O OUTRO DEPENDE DE UMA DISPOSIÇÃO RADICAL PARA O QUE É INESPERADO

por Bernando Carvalho, escritor, na Folha de S. Paulo (06/08/2017)
 

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A maioria das pessoas acha que o outr

o é o que corresponde a sua ideia de outro. Quando dizemos “outro”, estamos nos referindo a uma projeção, à ideia que fazemos do “outro”. Reservamos uma casinha para a diferença, mas a diferença real não cabe na casinha que lhe reservamos.

Paul Beatty, autor de “O Vendido” (Todavia), descreve isso muito bem na entrevista que concedeu a Maurício Meireles, na “Ilustrada”, em julho, antes de vir à Flip: “Os editores não vão contratar quem é diferente deles. (…) É como se os autores não tivessem permissão para imaginar. (…) As pessoas querem não a afirmação do outro, mas de si mesmas. Esse é o tema do meu livro”.

Beatty fala com conhecimento de causa. Seu livro foi recusado por 18 editoras antes de ser publicado e ainda é capaz de ofender leitores classificados como “sensíveis” à virulência cômica da história de um negro que reinstaura a segregação racial, num subúrbio de Los Angeles, como solução para a violência e para os problemas sociais.

O romance de Beatty desafia o leitor a encarar o outro que se manifesta apesar das representações que tentam dar conta dele (e que, nesse sentido, tem a ver com o real, com o imprevisível, com o inadequado e também com a morte). Esse outro que, embora esperado, chega sempre na hora errada, não corresponde às expectativas e nos contradiz, desmontando as representações prévias e as ideias feitas. É o que dá tanto mais contundência à recusa de Beatty a se submeter aos rótulos e adjetivos que tentam domesticar a inadequação de seu livro.
O outro é incompatível com estratégias de mercado que procuram atender a demandas de leitores e clientes, por melhores que sejam as intenções, por mais que essas demandas digam respeito a causas justas, como a representação de vítimas e oprimidos. É o avesso do espelho, o que não se quer ver, aquilo com o qual não se identifica, o excluído no sentido radical do termo.
A literatura, terreno fértil para a expressão do outro e do excluído, desperdiça seu potencial de resistência à normalização ao se converter em mero instrumento de identificação e empatia, ao cair na armadilha de representações que, abrindo mão de sua liberdade, passam a se pautar por regras e convenções.
O outro depende de uma disposição radical para o que é inesperado, impensável, incompatível e às vezes indesejável, para um constante alargamento do entendimento do mundo. Aí está o potencial de resistência da literatura. Não é um processo fácil nem sem esforço, o que explica a tendência natural de preferirmos os consensos às exceções, o mesmo ao outro.
A arte mais livre e também a mais radical é aquela na qual não só o outro se manifesta e se expressa, mas que é ela própria outro. Não sendo simples espelho, ela não funciona por identificação ou empatia, mas antes por estranhamento, por um processo complexo entre reconhecimento e espanto, atração e repulsa. A assimilação/normalização do outro a neutraliza, torna inócuo o que nela é força de mudança, desconforto e contradição. Vem daí o equívoco da equivalência entre arte e democracia representativa, para a qual a visibilidade do excluído responde a um clamor de inclusão social e representa de fato uma conquista na luta por seus direitos.
O discurso identitário revela sua ambiguidade, sua fragilidade e sua contradição quando nos damos conta do escopo semântico de “outro”, que abarca tanto o excluído como o inimigo, tanto a vítima como o algoz. Tudo depende do lugar onde estamos. O livro de Beatty aponta para o paradoxo desse sistema de representações que, a despeito de intenções politicamente corretas, ao dar visibilidade ao outro, ao assimilá-lo, no fundo o enfraquece, torna-o invisível, indefeso e inofensivo, termina por reduzi-lo ao mesmo.
Esse sistema de representações dá um duplo tiro no pé quando procura submeter o real a um pensamento normativo e tornar o inimigo invisível (contando em extirpar o mal do mundo pela mágica de expressões eufemísticas, um dia você acorda e Trump é presidente dos Estados Unidos), enquanto subjuga a arte à fragilidade de um discurso de primeiro grau, confundindo o que dizem os personagens com as supostas intenções do autor e tornando ininteligíveis recursos poderosos como a ironia.
É aí que os caminhos da arte e da democracia representativa se bifurcam e não devem mesmo se confundir, sob o risco de uma perda mútua, dissolvendo a luta e a resistência política no equívoco de um academicismo normativo e anódino. É esse entendimento que garante, por oposição, a inteligência e a originalidade, a força e a graça do livro de Beatty.

 
 
 
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