Harry Potter e a teoria do campo político de Pierre Bourdieu

A globalização é um fenômeno econômico e cultural que produz ícones, modas e febres que se espalham rapidamente e que com igual velocidade são substituídas por outras. A tensão criada por um sucesso editorial global que é transposta para o cinema dificulta aos interessados em Literatura e Teoria Literária avaliar com distanciamento e profundidade obras que são vorazmente consumidas por adolescentes em quase todos os países. É preciso a onda ter passado para se poder meditar sobre o que cada obra significa ou pode significar. É o que farei aqui.

Harry Potter é um personagem que dispensa apresentação. Todos o conhecem dos livros ou dos filmes. Há 193 milhões de referências no Google associadas a este personagem. O aspecto que mais me interessou nos livros/filmes foi a existência de dois campos distintos com regras distintas e que no entanto pertencem ao mesmo universo literário criado pela autora: de um lado os mágicos (entre os quais Harry Potter se encontra), de outro as pessoas normais (chamados de trouxas).

Para analisar a articulação entre os dois campos fictícios criados por J. K. Rowling recorrerei à teoria dos campos de Pierre Bourdieu. Em seu livro “O Poder do Simbólico”, ao se referir ao campo político, o autor francês é bem preciso. Ele afirma que o “…campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de ‘consumidores’, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar da produção.”

O “…campo político exerce de fato um efeito de censura ao limitar o universo do discurso político e, por este modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao espaço finito dos discursos suscetíveis de serem produzidos ou reproduzidos nos limites da problemática política como espaço das tomadas de posição efetivamente realizadas no campo, quer dizer, sociologicamente possíveis dadas as leis que regem a entrada no campo. A fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou impensável para uma classe de profanos determina-se na relação entre os interesses que exprimem esta classe e a capacidade de expressão de seus interesses que a sua posição nas relações de produção cultural e, por este modo, política, lhe assegura.”

Um dos problemas mais delicados da política moderna é a representação. A quem os políticos representam? A população que os elegeu, quem deu dinheiros eleitorais para suas campanhas, os partidos políticos a que estão filiados ou seus próprios interesses? Antes de responder estas perguntas é preciso reconhecer que a eleição implica numa “…fides implícita, uma delegação global e total pela qual os mais desfavorecidos concedem em bloco ao partido da sua escolha uma espécie de crédito ilimitado, deixa caminho livre aos mecanismos que tendem a retirar-lhes a posse de qualquer controle sobre o aparelho.”

Mais adiante Bourdieu esclarece que os “…que dominam o partido e têm interesses ligados com a existência e a persistência desta instituição e com os ganhos específicos que ela assegura, encontram na liberdade, que o monopólio da produção e da imposição de interesses políticos instituídos lhes deixa, a possibilidade de imporem os seus interesses aos mandatários como sendo os interesses dos seus mandantes.” Em razão de sua dinâmica interna o campo político opera uma verdadeira universalização dos interesses particulares das pessoas que controlam os partidos. É assim que a atividade política se desvia permanentemente do cuidado dos interesses públicos da população e passa a ser um mercado em que ocorrem as negociações de cargos, de contratos públicos e de favorecimentos legais, quase legais e até ilegais.

Mas isto não é uma tarefa fácil. Porque os políticos estão mais comprometidos com o campo político do que com qualquer outra coisa. “Nada há que seja exigido de modo mais absoluto pelo jogo político do que esta adesão fundamental ao próprio jogo, illusio, involvement, commtiment, investimento no jogo que é produto do jogo ao mesmo tempo que é a condição de funcionamento do jogo: todos os que têm o privilégio de investir no jogo (em vez de serem reduzidos à indiferença e à apatia do apolitismo), para não correrem o risco de se verem excluídos do jogo e dos ganhos que nele se adquirem, quer se trate do simples prazer de jogar, quer se trate de todas as vantagens materiais ou simbólicas associadas à posse de um capital simbólico, aceitam o contrato tácito que está implicado no fato de participarem no jogo, de o reconhecer deste modo como valendo a pena ser jogado, e que os une a todos os outros participantes por uma espécie de conluio originário bem mais poderoso do que todos os acordos abertos ou secretos.”

Em razão da natureza do campo político (tal como é percebido e descrito por Pierre Bourdieu) é tolice acreditar que existe um conflito entre a esquerda e a direita. Ambas só existem dentro do campo e em função dele. Tanto a esquerda quanto a direita estão mais comprometidas com a preservação do jogo do que com a modificação dos seus fundamentos. O autor esclarece que “…os partidos, como as tendências no seio dos partidos só tem existência relacional e seria vão tentar definir o que eles são e o que eles professam independentemente daquilo que são e professam os seus concorrentes no seio do campo.”

Esta existência relacional obriga os participantes do campo político a modificarem suas posições sempre que seus adversários mudam seus discursos e propostas. É impossível manter claramente as distinções quando os discursos e propostas se tornam idênticos. O persistência do antagonismo leva os participantes do jogo a adorarem as plataformas e propostas dos adversários apenas para poder manter suas posições dentro do campo político. Não é a toa que Bourdieu afirma que “…a oposição entre ‘direita’ e ‘esquerda’ se pode manter numa estrutura transformada mediante uma permita parcial dos papéis entre os que ocupam estas posições em dois momentos diferentes (ou em dois lugares diferentes): o racionalismo, a fé no progresso e na ciência que, entre as duas guerras, em França como na Alemanha, constituíram o ideário de esquerda enquanto que a direita nacionalista e conservadora se dava mais ao irracionalismo e ao culto da natureza, tornaram-se hoje, nestes dois países, no coração do novo credo conservador, fundamentado na confiança no progresso, na técnica e na tecnocracia, enquanto que a esquerda se vê recambiada para temas ideológicos ou práticas que pertenciam exclusivamente ao pólo oposto, como o culto (ecológico) da natureza, o regionalismo e um certo nacionalismo, a denúncia do mito do progresso absoluto, a defesa da ‘pessoa’, tudo isto banhado de irracionalismo.”

Na obra da escritora Harry Potter há uma evidente distinção entre o campo mágico e o campo dos trouxas. Harry, um bruxo, é criado por trouxas. Mas seu destino só pode se realizar entre seus iguais, entre as pessoas normais ele seguiria sendo uma nulidade (fato representado simbolicamente por seu quarto embaixo da escada). As regras que se aplicam ao campo dos trouxas excluem da disputa entre Harry Potter e Voldemort, por exemplo, a possibilidade deste se vingar na família de trouxas que acolheu e cuidou do jovem bruxo quando ele era apenas um bebê.

Como no campo político descrito por Pierre Bourdieu, os bruxos existem uns em relação aos outros, tudo que não pertence ao campo em que eles se encontram é incapaz de determinar suas ações e o resultado de suas disputas. Harry Potter lidera um partido. Voldemort lidera outro. Ambos tem uma legião de seguidores mais ou menos fiéis e as disputas entre os líderes engendram conflitos paralelos entre os membros dos dois partidos antagônicos.

As batalhas entre Harry Potter e Voldemort se dão sempre no campo mágico. Quando Harry Potter está no campo dos trouxas Voldemort não o incomoda, assim como não ataca os trouxas que ajudaram o herói quando ele se ausenta deste. Quase toda a ação do campo mágico se dá na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts  e em seus arredores. O território em que a ação dos personagens ocorre é geograficamente isolado do território dos trouxas (identificado à moderna Londres).  Na obra de J. K. Rowling, Hogwarts está para a moderna Londres como o Brasília para o Brasil.

O distanciamento do território dos bruxos impede que os trouxas participem dos banquetes em Hogwarts. Banquetes que, aliás, são sempre fartos e pagos não se sabe exatamente como e por quem. A semelhança entre o campo mágico e o campo político brasileiro é evidente. Em Brasília (2,48 milhões de habitantes), capital distante das cidades em que vivem 198 milhões de brasileiros, os políticos aumentam seus salários, criam benefícios para si mesmos e realizam gastos pessoais absurdos que não interessam aos cidadãos e que, entretanto, são sempre pagos pelos trouxas que não são e provavelmente nunca serão convidados a participar das festas, sempre fartas como as da Escola de Magia inventada por J. K. Rowling.

Segundo Pierre Bourdieu, uma das principais atividades dos políticos seria isolar o campo político, impedir que aqueles que não participam do jogo influenciem as disputas que ocorrem entre os jogadores. O mesmo fenômeno pode ser visto no campo mágico da obra analisada. Nenhum trouxa interfere nas disputas entre Harry Potter e Voldemort. O partido do herói parece nutrir algum tipo de respeito pelos trouxas, mas em nenhum momento vemos Harry Potter e seus colegas ou o diretor de Hogwarts e seus professores cogitarem a hipótese de incluir os trouxas nas disputas que ocorrem no campo mágico. Somente os mágicos tem o privilégio e a obrigação de participar das disputas mágicas. O paralelismo entre o campo mágico criado por J. K. Rowling e o campo político descrito por Pierre Bourdieu são evidentes.

As regras do campo mágico são tão flexíveis quanto as do campo político. Nada impede que alianças sejam rompidas, que traições sejam encenadas e que mudanças de lado ocorram. Há maniqueísmo nas disputas, mas tanto os políticos quanto os personagens secundários J. K. Rowling estão sujeitos à frustrar expectativas.  Em razão dos partidos políticos terem uma existência relacional, mudanças de posições as vezes ocorrem gerando inversões importantes como as referidas por Pierre Bourdieu. Isto não é possível no campo mágico. Apesar das defecções, os partidos liderados por Harry Potter e Voldemort tem propostas, discursos e agendas fixas. A literatura raramente consegue ser tão rica quanto a realidade.

Pierre Bourdieu sugere que o campo político só funciona como um desvio do interesse público (dever ser da política) para o interesse privado (negociações empreendidas pelos líderes políticos em função dos seus interesses pessoais ou partidários). Para abalar os fundamentos deste desvio seria preciso alterar substancialmente o equilíbrio das forças que mantém o campo no mesmo. Em se tratando de política, portanto, os cidadãos precisam obrigar seus representantes a fazerem escolhas que não sejam formuladas dentro do próprio campo político e unicamente para o campo político.

Os trouxas não tem como interferir no campo mágico. Eles são sujeitos passivos da ação dos bruxos. Há momentos em que o próprio Harry Potter abusa de seus poderes para humilhar e ferir os membros da família de trouxas que o criou. As infrações cometidas pelo herói são, entretanto, desfeitas pelo Ministério da Magia (órgão encarregado de preservar o respeito às regras do campo mágico, dentre as quais aquela que proíbe os bruxos de fazer mágica quando estão no campo dos trouxas). O Ministério da Magia se pareceria muito com o nosso Judiciário se este também não estivesse sujeito aos desvios que ocorrem no campo político.

As sociedades ocidentais procuram se organizar para valorizar a igualdade jurídica e para premiar o mérito. O mesmo ocorre no campo mágico. Hogwarts foi concebida para funcionar como uma meritocracia. Entre os alunos, porém, sobrevivem distinções sociais e ideais oligárquicos que acarretam ressentimentos e conflitos, alguns dos quais são resolvidos mediante trapaças engenhosamente arquitetadas pelo diretor da escola. O complexo de superioridade de Draco Malfoy é objeto de desprezo geral em Hogwarts. A imprensa brasileira alimenta diariamente o complexo de superioridade de Aécio Neves, Gilmar Mendes e FHC como se isto fosse uma virtude, razão pela qual devemos concluir que ou os jornalistas brasileiros não leram os livros de J. K. Rowling ou leram e não entenderam a mensagem civilizatória contida nos mesmos.

Estas são, enfim, as observações que pretendia fazer sobre a obra de J. K. Rowling. Não sou um grande fã da saga Harry Potter, mas não posso deixar de ver algum mérito nestas obras infantojuvenis. Se os contextos criados pela autora forem avaliados com base na teoria dos campos de Pierre Bourdieu os livros podem ser utilizados como poderosas ferramentas de educação.

Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. Interessante. Pessoalmente

    Interessante. Pessoalmente jamais vi qualquer filme dsta série. De fato, Bourdieu desenvolve os conceitos de campo, capital, habitus e os aplica em um muito extenso programa de pesquisas. Inclusive da comunicação e da opinião pública.

    Não estou en condições no momento de desenvollver um texto mais alentado sobre este ponto (que é muito debatido). Mas o que eu gostaria de sublinhar é que, para além dos partidos, os agentes da comunicação têm participação ativa na formação da opinião; fazem parte desse campo político, embora estrategicamente façam questão de dizer que não.

    O “equiliibrio” do jogo político atual está, portanto, no reconhecimento ou não dos meios de comunicação como parte ativa desse campo. O dia em que a situação perceber que deve nomear cada vez mais claramente quem são seus adversários em vez de fazer formulações genéricas e de sujeito indeterminado isso terá resultado. Notemos que a oposição faz uso desse expediente à  exaustão – até mesmo de modo ridículo e desesperado – “marcando em cima” a chamada blogsfera, a universidade, os órgãos do estado e as organizações não governamentais… Enfim: tudo que se mexe; pra eles não há alternativa: ou odeia o pt ou é petralha… Quase uma “estrutura estruturada disposta a agir como estrutura estruturante”…

    Quase ganharam as eleições enquanto o outro lado ficou só olhando.

    Primeiro a disputa foi pelo voto dos espectadores (trouxas). Agora a disputa é pelos participantes que ocupam centro. Tudo sob a ameaça de destruição do “jogo”, ou seja, quem tem mais cacife para manter ou deixar o jogo ruir.

  2. Muito bom. Agora entendo

    Muito bom. Agora entendo porque por tanto tempo Brasília foi tida como a “Ilha da Fantasia”. Só não confunda a pequena e imprenetrável casta política, oriunda de todo o Brasil e que aqui apenas se reúne, com todos os seus 2,85 mi de moradores.

    Ps.: Há alguns dias comecei a ler o primeiro livro da saga “Harry Potter” e estava achando-o um tanto enfadonho, mas certamente essa análise me dará um ânimo para compreender melhor esse fenômeno editorial.

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