econômico do que o meu.

      Suponho que todas aquelas pessoas que lucraram produzindo a crise financeira tenham depositado seus recursos (suas bolinhas) em Bancos suíços. Como você, eles enterraram seus tesouros num lugar seguro longe dos olhos de todos os curiosos. Você esqueceu o local exato onde enterrou suas bolinhas. Eles não esquecerão os números de suas contas e as senhas de acesso. O mundo é um lugar injusto, meu caro. Se a Justiça fosse um dado da Natureza Naturante (expressão cara à filosofia de Baruch Spinoza) ocorreria exatamente o oposto: você reencontraria a infância através das bolinhas que enterrou e eles esqueceriam onde depositaram o dinheiro que ganharam destruindo as infâncias de dezenas de milhões de crianças no primeiro mundo e centenas de milhões de outras nos países mais pobres que foram afetados pela ganância desenfreada e desregulada deles. 

      Excelente comentário o seu. Grato. 

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