O cientista e o alquimista das palavras: João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa

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O cientista e o alquimista das palavras: olhares convergentes e divergentes entre João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa

 SANTOS, Elis Denise Lélis dos¹

Resumo: Este artigo pretende estabelecer pontos convergentes e divergentes entre os escritores João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa – ambos pertencentes à Geração de 45 do Modernismo Brasileiro – em relação ao processo de composição literária e ao trabalho com a linguagem. Para estabelecer tais relações, tomamos como fonte os textos “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte” e “Diálogo com Guimarães Rosa”.

Palavras-Chave: João Cabral de Melo Neto; João Guimarães Rosa; relações.

Abstract This work intends to establish converging and diverging aspects, between the writers João Cabral de Melo Neto and João Guimarães Rosa – both are members of the so called Generation of ”45 of Brazilian Modernism – in relation to the literary process composition and to the work with the language. In order to establish such relations, we resort to the texts “Poetry and composition: the inspiration and the work of art” and “Dialogues with Guimarães Rosa”.

Key-words: João Cabral de Melo Neto; João Guimarães Rosa; relations.

Introdução

Tentaremos através da leitura de “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte” e “Diálogo com Guimarães Rosa”, estabelecer pontos convergentes e divergentes entre os escritores João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa.

A fim de apresentarmos alguns esclarecimentos, o primeiro texto trata-se de uma Conferência pronunciada na Biblioteca de São Paulo em 1952. Em seu texto, João Cabral discorre acerca do processo de composição poética e divide os poetas em duas famílias: os de inspiração e os de construção; desta segunda família, da qual o próprio diz fazer parte.

O segundo texto é uma entrevista de Guimarães Rosa concedida ao crítico alemão Günter Lorenz, por ocasião do “Congresso de Escritores Latino-Americanos”, realizado em Gênova, em janeiro de 1965. O diálogo, como Guimarães Rosa fez questão de intitular, permeia por vários âmbitos, desde sua biografia, passando por política, vaqueiros, crítica literária e, como não poderia faltar, a linguagem e seu processo de composição literária.

Apesar dos textos serem de naturezas diferentes e, os autores, tratar-se de um poeta e um romancista, destacamos pontos convergentes e divergentes entre os dois escritores da Geração de 45.

Como é sabido, João Cabral preza pela objetividade, pela consciência na composição da obra literária, o que também podemos encontrar em Guimarães Rosa: “Quando mais tarde chegou o tempo em que eu não quis continuar escrevendo, instintivamente, eu que quis ser ‘poeta’, comecei a fazê-lo conscientemente”. (ROSA, 1991, p.69)

Ainda a respeito do poema, Guimarães Rosa diz:

Principalmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei à “saga”, à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas. (ROSA, 1991, p.70)

A fala do romancista nos aponta três fatos importantes: a morte da verdadeira poesia causada pela elaboração na composição; o retorno do escritor ao conto simples e a vida como mote literário e não as regras.

Pois bem, ao anunciar a morte da poesia verdadeira tendo como culpada a elaboração mais rigorosa em sua composição, soa certo exagero, pois até o próprio João Cabral, conhecido por seu rigor formal, discorda ao dizer que:

O trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a regra, posterior ao sopro do instinto. Também não se exerce nunca num exercício formal, de atletismo intelectual. O trabalho de arte está, também, subordinado às necessidades de comunicação. (MELO NETO, 1997, p.70)

Já nos adiantando ao terceiro ponto levantado, vale ressaltar que a necessidade de comunicação à qual João Cabral se refere só pode ter origem na realidade, ou seja, na vida, e não em regras poéticas como afirmou Guimarães Rosa.

Quanto ao retorno do romancista ao conto simples, encontramos um paradoxo, pois a linguagem utilizada não se trata da linguagem corrente. O escritor mineiro pode até fazer uso dela, mas de forma elaborada, transformada através de freqüentes experiências com palavras de diversos idiomas. Foi ele próprio quem disse: “A língua serve para expressar idéias, mas a linguagem corrente apenas clichês e não idéias”. (ROSA, 1991, p.88)

A simplicidade da qual fala Guimarães Rosa em nada corresponde à fala corrente referida por João Cabral: “Essa espécie de poesia, geralmente, e hoje em dia, sobretudo, atinge mais facilmente o leitor. Ela é escrita em linguagem corrente, não por amor à linguagem corrente, mas como um resultado de sua pouca elaboração.” (MELO NETO, 1997, p.59)

No que se refere à inspiração, os dois escritores pensam de forma diferente. João Cabral é claro: “Falei em que esse tipo de poeta é um ser passivo que espera o poema. Note-se bem, ele não espera somente um momento propício para realizar o poema. Ele espera o poema, com seu tema e sua forma”. (MELO NETO, 1997, p.61)

Para o poeta, tal atitude só demonstra empobrecimento técnico. Já Guimarães Rosa: “Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão Mich reitet auf einmal der Teufel², que neste caso se chama precisamente inspiração”. (ROSA, 1991, p.71)

No entanto, é estranha tal afirmação ter vindo de alguém conhecido por ser um autor conhecido pelo elaborado artesanato da linguagem, cuja aplicação às exigências da linguagem é superada apenas por seu tradutor alemão. Ao ser questionado pelo entrevistador, o escritor desconversa, no entanto, diante da insistência de Günter Lorénz, acaba respondendo o seguinte: “Veja, nós, os escritores, somos uma raça realmente estranha, e eu sou certamente mais estranho deles todos. Tem razão, não estou me elogiando, quando digo que trabalho duro e aplicadamente”. (ROSA, 1991, p.72)

Não é nossa intenção, de forma alguma, colocar o grande romancista Guimarães Rosa a toda prova, apenas cumprimos nosso papel de leitor investigador, compreender seus pensamentos através de sua própria fala, já que a fonte usada trata-se de uma entrevista. No entanto, não podemos deixar de ver certos paradoxos em sua fala, pois um escritor que se embrenhou no meio do mato para pesquisar no sertão, sua fauna e flora, seu cheiro, sua fala, sua gente e seus “causos” para usar em suas obras e aprendeu diversas línguas e com elas fez experiências ao ponto de criar um léxico próprio, não poderia se valer apenas de inspiração. Até porque quando foi perguntado a respeito de sua genialidade nas obras, respondeu: “Genialidade, sei… Eu diria: trabalho, trabalho e trabalho.” (ROSA, 1991, p.82)

Guimarães Rosa também chegou a dizer que: “Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias”. (ROSA, 1991, p.79) O que nos lembra as idéias fixas de João Cabral.

Acreditamos que por sua mineirice por gostar de “causos”, seria mais interessante para Guimarães Rosa responder certas questões de forma lúdica.

Outro ponto tocado por ambos é quanto ao papel do crítico. Para João Cabral:

A ele cabe verificar se a composição obedeceu a determinadas normas, não porque a poesia tenha de ser forçosamente uma luta com a norma (sic), mas porque a norma foi estabelecida para assegurar a satisfação da necessidade. O que sai da norma é energia perdida, porque diminui e pode destruir a força de comunicação da obra realizada. (MELO NETO, 1997, p.52 – 53)

Vemos, então, uma extrema preocupação do poeta que é justificada pelo temor da falta de comunicação entre o texto e o leitor; opinião da qual Guimarães Rosa, de certa forma, comungou: “A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quando aspira a completar, a preencher, em suma permitir o acesso à obra.” (ROSA, 1991, p.75).

Em relação à poética individual, para João Cabral: “Cada poeta tem sua poética.” (MELO NETO, 1997, p.53) No entanto, o escritor pernambucano não vê isso com bons olhos, pois atribui tal fato como razão principal para não se definir a composição do poema moderno.

Já Guimarães Rosa é a favor: “Nesta Babel espiritual de valores em que hoje vivemos, cada autor deve criar seu próprio léxico, e não lhe sobra nenhuma alternativa, do contrário, simplesmente não pode cumprir sua missão.” (ROSA, 1991, p.88)

Entendemos a afirmação acima como uma forma de dizer que a personalidade do escritor faz parte de sua escrita, não nos deixando a menor dúvida ao dizer: “Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive.” (ROSA, 1991, p.83)

O último ponto que destacaremos trata-se do fato do criador se desligar da criatura, ou seja, do texto.

Segundo João Cabral:

Outro aspecto importante a que visa o trabalho artístico, a saber, o de desligar o poema de seu criador, dando-lhe uma vida objetiva independente, uma validade que para ser percebido dispensa qualquer referência posterior à pessoa de seu criador ou às circunstâncias de sua criação, tudo isso lhe é completamente inimigo. Neles o poema não se desliga completamente de seu autor. (MELO NETO, 1997, p.60)

É claro que se torna impossível não encontrar no texto marcas do autor, porém acreditamos que o poeta se refira ao subjetivismo individualista largamente cultivado desde o Romantismo. Quanto à questão, Guimarães Rosa parece concordar com João Cabral ao afirmar que:

A personalidade do escritor, ao escrever, é sempre seu maior obstáculo, já que deve trabalhar como um cientista e segundo as leis da ciência; ela o faz perder seu equilíbrio, tornando-o objetivo quando deveria buscar a objetividade. A personalidade, é preciso encarcerá-la no momento de escrever. (ROSA, 1991, p.89)

Dissemos anteriormente que o romancista apenas parece concordar com o desligamento do criador e de sua criatura porque mesmo se formos analisar através do olhar cabralino, encontraremos uma divergência quando Guimarães Rosa diz: “(…) é impossível separar minha biografia de minha obra.” (ROSA, 1991, p.66)

Realmente não há como separar, tão pouco a João Cabral foi possível fazê-lo, apesar de seus esforços, pois mesmo acreditando que o poeta estivesse se referindo ao subjetivismo cultivado desde o Romantismo, engana-se quem pensar que não há subjetivismo em sua obra; existe, porém de forma diferenciada dos românticos e demais; um subjetivismo contido, partindo do denotativo para atingir o conotativo.

No caso de Guimarães Rosa, vários apontamentos poderiam sugerir um autor paradoxal, entretanto quase chegando ao final da entrevista nos deparamos com a peça que faltava para esclarecer tal circunstância: “Não estão certos, quando me comparam com Joyce. Ele era um homem cerebral, não alquimista.” (ROSA, 1991, p.85)

Durante alguns trechos da entrevista, Guimarães Rosa foi a favor da lógica e em outros não, como podemos ver neste trecho:

LORENZ: Você está contra a lógica e defende o irracional. Entretanto, seu próprio processo de trabalho é uma coisa totalmente intelectual e lógica. Como você se explica esta contradição e como a explica a mim?

GUIMARÃES ROSA: (…) Mas cada conta, segundo as regras da matemática, tem seu resultado. Estas regras não valem para o homem, a não ser que não se creia na sua ressurreição e no infinito. Eu creio firmemente. Por isso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. (ROSA, 1991, p.66)

Talvez a explicação pudesse estar numa espécie de auto-titulação de alquimista (longe, qualquer semelhança com Paulo Coelho); aquele homem que praticava a química medieval, baseada na procura da pedra filosofal, capaz de transformar qualquer metal em ouro, e do elixir da vida, ou seja, um cientista fora do convencional por suas experimentações com o místico, o metafísico, o ilógico, o irracional, aquilo que não se pode ver com os olhos.

Já João Cabral só se rendia ao que lhe fosse lógico, racional, calculável, assim como deve agir um cientista ou um engenheiro.

De certo, após o levantamento feito através das duas leituras, podemos concluir que cada qual, em seu gênero e gênio, trouxe uma importante contribuição para a Literatura, através de novas idéias e pela forma como trabalharam a linguagem em seus textos.

Referências Bibliográficas

MELO NETO, João Cabral de. “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte”. In: ______. João Cabral de Melo Neto: prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

ROSA, João Guimarães. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In:COUTINHO, Eduardo de Faria (Org.). Guimarães Rosa – Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

¹Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

²De repente o cavalo me cavalga.

http://www.uniesp.edu.br/revista/revista4/publi-art2.php?codigo=7

Redação

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