O crepúsculo do Estado dentro do Estado dentro do Estado

Decidi republicar este texto em virtude da “imunidade penal” conferida por Sérgio Moro a esposa de Eduardo Cunha. A decisão dele causou estranhamento para alguns jornalistas e juristas, mas para mim era previsível que Moro daria um “jeitinho” de ajustar o Direito Penal à condição “especial” de Claudia Cruz.

Há algum tempo fiz, aqui mesmo no GGN, uma reflexão sobre a imoralidade do Direito Penal do Amigo https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/kant-e-o-direito-penal-do-amigo-no-brasil. Volto ao tema porque uma nova hipótese me ocorreu.

A brutal construção do Estado precedeu historicamente a formação do povo brasileiro. No imenso território que foi sendo conquistado palmo a palmo pelos colonos e seus descendentes ocorreu “…um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista.” (O povo brasileiro, Darcy Ribeiro, Companhia das Letras, 2006)

Este fenômeno explica o abismo que existe entre o Estado e o cidadão comum, entre ricos e pobres e entre políticos e eleitores.

“O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizaram num ‘modus vivendi’ que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alteridade. O povo massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido.”  (O povo brasileiro, Darcy Ribeiro, Companhia das Letras, 2006)

Não causa, portanto, estranhamento o fato do Brasil real não se ajustar muito bem ao Brasil formal. Nós temos uma constituição escrita e várias ordens jurídicas que coexistem. Os “donos do Estado” e os super-ricos agem como se estivessem acima de qualquer Lei e raramente são incomodados pelas autoridades judiciárias. Os medíocres varões de classe média, que adoram mimetizar os ricos e super-ricos, conseguem no máximo fazer respeitar os direitos formalmente atribuídos legalmente aos cidadãos (desde que não entre em conflito com alguém da classe privilegiada).

Aos demais, que compõe a classe baixa e baixíssima oprimida brutalmente pela Polícia nos bairros pobres e favelas, são garantidos apenas o direito de consumir propaganda e de votar. Mas é evidente que o resultado das eleições pode ser modificado através de golpes de estado violentos (1964) ou judiciários (2016).  

Os três estatutos jurídicos que coexistem no Brasil equivalem mais ou menos ao Jus Civile, Jus Gentium e o Jus in Bello levado pelos romanos à Lusitânia entre 218-201 aC e de lá trazido para o Brasil em 1500 dC. É este, pois, o significado mais profundo da influência do Direito Romano no Brasil as sutilezas da personalidade, da posse, da propriedade, dos contratos e da sucessão prescritas em nosso Código Civil.

Isto explica tanto a existência de uma norma constitucional conferindo ao presidente da república e aos senadores delatados na Lava Jato o privilégio de indicar e nomear um juiz de sua preferência (refiro-me aqui obviamente à nomeação de Alexandre de Moraes para o STF), quando a imunidade penal que tem sido ilegalmente concedida aos políticos do PMDB e do PSDB pelo Procurador Geral da República. Entre os iguais sujeitos ao Jus Civile as regras não são iguais àquelas aplicadas aos demais.

Como jurista, porém, sempre estou a procura de um paradigma moderno que explique os privilégios desfrutados por alguns brasileiros. Consultando a obra Privilégios e imunidades diplomáticos, Sérgio Eduardo Moreira Lima, Instituto Rio Branco/Fundação Alexandre de Gusmão, Rio de Janeiro, 2002, encontrei algo que ajuda a entender o que ocorre em nosso país, ou melhor, entre os países que coexistem no território brasileiro. Refiro-me ao disposto no artigo 31, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas:

“1. O agente diplomático gozará de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditado. Gozará também da imunidade de jurisdição civil e administrativa, a não ser que se trate de:

a) uma ação real sôbre imóvel privado situado no território do Estado acreditado, salvo se o agente diplomático o possuir por conta do Estado acreditado para os fins da missão.

b) uma ação sucessória na qual o agente diplomático figure, a titulo privado e não em nome do Estado, como executor testamentário, administrador, herdeiro ou legatário.

c) uma ação referente a qualquer profissão liberal ou atividade comercial exercida pelo agente diplomático no Estado acreditado fora de suas funções oficiais.

2. O agente diplomático não é obrigado a prestar depoimento como testemunha.

3. O agente diplomático não esta sujeito a nenhuma medida de execução a não ser nos casos previstos nas alíneas ” a “, ” b ” e ” c ” do parágrafo 1 dêste artigo e desde que a execução possa realizar-se sem afetar a inviolabilidade de sua pessoa ou residência.

4. A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditado não o isenta da jurisdição do Estado acreditante.”

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D56435.htm

A regra da imunidade diplomática parece se ajustar perfeitamente aos privilégios e imunidades concedidas pelo Brasil aos “donos do Estado” e aos super-ricos. O único problema desta norma é que não há reciprocidade. Ou seja, os outros (brasileiros de classe média, baixa e baixíssima e seus representantes) não podem exigir igual tratamento. Há hierarquia forçada e não coexistência pacífica entre os países que compartilham o território do Brasil.

Tanto isto é verdade que uma simples petição de Lula na Corte de Direitos Humanos da ONU (algo absolutamente trivial para os padrões europeus) foi considerada inadmissível, uma afronta ao Estado brasileiro. A verdade, porém, é que com sua petição Lula conseguiu finalmente confrontar o Estado dentro do Estado dentro do Estado brasileiro. O adorável “sapo barbudo” conseguiu expor internacionalmente as deficiências sociológicas e fragilidades antropológicas de um corpo político doente porque continua sendo incapaz de abrigar todo seu povo debaixo de um mesmo estatuto jurídico neste vasto território. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador