Contos de Quaresma: a procissão, por Francy Lisboa

Por Francy Lisboa

A interiorana cidade fluminense chamada Carmo é daqueles lugares onde o descansar tem repouso garantido. A conversa marota e as fortes raízes católicas criam o ambiente perfeito para o sabor das histórias que guardam relação com o sinistro período da Quaresma.

Anos atrás o carnaval havia findado mais uma vez e, como costumeiro, os mais tementes preparavam-se para a purificação quaresmal. Sem cerveja, sem cachaça, sem carne. Sim, vida sem graça para muitos, mas um sacrifício considerado necessário.

Já pelo décimo quinto dia da Quaresma eis que um sonolento devoto escuta o barulho de matracas ritmando ladainhas de causar arrepios. O velho devoto pensou ser algo estranho, pois nenhuma atividade religiosa, como as infindáveis procissões, estava marcada para aqueles dias.

Saiu para ver o que ocorria e quando chegou até sua varanda o barulho já havia desaparecido. Apenas a névoa que se mostrava ainda mais densa pelo cansaço dos olhos recém acordados. Pensou estar pensando besteiras e estar sendo sugestivo demais, mesmo para um religioso.

Lembrou das histórias que seu velho pai lhe contava sobre a Quaresma. Da necessidade de estar atento pois seria um período em que os espíritos ruins estariam mais propensos a atravessar a barreira entre os mundos, uma fase sem luz.

No dia seguinte, as perguntas sobre as matracas e ladainhas matinais já haviam se espalhado pela vizinhança. Obviamente, os céticos debocharam das histórias e aproveitaram a chance para aterrorizar os mais sugestionáveis.

Um dos céticos, vizinho ao velho devoto, disse ser mais uma besteira causada pelo fanatismo religioso. Alegava não ter ouvido coisa alguma e que essas histórias são contos da carochinha para manter o cabresto cristão na direção do temor ao Divino.

 Houve discussão que logo foi arrefecida pelo cair da noite. Porém, naquela mesma noite, as ladainhas e o som das matracas retornaram. A luz da casa do cético blasfemador acendeu e de lá ele saiu para conferir o que estava a acontecer.

Chegando à beira da rua na frente de casa viu surgir senhoras e senhores encapuzados entoando ladainhas e batendo suas matracas. Pensou ser mais uma procissão. Contudo, um grupo dentro daquela procissão se destacava trazendo em suas mãos o que pareciam ser velas.

O cético pensava estar sonhando até o momento em que um dos componentes daquele pelotão macabro dele se aproximou, e em um gesto lhe deu algo iluminado para segurar. O cético segurou a candeia, mas sem desafixar seus olhos daquela personificação estranha que foi se afastando até desaparecer na névoa da madrugada juntamente com o som das matracas.

Passado a sensação de perplexidade a retomada de consciência veio com o arder de sua pele, que queimou não com uma vela, mas com um pedaço de osso humano já consumido até o final pelas chamas.

Redação

2 Comentários

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  1. Boa

    Quando criança tinha medo das historia de quaresma. Minha avoh morava num casarão em que depois do quintal, tinha uma rua escura à noite e o cemitério nos fundos; então, eram so historias de fazer medo. Meu pai um ateu convicto contava as historias e depois me dizia, não acredita em qualquer coisa, mas não duvide de que a fé das pessoas as fazem até levantar os mortos 😉

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