Um panorama da ditadura civil-militar em 10 filmes

Enviado por Jota A. Botelho

Da Carta Maior

A Ditadura civil-militar em 10 filmes

Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.

Esta lista não se pretende definitiva, muito menos apontar quais os dez melhores filmes sobre a ditadura civil-militar. Trata-se de um panorama que busca abarcar grande parte da produção cinematográfica brasileira a respeito do tema. Há filmes de todas as décadas desde o golpe. Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos. Imaginamos que os filmes dessa lista deem conta da maioria dos processos que envolveram a ditadura. Mas mais importante, esperamos que deixem evidente a capacidade do cinema em se colocar como documento de uma época das mais diversas maneiras.

O DESAFIO (Paulo Cesar Saraceni, 1965)

Impressiona que um filme feito no “calor da hora” tenha um grupo de personagens que dê conta das mais diversas posturas em relação ao golpe. Há o empresário que quer a manutenção da ordem, sua mulher alienada que continua vivendo como se nada tivesse acontecido, e o amante desta, o jornalista idealista em completa crise existencial. Saraceni vê o golpe dentro de um processo histórico e não como evento isolado, fora de contexto, tendo assim sucesso na construção de tal panorama.

http://www.youtube.com/watch?v=qD8O13DsbE4]

TERRA EM TRANSE (Gláuber Rocha, 1967)

Em 1964, um mês antes do golpe, Deus e o Diabo na Terra do Sol já estava finalizado e pronto pra chegar aos cinemas. Enquanto tratava das condições de exibição e distribuição do filme, Gláuber assistia a tomada de poder pelos militares. Três anos depois, é em Terra em Transe que temos retratado sua visão deste processo. Paulo Martins é o protagonista que carrega em si o conflito entre conservadorismo e engajamento, quer ser poeta e tratar de temas políticos ao mesmo tempo. Há uma certa análise superficial do filme, que acusa Gláuber de criticar todos os lados. No entanto, trata-se de um raro olhar dialético das contradições da época, concentradas em um personagem. Sem dúvida, um olhar bastante cético em relação às perspectivas futuras. Um ano depois, era decretado o AI-5.

http://www.youtube.com/watch?v=RUlSBE7Z-1g]

 

A MULHER DE TODOS (Rogério Sganzerla, 1969)

Pode parecer estranho para alguns a presença deste filme numa lista como essa, mas é essencial retomar a postura de um dos mais importantes cineastas brasileiros em relação ao momento histórico de que tratamos aqui. E neste caso, é do total deboche e sarcasmo. As desventuras de Angela Carne e Osso pela Ilha dos Prazeres retratam a mediocridade e alienação da classe média paulistana. E Sganzerla utiliza de todos os artifícios e referências da Boca do Lixo, das chanchadas e dos quadrinhos para isso. E como grande momento, o discurso final do empresário traído interpretado por Jô Soares, prenhe de simbolismo em relação ao contexto histórico, quando diz: “Eu não calculo nunca, mas quando faço uma besteira, eu vou até o fim”.

http://www.youtube.com/watch?v=u3fCgzyMIeo]

 

MANHÃ CINZENTA (Olney São Paulo, 1969)

Censurado em 1969 por ser considerado “altamente subversivo”, o filme foi confiscado e nunca chegou a ser exibido comercialmente. Uma de suas cópias foi salva e ficou escondida na Cinemateca do MAM por 25 anos. Olney São Paulo é o único cineasta brasileiro a ser preso e torturado pela produção de um filme. Manhã Cinzenta retrata a prisão e tortura de estudantes que participavam de uma manifestação. Eles são interrogados por um robô e um cérebro eletrônico, situação absurda que Olney usa como metáfora, tanto para mostrar os extremos do regime quanto para tratar com escárnio a alienação de parte da sociedade na época.

http://www.youtube.com/watch?v=kA34LXfwBlc]

 

VOCÊ TAMBÉM PODE DAR UM PRESUNTO LEGAL (Sérgio Muniz, 1973)

Feito em 1971 e finalizado dois anos depois, o filme de Sérgio Muniz só foi exibido no Brasil em 2006. Esse hiato de 33 anos ocorreu pois, na época, amigos do diretor recomendaram que ele não passasse o filme no país, temendo por sua segurança. O documentário foca nas ações do delegado Sérgio Fleury e do Esquadrão da Morte durante a ditadura, alternando matérias de jornal e imagens da época com depoimentos de torturados e fragmentos das peças “A Resistível Ascenção de Arturo Ui” (Bertold Brecht) e “O Interrogatório” (Peter Weiss). 

http://www.youtube.com/watch?v=RE8UvCUFGAk

 

E AGORA, JOSÉ? – TORTURA DO SEXO (Ody Fraga, 1979)

O filme Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) é muitas vezes considerado pioneiro em retratar as torturas que ocorriam nos porões dos órgãos policiais da ditadura. No entanto, tal “honraria” pertence, na verdade, a este filme, produto da Boca do Lixo paulistana. Assim como o sucesso de bilheteria estrelado por Reginaldo Faria e Antonio Fagundes, E Agora, José? também trata de um sujeito apolítico que é preso por engano e torturado pelo regime. Enquanto Pra Frente Brasil pretende-se denúncia histórica – e acaba sendo reprodutor da “teoria dos dois demônios”, a qual defende que direita e esquerda estavam erradas – o filme de Ody Fraga tenta se equilibrar entre o engajamento e o escárnio, embora acabe derrabando em vícios do gênero e da época, como o erotismo misógino. De qualquer forma, uma obra normalmente esquecida e que vale a revisão pelo pioneirismo e possibilidades que origina.

 

CABRA MARCADO PARA MORRER (Eduardo Coutinho, 1984)

Em fevereiro de 1964, Eduardo Coutinho foi até a Paraíba para contar a história da morte do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado dois anos antes. O diretor buscava mostrar como as Ligas Camponesas, que tinham como objetivo a mobilização do trabalhador rural pela reforma agrária, estavam sendo reprimidas pelos latifundiários. No entanto, o filme foi interrompido pelo Golpe. Membros da equipe de filmagem foram presos, acusados de estarem ensinando táticas de guerrilha para os camponeses, e parte do rolo do filme confiscado. Coutinho volta ao Engenho da Galileia dezessete anos depois para encontrar Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e continuar o filme, que, iniciado como ficção, acabou se tornando o mais importante documentário do cinema brasileiro. Cabra Marcado para Morrer talvez seja o único filme brasileiro que não possa ser excluído de uma lista como esta, pois é de fato um produto da repressão da ditadura. Não retrata um contexto, faz parte dele. 

[video:http://www.youtube.com/watch?v=JE3T_R-eQhM

 

AÇÃO ENTRE AMIGOS (Beto Brant, 1998)

Miguel (Zécarlos Machado) descobre o paradeiro do homem responsável pela sua tortura e de seus amigos. Ele engaja-se na busca desse acerto de contas e tenta convencer Elói, Paulo e Osvaldo a fazer o mesmo. A grande virtude do filme de Beto Brant está exatamente nessa batalha de argumentos a favor ou contra o enfrentamento com o carrasco, da onde emerge a necessidade da rememoração (um dos personagens diz que “já foi há tanto tempo, é melhor não mexer no passado”) e da busca pela justiça. Paira sobre o filme, assim, a lógica de que, em um caso desses, quando não há ação do Estado, as consequências podem ser fatais.

[video:http://www.youtube.com/watch?v=ChSQDcJif2E

 

MEMÓRIA PARA USO DIÁRIO (Beth Formaggini, 2007)

Produzido pelo grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, o documentário tem como cerne o exercício de memória em busca da reparação. Depoimentos explicam a história e as atividades do grupo. Familiares são levados às ruas que receberam o nome de seus parentes desaparecidos, onde explicam para os moradores quem foram aquelas pessoas. Uma senhora busca em arquivos do Estado uma prova de que seu marido desaparecido foi preso pelo regime. Um homem procura em um cemitério as ossadas de seu irmão. No entanto, a grande virtude do filme é a relação que estabelece com a atualidade, bastante rara no cinema brasileiro contemporâneo. Vemos depoimentos de mães que tiveram seus filhos, negros e favelados, mortos sem razão aparente pela polícia militar. Relembrar, portanto, não serve apenas para resolver as questões passadas, mas também para expor a continuidade da truculência militar, agora com vítimas muito mais marginalizadas pela sociedade.

[video:http://vimeo.com/74503320

 

HOJE (Tata Amaral, 2013)

Acompanhamos a chegada da personagem Vera ao seu novo apartamento e todas as interações que uma mudança implica: conversa com a síndica do prédio, orientação sobre onde devem ir caixas e objetos etc. De repente, surge Luiz, antigo companheiro de Vera nos tempos de guerrilha. Ele a questiona se o dinheiro daquele apartamento se deve a uma indenização, na qual o Estado reconhece que se trata de um cidadão desaparecido em razão de ações do regime. O roteiro de Jean-Claude Bernardet, Felipe Sholl e Rubens Rewald (do ótimo Corpo, que também tem a memória e o direito à verdade como plano de fundo) faz dessa ambiguidade entre o real e a fantasioso instrumento para expor um trauma que precisa ser encarado a fim de ser resolvido.

[video:http://www.youtube.com/watch?v=W2UHg6ZRqHA

Redação

8 Comentários

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  1. outros filmes

    Uma boa lista que tem o mérito de incluir o esquecido E agora José? , mas causa estranheza com a citação de A mulher de todos e mesmo de Terra em transe, feito antes do golpe militar, mas editado e lançado depois. ACresc ento, entre os ausentes, o excelente Batismo de Sangue, do Ratton e  O ano em que meus pais sairam de férias, do Cao Hamburger, que é um olhar diferenciado sobre aqueles dias, mas nem por isso menos denso.

    1. Oi, Alfie

      Terra em Transe foi filmado em 1966 e lançado no início de 1967, depois de uma tentativa de censura, revertida porque aind era antes do AI-5. De dezembro de 1968 em diante, não teve jeito… E é bem defensável a presença de A mulher de todos e do ótimo O Bandido da Luz Vermelha, que poderia estar na lista também: todos se ambientam na ditadura com seu rol de brutalidade e boçalidade..

  2. Valeu, Jota!

    Excelente seleção, que ainda tem a qualidade de trazer filmes de diferentes tendências do cinema nacional, sem preconceito. Indico também este curta de Ozualdo Candeias, Zezero, de 1974, um dos mais contundentes filmes sobre o que representou o “Milagre Brasileiro” para o povo mais pobre. O filme nem passou pela censura da época, pois seu diretor teria sido preso… Candeias era da Boca do Lixo, mas não fazia pornochanchadas, e sim um cinema poético-político-social. Outros filmes seus desse período também são de denúncias da ditadura. Candeias foi caminhoneiro e tinha um extraordinário senso estético, apesar da precariedade dos meios de que dispunha.

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=mUHaSCfy4R4%5D

  3. Porque só 10?
    Algumas outras

    Porque só 10?

    Algumas outras sugetões:

    ABC da greve:

    http://www.youtube.com/watch?v=2hhFk0cml6Y

    Cidadão Boilesen:

    http://www.youtube.com/watch?v=yGxIA90xXeY

    Braços cruzados, máquinas paradas:

    http://www.youtube.com/watch?v=owVJH1a-w8Y

    Jango (Silvio Tendler):

    http://www.youtube.com/watch?v=1O4SZQZ-ikk

    Dossiê Jango:

    http://www.youtube.com/watch?v=K6a6fjZKjkw

    Vala comum:

    http://www.youtube.com/watch?v=662aQ6k5YRY

    http://www.youtube.com/watch?v=1SV04kzsPPw

    Hercules 56:

    http://www.youtube.com/watch?v=xxPNQfNpkOo

    Iracema, uma transa amazônica:

    http://www.youtube.com/watch?v=jPhFwT2BDtw

    e mais:

    Lamarca, Zuzu Angel, Mariguella, O dia que durou 21 anos

    etc

     

    1. Realmente, dez é pouco. E

      Realmente, dez é pouco. E entre os filmes excelentes, lembrei-me também de Iracema – Uma transa amazônica, junto com Zezero, outra porrada cinematográfica no “Milagre” da ditadura. Integralmente censurado na época, deveria ser um filme de exibição obrigatória em todos os cinemas e todas as redes de TV… 

       

  4. Acabei de ver numa sala de

    Acabei de ver numa sala de cinema em São Paulo o documentário “Em busca de Iara”.

    Recomendo e pode acrescentar à lista desse panorama.

    1. Isso aí, Jota. Na Argentina,

      Isso aí, Jota. Na Argentina, houve “trabalho de luto”, pra se empregar a linguagem psicanalítica. E houve justiça. Nós estamos com essa coisa mal resolvida e irresolvida, e assim permaneceremos.

       

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