Militarismo, profissionalismo e ética protestante no formigueiro norte-americano

Em uma das mais belas passagens de WALDEN OU A VIDA NOS BOSQUES, Henry D. Thoreau, narra uma batalha de formigas:

“Examinando melhor, fiquei surpreso que os cavacos cobriam-se daquelas guerreiras, e que não se tratava de duellum mas de bellum, uma guerra entre duas raças de formigas, as ruivas lançando-se contra as pretas, em geral duas ruivas para cada preta.”

“Foi a única batalha que presenciei na vida, o único campo de batalha em que pisei durante o conflito, guerra mutuamente mortífera com as ruivas republicanas de um lado e as pretas imperialistas do outro. Por toda parte estavam engajadas num combate mortal, embora sem qualquer barulho perceptível. Soldados humanos nunca combateram de maneira tão resoluta.”

“Quanto mais de pensa no caso, maior é a diferença. E com toda certeza não há registro na história de Concord, nem da América de uma luta que se possa comparar a esta, quer pelo número de combatentes, quer pelo patriotismo e heroísmo demonstrados. Quanto aos números da carnificina era um Austerlitz ou Dresden. Batalha de Concord.” (WALDEN OU A VIDA NOS BOSQUES, Henry D. Thoreau, Editora Aquariana, tradução Astrid Cabral, 2001, p. 223/225)

Thoreau não era um entusiasta das guerras norte-americanas, tanto que em seu livro A DESOBEDIÊNCIA CIVIL ele afirma que:

“O exército permanente é apenas uma arma do governo permanente. O governo em si, que é tão só o modo que o povo escolheu para executar sua vontade, é igualmente suscetível de abuso e deturbação antes que o povo possa atuar por seu intermédio. Prova-o a atual guerra mexicana, obra de um número proporcionalmente pequeno de indivíduos valendo-se do governo estabelecido como instrumento, pois, para começar, o povo não teria aprovado esta medida.” (WALDEN OU A VIDA NOS BOSQUES, anexo A DESOBEDIÊNCIA CIVIL, Henry D. Thoreau, Editora Aquariana, tradução Astrid Cabral, 2001, p. 321/322)

A América devotada à guerra criticada por Thoreau é a mesma que foi descrita Alexis de Tocqueville em meados do século XIX http://www.libertarianismo.org/livros/adtdnacompleto.pdf . Apesar de seu entusiasmo pela democracia norte-americana “…O fato é que essa sociedade caminha sozinha; e tem boa chance de não encontrar qualquer obstáculo: o governo parece-me aqui na infância da arte”,  o francês não deixou de notar os problemas de uma nação em que o povo era “devorado pelo desejo de fazer fortuna”.  Perspicaz, Tocqueville concluiu que  “O que mais me repugna na América não é a extrema liberdade reinante; é o pouco de garantia aí encontrado contra a tirania”.

Max Weber também observou e descreveu os EUA no final do século XIX início do século XX. Ele afirma que para os protestantes, a riqueza só é “…ruim, do ponto de vista ético, conforme seja uma tentação ao ócio e a fruição pecaminosa da vida, e a sua aquisição somente é ruim quando realizada como o último propósito, o de uma vida folgada e sem cuidados. Entretanto, enquanto realização de um dever em uma profissão, esta não é apenas moralmente permitida ma é, na verdade, ordenada. A parábola do servo que era rejeitado porque não aumentava as capacidades que lhe eram confiadas parece ser bem explicita. Desejar ser pobre era, e isso era frequentemente argumentado, semelhante a desejar não ser saudável; é censurável como uma glorificação do trabalho e aviltante para a glória de Deus. Especialmente a mendicância, da parte de alguém apto a trabalhar, não é apenas o pecado da preguiça mas uma violação do dever do amor fraterno que estava de acordo com as próprias palavras do apóstolo.” (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber, Martin Claret, 2013, p. 243/244).

A combinação explosiva de paixão pela guerra criticada por Thoreau, ausência de garantias contra a tirania notada por Alexis de Tocqueville e a ética protestante admirada por Max Weber parecem constituir a essência dos EUA no início do século XXI. O estado de guerra permamente em que os norte-americanos se encontram na atualidade não é um desvio, nem um acidente histórico provocado por lunáticos como George W. Bush. É o aprofundamento das virtudes e defeitos da sociedade norte-americana do século XIX cuja consolidação originou um novo tipo de imperialismo ao qual toda aquela nação se devota.

Prova da devoção dos EUA à sua missão é o percentual elevado que as despesas militares ocupam no orçamento daquele país. Na atualidade os norte-americanos gastam 640 bilhões de dólares, equivalentes a 4% do seu PIB, para manter sua máquina de guerra. Além destas despesas existem outras que também estão ligadas à segurança militar daquele país:

“Finalmente ainda se tem a despesa secreta dos serviços secretos, onde a única cifra “não classificada” (1,6 bilhões anuais) não é mais que o pico do icebergue. Juntando-se esse, e os outros postos acima mencionados, ao orçamento oficial do Pentágono (640 bilhões em 2013), a despesa militar dos Estados Unidos chega a quase 1 trilhão (1000 bilhões) de dólares anuais.

Isso significa que cerca de um dólar em quatro, do orçamento federal, é despendido com um objetivo militar. Mesmo contando-se somente com as cifras do SIPRI, as quais dão o total de 640 bilhões de dólares, os Estados Unidos se manteriam claramente a frente da classificação dos 15 países tendo a maior despesa militar do mundo.” http://port.pravda.ru/busines/06-05-2014/36718-despesas_militares-0/

Há um militarismo norte-americano? Esta é uma pergunta difícil de responder, pois primeiro seria preciso definir o que significa o termo militarismo. A própria noção de militarismo varia de acordo com a época em que, numa dada sociedade, se verifica a supremacia dos valores militares sobre os da coexistência pacífica com os outros povos. Portanto, o militarismo no III Reich não era igual ao que existiu em Roma. Pelo mesmo motivo o militarismo que existiu entre os romanos quando da conquista do Egito, da Gália e da Grécia diferia qualitativamente daquele que caracterizou a vida social em Esparta ao tempo da Guerra do Peloponeso. As religiões, apesar de suas diferenças, sempre estiveram a serviço dos militarismos. Nos EUA não deve ser diferente.

Os soldados norte-americanos não são apenas religiosos como seus colegas na França, Brasil, Rússia e China, eles também são profissionais. O profissionalismo deles está, sem dúvida alguma, impregnado dos valores da ética protestante que foram descritos por Max Weber. Nisto reside a maior virtude e, sem dúvida alguma, o maior defeito da militarismo dos EUA. Virtude porque permite ao país projetar seu poder militar sabendo que não verá suas tropas se desmancharem completamente como o exército francês diante das tropas do III Reich na II Guerra Mundial ou como o exército russo diante das tropas do Império Alemão. Defeito porque o militarismo norte-americano difere dos outros militarismos que davam mais enfase às virtudes marciais do que ao profissionalismo.

A enfase no profissionalismo faz com que o militarismo dos EUA não seja encarado, pelos norte-americanos, como uma espécie militarismo. Isto explica porque aqueles que se mostram preocupados com a militarização nos EUA criticam mais o crescimento das “despesas militares” do que a própria natureza perversa da religião que empurra constantemente seu país na direção que o mesmo tem seguido. Isto agrava o risco dos EUA sucumbir diante do desejo de fazer fortuna dos soldados (algo incentivado e até valorizado pela ética protestante) produzindo uma tirania dentro do país (como disse Alexis de Tocqueville). Tirania esta foi exercitada no exterior em cada uma das guerras norte-americanas e que se tornou o fundamento mesmo da vida internacional agora que a guerra permanente é uma realidade imposta pelos EUA aos demais países do globo.

O espetáculo, outro fundamento importante da vida cotidiana e da economia norte-americana, se alimenta da guerra permanente e a impulsiona. Os conflitos militares made in USA fornecem as histórias heróicas e os melodramas familiares que são explorados com lucro pela indústria cultural dos EUA e os produtos distribuídos pela mesma alimentam o desejo das novas gerações de norte-americanos pela ética militarista. A guerra tem que continuar até que não nenhum espectador mais exista.

Onde quer que os norte-americanos tenham interesse, o militarismo dos EUA se manifesta não como militarismo e sim como a concretização do profissionalismo dos soldados a serviço da ética protestante. Apenas mais uma questão precisa ser respondida: onde é que o militarismo dos EUA não tem interesse de se manifestar? O céu é o limite e a preservação da vida na Terra o único obstáculo. Como na fábula de Henry D. Thoreau, as belicosas formigas continuarão a realizar seu trabalho com fervor patriótico redobrado até que seu formigueiro seja destruído junto com o planeta em que ele se encontra.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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