Do tempo em que o PMDB tinha pudores e era republicano, por Fernando J.

Do tempo em que o PMDB tinha pudores e era republicano

por Fernando J.

Em 1982, o PMDB conquistou os principais governos estaduais: Montoro em SP, Tancredo em MG, José Richa no Paraná, e Iris Rezende, em Goiás. No Rio, Brizola levara pelo PDT. O PDS, sucedâneo da ARENA, tonava-se assim o partido dos grotões, conforme definiu Tancredo à época.  

Além dos governadores, 9 senadores pelo PMDB e 1 pelo PDT; na Câmara, o PDS ficava com 50,27% dos deputados, enquanto que o PMDB com 42,66% e o PDT, com 3,80%. Em 1986, na esteira do “sucesso” do Plano Cruzado, viria nova vitória acachapante.

No Mato Grosso do Sul, que realizava a primeira eleição pós-divisão do Estado, não foi diferente. A onda oposicionista elegeu pelo PMDB o simpático, bonachão, equilibrado e civilizado Wilson Barbosa Martins, removendo do poder um ícone da ditadura, Pedro Pedrossian, governador nomeado no período 1980-1982. Pedrossian já havia governado o então Mato Grosso, nomeado pela ARENA entre 1966-1971. Voltaria ao governo do Estado, pelo voto, entre 1991-1995.

O Poder trocava de mãos após mais de 20 anos e o resultado foi o de sempre, o aparelhamento do Estado pelos novos ocupantes do Poder. Os diretórios municipais indicam nomes ao governador, e todo e qualquer cargo da administração pública passam pelas bênçãos do diretório local, do inspetor de alunos/diretor da escola, ao chefe do Detran. Preenchimento por concursos ainda era algo muito distante, a máquina pública era aparelhada, alinhada com o Poder.

Naquela pequena cidade, que hoje conta com cerca de 25 mil habitantes,  a pouco mais de 200 Km da capital, o diretório local contava com dois presidentes, o de direito e o de fato. O de direito era um pecuarista de porte grande para a época, porém tosco, rude, mal assinava o nome, Xucro, e fora colocado lá pelo presidente de fato, o que mandava, o engenheiro e também pecuarista, o Vivo. O Vivo havia convencido o simplório Xucro a assumir o cargo de presidente do PMDB, provocando a vaidade pelo exercício de tão “importante” cargo, linha direta com o governador, etc. Além disso, o Xucro tinha uma boa capacidade financeira, num momento de precisão o Partido poderia contar com isso.

E assim, no ano de 1984, o médico-chefe do posto de saúde local pediu demissão do cargo, voltou para a função de expediente de 4 horas, não compensava exercer a chefia e ter de cumprir 8 horas diárias. Incumbia ao diretório indicar um nome para o cargo. O problema: a cidade tinha apenas 3 ou 4 médicos, e nenhum deles se interessava, além disso, teria de ser um “filho da terra”, jamais um forasteiro.

Não havia alternativa, o Vivo, o que mandava, bateu à porta da então jovem médica gineco-obstetra, que havia chegado há pouco mais de 1 ano, explicou a situação e fez o convite, sem qualquer espécie de contrapartida partidário-ideológica, tratava-se de solucionar um problema emergente, para o qual o governador devotava grande atenção.

Não havia porque recusar, o convite foi aceito, e após os trâmites burocráticos, deveria apresentar-se ao Secretário de Saúde Estadual, o médico André Puccinelli, posteriormente prefeito de Campo Grande e governador do MS, para receber o cargo.  

Naqueles precários anos 80, ainda sob ditadura, havia um simulacro de programa social, um dos raríssimos da época, cuja sigla deveria ser algo como INAM, sendo as duas últimas letras “Aleitamento Materno”, e consistia em suplementar a alimentação de gestantes em situação de vulnerabilidade, de fome mesmo. Naquele Brasil dos 80, gestantes desnutridas davam à luz a crianças esquálidas, com poucas chances de sobreviver, devido à precária situação alimentar da mãe, e consequentemente ao aleitamento comprometido.

Para isso, o Posto de Saúde recebia periodicamente mantimentos (arroz, feijão, fubá, farinha, etc), destinados exclusivamente à suplementação dessas gestantes, para atender ao programa. A seleção era feita pela chefia que atendia pessoalmente todos os casos de pré-natal, juntamente com a assistente social.

Até que, um dia, um vereador do PMDB começou a rondar o posto. Primeiro, começou com perguntas aos funcionários, e após vários dias de cerco, entrou e foi até a médica e comunicou que “iria assumir a distribuição dos mantimentos, que dali em diante ele passaria a controlar aquilo”, assim na mão grande.

Aquilo era assunto para o Vivo, a gravidade do caso impunha apelar para quem mandava. Pediu a alguém para ir avisar urgente o presidente de fato do PMDB e chamá-lo para uma conversa (não havia telefone na cidade).

O Vivo chegou na casa da médica em seguida, com cara de quem já imaginava o que seria. A chefe do posto foi objetiva, duramente objetiva, relatou o caso e deu um ultimato: se aquele vereador continuasse a rondar o posto, ele teria de arrumar um novo médico, largaria o cargo imediatamente.

O Vivo respirou fundo, passou a mão na cara, e falou:

— Olha, considere esse problema resolvido, claro que é um absurdo, vou falar com ele, e pedir para nunca mais ir lá, eu resolvo isso, deixa comigo.

Tirou o chapéu, coçou a cabeça e desabafou:

— Não estou dando conta de apagar os incêndios, cada dia é uma. E relatou a última, muito constrangido. O chefe do Detran tinha ido até a sua casa aflitíssimo, o Xucro, presidente de direito do PMDB, tinha ido até o Detran, lá jogou o certificado de propriedade da caminhote no balcão e pediu para emitir um novo certificado. Por hipótese, a caminhote era Ano 1981/Modelo 1982, ele queria um certificado novo com uma “ligeira” alteração em que dizia ano e modelo 1982, para ganhar um ano na venda. O chefe do Detran gelou e refugou o pedido, mesmo sabendo das consequências, daí o Xucro, investido das prerrogativas do cargo, passou a exigir aos berros que o Detran fizesse a maracutaia.

A bronca foi desaguar na casa do Vivo, que atendeu o chefe do Detran aflito e nervoso, que disse: “Seu Vivo, isso é fraude, e depois, se eu fizer essa, qual vai ser a próxima, depois de arrombada a porteira”?

O Vivo ouviu tudo e pediu um prazo para resolver, pois envolvia muita diplomacia. Foi até a casa do Xucro, e depois de tomar uns dois tererés entrou no assunto. Com muito jeito e habilidade, começou explicando que o rapaz do Detran estava certo, que tinha razão, que eles tinham o dever e a obrigação do exemplo para com o governo que estava começando, que aquele procedimento poderia comprometer o governo do qual eles eram parte, e foi conduzindo a conversa sempre apelando para a moralidade, da coisa certa, sabedor da baixa condição cognitiva do Xucro para não melindrá-lo.

E contou o desfecho, com uma risadinha muito amarela e constrangida:

— Depois de eu explicar longamente que o Detran estava com a razão, ele retrucou:

— Mas então não dá para fazer nada mesmo, Vivo?

— Então, Xucro, infelizmente não dá mesmo, não tem jeito não.

E o Xucro, lapidar:

— Mas então Vivo, então…de que adiantou ganhar a eleição?

Vivo, finalizando a conversa: “Os companheiros não entendem que a gente pode muito, mas não pode tudo.”

Moral da história:  1) quando o Haddad referiu-se ao patrimonialismo brasileiro no artigo da Piauí, era sobre isso que estava falando (indistinção entre o público e o privado); 2) Naquele tempo, o PMDB tinha pudor e era republicano, e o André Puccinelli, que hoje ostenta uma copiosa capivara e que em 2009 ameaçou estuprar o Ministro do Meio-ambiente Carlos Minc se voltasse a pisar no “seu” Estado, era uma pessoa civilizada; 3) Como classificar a inocente demanda do Xucro junto ao Detran frente ao que acontece nas madrugadas no salão de festas do lupanar Jaburu’s drink and dancing Privê Club?

Redação

6 Comentários

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  1. Do tempo que me conheço como gente….

    desde que comecei a  andar, nos  anos 60  que  sei que o MDB  é composto por senhores de “engenho ” !

    Para mim, Orestes Quércia, foi um dos  seus maiores  porta-bandeiras !   Aquele  asfaltamento da entrada de sua fazenda  em Pedregulho  foi apenas  a  cerreja  do bolo….  

    Do mesmo naipe  dos  estábulos que uma  empreiteira fazia  nas  fazendas  de um certo presidente-linha dura  amante de cavalos!

    Enquanto existir PMDB, esqueça justiça  social neste país !!!

  2. Observem que o partido o

    Observem que o partido o ‘pior’ em cada momento de nossa história faz sempre a maioria na Câmara e isso é péssimo sobretudo agora e é por isso mesmo querem impor o parlamentarismo. Os mesmos sabem que poderão governar sem ter votos para fazer o Presidente.  Não precisarão nem fazer campanha, nem suar a camisa, nem chegar junto ao povão para ter o governo, para governar..

  3. Discordo totalmente.
    Definir

    Discordo totalmente.

    Definir a antiga frente de oposição como “senhores de engenho” é um erro histórico – e dos grosseiros. 

    Havia desde progressistas autênticos a liberais, mas não a elite do país. Esta, estava na ARENA. E por razões bastante óbvias.

    Provam-no as cassações que o partido sofreu. 

    O artigo é muito inteligente ao diferenciar as coisas. 

    Cumpre estudar a História e informar-se, de modo a não cometer injustiças. 

    1. Exatamente, R.A.P.

      Naquele momento do Brasil, o PMDB aglutinava o que havia de melhor e mais progressista. O mofo estava na Arena mesmo. Agradeço pelo comentário. 

      1. Não há de quê, Fernando. Meu

        Não há de quê, Fernando. Meu comentário foi dirigido a outro comentarista abaixo, que avaliou incorretamente a época.  

  4. Fernando,

    ótimo texto e concordo fortemente com o comentário de R.A.P. A partir se sua história fica fácil perceber a deterioração dos partidos políticos brasileiros. Primeiro, no seu relato, o PMDB. O mesmo aconteceu com o PSDB e, reconheçamos, com o PT. Basta ver os quadros fundadores, circa anos 1980, o que viraram em pouco mais de 30 anos. Só quem, como nós, acompanhamos causos assim de perto, podemos entender essa involução. Grande texto e esse povo de hoje precisa ler e escrever histórias do Brasil.

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