A crítica americana se rende a Clarice Lispector

 

Com  a publicação de todos seus contos em um volume, Clarice ganha espaços prestigiosos e inéditos, como a capa do suplemento dominical do New York Times

.[Leia aqui a crítica de Terrence Rafferty no The New York Times]

 

Jornal do Commercio – Publicado em 02/08/2015

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Clarice Lispector tem encantado revistas e jornais americanos através do seus contos

Divulgação

por Diogo Guedes

Você pode defini-la como uma das autoras latino-americanas que foram “realmente originais”, ao lado de Jorge Luis Borges, Juan Rulfo e Machado de Assis, como fez o New York Times. Ou pode dizer que ela está entre os “gênios escondidos” do século 20 junto com Fernando Pessoa – exatamente como o escritor irlandês Colm Tóibín. Ainda pode descrevê-la como uma “latino-americana visionária”, ressaltando que ela é quase “um santo medieval que viajou no tempo para um apartamento em um arranha-céu do Rio para fumar um cigarro atrás do outro e visitar cartomantes” – imagem evocada pela revista The New Republic. Todas essas são formas quase adequadas de explicá-la, claro, mas nenhuma é tão misteriosa e exata quanto simplesmente dizer “Clarice”.

A escritora nascida na Ucrânia e criada no Recife é alvo de um novo encantamento coletivo através da sua obra, agora nos Estados Unidos. Mesmo com cinco romances já publicados por lá, além da biografia feita por Benjamin Moser, o reconhecimento de Clarice Lispector alcançou um novo patamar. No domingo passado, ela se tornou o primeiro nome da literatura brasileira a estampar a capa do suplemento dominical de livros do NY Times, com uma resenha do volume The Complete Stories (Contos Completos), organizado por Moser e traduzido por Katrina Dodson.

Segundo o biógrafo e difusor entusiástico da obra de Clarice, a capa é um acontecimento superlativo. O espaço pode ser considerado “o mais visível, o mais prestigioso, o mais isso e o mais aquilo, não somente nos Estados Unidos, mas no mundo”, destaca. “Para muitos grandes escritores americanos, seria a coroação de toda uma vida. Muitos nunca chegaram lá. Para mim, vê-la ali, depois de dez anos de trabalho em prol de uma pessoa que era quase completamente desconhecida, é emocionante.”

“Quando comecei, as pessoas achavam que eu era louco”, confessa Benjamin Moser. Clarice era completamente desconhecida nos Estados Unidos quando o biógrafo e ensaísta partiu para a investigar a vida e a obra dela. Não eram poucos os percalços: fazer uma biografia de alguém quase ignorado em um país é tarefa ingrata.

“E, para piorar a situação, de uma pessoa desconhecida cujos livros eram impossíveis de ler na língua em que estava tentando chamar a atenção. Ninguém vai traduzir a obra de uma pessoa morta e desconhecida. Ninguém vai comprar uma biografia de uma pessoa morta e desconhecida”, confessa, em entrevista por e-mail. “Mas resolvi quebrar aquela negatividade. Como disse Clarice: ‘Tudo no mundo começou com um sim.’ Eu disse sim a ela, convencido de que, dada a oportunidade de conhecê-la, os meus patrícios ficariam tão empolgados como eu. E foi o que aconteceu. Sou muito, muito grato”.

Um dos pontos elogiados nos comentários críticos até então é a tradução de Katrina Dodson. Para ela, o desafio foi uma espécie de sonho – ao mesmo tempo um prazer enorme e a coisa mais difícil que já fez. “Foi até uma experiência transformadora. Sou hoje uma mulher renascida!”, afirma. “Acho que os contos revelam uma Clarice mais humana, e dá para sentir mais do humor perverso dela e mais do amor que ela sentia pelo mundo e pelas pessoas, com todas as suas vaidades e manias.”

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ENTREVISTA

A experiência transformadora de traduzir Clarice Lispector

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A tradutora americana Katrina Dodson passou dois anos mergulhada nos contos da autora e conta as dificuldades e prazeres desse desafio

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Jornal do Commercio – Publicado em 02/08/2015

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Katrina Dodson comprou seu primeiro livro de Clarice em 2003, quando morava no Rio de Janeiro – Divulgação

 

por Diogo Guedes

No meio de uma viagem pelo Rio Amazonas, a pesquisadora e tradutora americana Katrina Dodson descobriu os delírios e prazeres da prosa de Clarice Lispector. Anos depois, pesquisando a obra da autora, foi convidada para traduzir todos os contos dela, reunidos em um só volume. Mesmo com cinco romances da ucraniana que morou no Recife e no Rio de Janeiro já publicados nos Estados Unidos, foi o volume The Complete Stories que chamou atenção da crítica americana, com espaço até então inéditos para a literatura brasileira, como a capa do suplemento dominical de livros do New York Times. Na conversa abaixo, Katrina dá um depoimento sobre o desafio que foi encarar mais de 600 páginas da prosa surpreendente da autora.

JORNAL DO COMMERCIO – Katrina, existiram muitas dificuldades para traduzir o texto? Havia  um vocabulário específico, uma cadência difícil de transpor?

KATRINA DODSON  – Traduzir a Clarice foi um grande sonho para mim. Foi até uma experiência transformadora. Sou hoje uma mulher renascida! Mesmo. Passei dois anos muito intensos e solitários traduzindo um trabalho muito denso e de tamanho enorme, em total mais de 600 páginas. Tenho lido ela ao longo de 12 anos e foi só depois de traduzir ela para o inglês que notei várias coisas no estilo e na temática dela que nunca tinha percebido antes. Senti o ritmo forte da voz dela muito mais do que antes e percebi a força da repetição na escrita dela. Para quem não é falante nativo do português é fácil perder a sutileza com que ela deforma a língua portuguesa. Ela tem uma tendência de substituir as palavras esperadas com algo mais inusitado ou até inventado, mas que soa de maneira ainda agradável. Por isso, é muito fácil errar na tradução dela ao não prestar atenção a alguma preposição ou outro detalhe da gramática ou da linguagem. Esta série de novas traduções editadas por Benjamin Moser ficou ainda mais forte por ter duas pessoas olhando cada palavra no original com atenção. Foi muito bom ter outra pessoa que acompanhou o trabalho e com quem eu podia discutir as dúvidas. Além disso, tinha a ajuda indispensável dos meus amigos brasileiros. A dúvida mais comum que levaria para eles era, “Isso soa estranho para você? É coisa do português ou coisa da Clarice?” E a maioria das vezes, eles me responderiam tipo, “Puxa, a Clarice é danada mesmo. É realmente estranho. Você até o fez menos estranho em inglês.” O efeito lírico na escrita dela vem do grande talento que ela tinha pela linguagem e foi uma das coisas mais difíceis de manter em inglês. Eu pensei muito em como escrever assim como ela, de maneira meio esquisita, enquanto também fazia as palavras soarem como algo que já existe ou que deve existir porque possuem uma graça inesperada.

JC – Você lembra como foi seu primeiro contato com a obra de Clarice? Foi um amor à primeira vista?
KATRINA –
 Conheci a obra dela em 2003 na Livraria da Travessa no Rio de Janeiro, onde eu estava morando e dando aulas de inglês numa escola particular chamada Britannia. Eu estava aprendendo português – que já podia ler mais ou menos porque falava francês – e quis conhecer as grandes escritoras da literatura brasileira. Eu escolhi A Paixão Segundo G.H. porque gostei do nome e levei o livro numa viagem para a Amazônia durante as férias de janeiro. Então eu comecei a ler esse livro tão difícil e tão estranho numa viagem de barco de Manaus à Belém. Então cai no mundo estranho e maravilhoso de Clarice lá na Amazônia, deitada na rede, durante três dias de viagem muito surreais. Não entendi nada do livro, me parecia um delírio total, e não sabia se era porque não conhecia o português direito ou se era efeito do meu senso de desorientação geral de estar num mundo tão diferente lá no Rio Amazonas. Foi só depois de voltar para o Rio de Janeiro e ler mais de Clarice nos cursos de literatura na PUC-Rio que confirmei que, sim, o delírio era pura Clarice. Sempre adorei ela, mas confesso que sempre amei os contos, sobretudo. É por isso que fico tão feliz de ter a honra de traduzi-los. Acho que revelam uma Clarice mais humana, e dá para sentir mais do humor perverso dela e mais do amor que ela sentia pelo mundo e pelas pessoas, com todas as suas vaidades e manias. Eu senti uma grande responsabilidade ao traduzir este livro porque sabia que seria muito importante para apresentar o trabalho dela para um maior público anglófono e também porque iria ser um recurso tão importante no contexto acadêmico e escolar. Acho uma grande pena o fato de não ter uma coletânea igual em português no Brasil. Espero que essa repercussão incrível nos EUA inspire a publicação dos Contos Completos de Clarice Lispector no Brasil.

JC – Como chegou até você o convite para traduzir todos os contos de Clarice?
KATRINA – 
 Depois de voltar para os Estados Unidos eu entrei no programa de pós-graduação em literatura comparada na Universidade da Califórnia, Berkeley. Continuei os meus estudos sobre Clarice, e até traduzi O Ovo e a GalinhaAmor e Tentação só para meu próprio prazer num caderno que joguei numa gaveta e esqueci. Foi só em 2012, enquanto eu estava morando no Rio de Janeiro novamente com uma bolsa Fulbright, que pensei mais seriamente em traduzir a escrita dela e conheci Benjamin Moser. Simpatizamos um com o outro logo no início e ficou claro que compartilhávamos a paixão por Clarice e as mesmas ideias sobre como traduzir a obra dela com o objetivo de permitir que se ouça em inglês a sua voz tão particular, sem tentar suavizar as irregularidades da linguagem dela. Foi então que a nossa amizade começou. E depois disso ele conheceu meu trabalho como tradutora com os contos de Vanessa Barbara e Emilio Fraia que traduzi para a revista Granta.

JC – Na tradução, você pôde acompanhar desde os primeiros contos de Clarice até seus últimos textos curtos. Há uma mudança de tom e de temática na trajetória dela
KATRINA –
 Quanto ao desenvolvimento do estilo dela, sim, notei várias mudanças, embora sempre tivesse uma voz distinta e sempre reconhecível como Clarice. Nos contos mais antigos, há um senso da exuberância da juventude, uma paixão pela linguagem que é mais enfeitada. Nas coletâneas Laços de Família e Legião Estrangeira, senti fortemente como ela dominava a sua arte e a forma literária. Esses contos foram talvez os mais difíceis para traduzir porque têm uma construção tão precisa e densa. Quando cheguei as coletâneas da última fase dela, como Onde Estivestes de Noite e A Via Crucis do Corpo, a linguagem dela fica muito mais solta, menos trabalhada, mais simples, mais objetiva. Há um senso de que ela já tinha conseguido tudo que queria fazer dentro das formas mais literárias e estava querendo descobrir uma outra maneira de escrever, que pode ser chamada de “anti-literatura”.

Redação

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