Nada como uma boa cachacinha

Dane Vasic e Daut Tihic: após quase se matarem no campo de batalha, ex-soldados se reencontraram numa mesa de bar

Sugestão de Jota A. Botelho

“Mas eu matei você!”

Décadas depois de quase se matarem no campo de batalha, dois antigos soldados da Guerra da Bósnia se reencontram e acabam se tornando sócios  

por Deutsche Welle – publicado 26/08/2017 – via Carta Capital – Fotos: Marinko Sekulic / DW 

Em outubro de 1992, no front de guerra de Skelani, perto de Srebrenica, dois soldados se encontram durante um combate. O bósnio muçulmano Daut Tihic é mais rápido e atira no inimigo sérvio, derrubando-o.
Anos mais tarde, no outono de 2006, quando a guerra na Bósnia Herzegovina já tinha há muito acabado, Daut bebia com amigos em sua aldeia natal, Skelani, quando viu um homem de rosto familiar entrando no bar.

O desconhecido o cumprimentou e se sentou em outra mesa. Daut não acreditava. “Este é o homem que matei” gritou para seus amigos, antes de se levantar, ir até o homem e dizer: “Eu matei você!”

Em outubro de 1992, Daut fugiu com a família de Skelani para as montanhas, indo para o vilarejo de Miljevine. Lá, soube que os sérvios preparavam um ataque contra as aldeias Josevo e Jagodnja. Com um punhado de soldados, foi ajudar na defesa dos moradores.

“De repente, vi a alguns metros de mim um soldado sérvio. Ele se levantou lentamente e se aproximou de mim com uma arma. Eu atirei e o acertei no peito. Ele caiu de costas. Eu estava certo de que ele estava morto”.

Depois, correu para a aldeia: “A batalha não durou muito tempo. Nós conseguimos repelir o ataque e defender os moradores. No caminho de volta, eu não vi nem o soldado sérvio nem a arma dele. Eu achava que os colegas dele o tivessem levado embora, porque eu podia ver que se tratava de uma unidade de elite”.

O soldado sérvio se chama Dane Vasic. “Para falar a verdade, eu estou sinceramente contente de que ele esteja vivo”, afirma Daut. “Assim ele não me pesa na consciência”.

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E foi assim que eles se conheceram, em 2006, num encontro regado a aguardente, como é costume nos Bálcãs. Os dois são personagens principais do documentário (Ne)Prijatelji (Não Amigos, em tradução livre), dos diretores bósnios Emir Kapetanović e Sead Kreševljaković. O filme, contando a história dessa amizade inusitada, foi exibido neste mês (Agosto/2017) no Festival de Cinema de Sarajevo.

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“Devido aos constantes ataques dessas aldeias, planejamos aquela incursão”, lembra o sérvio. “Eu conhecia a área e fui requisitado para sondar o terreno. Era uma operação de rotina. De repente, ouvi ruídos, alguma coisa se quebrando. Eu me virei e vi um homem que apontava uma pistola para mim”.

Vasic diz que, a princípio, não sabia de que lado o outro soldado era. “Este momento de indecisão foi crucial para ele. Ele foi mais rápido, senão eu o teria matado. Eu não ouvi os tiros. A última coisa que vi foi o cano da arma dele. Eu senti uma pancada que me jogou vários metros para trás. Quando recobrei os sentidos, vi a coronha destruída da minha arma e meu colete à prova de balas destroçado. Ele me salvou. Eu tive a incrível sorte de permanecer ileso”, conta Dane Vasic.

Sérvio Dane Vasic: ‘Nem eu nem Daut queríamos guerra’

Após o encontro no bar, Daut e Dane não só se tornaram amigos, mas também parceiros de negócios. Eles planejam até mesmo fazer investimentos conjuntos. Dane vive do outro lado do rio Drina, na Sérvia. Ele compra e revende ervas e frutos silvestres, tem um caminhão e possui várias lojas de suvenires.

“Estamos planejando abrir uma empresa comum que combinaria os negócios meus e dele. Nós apresentamos um projeto à administração, mas ainda estamos esperando autorização”, diz Daut. Dane assente com a cabeça. “Houve atrasos, não sei por quê. Mas sei que decidimos trabalhar juntos, e tenho certeza de que teremos sucesso”.

“Parece que alguns políticos não gostam muito do nosso bom relacionamento e cooperação, eles preferem que estivéssemos brigando e travando guerras, e que cada um de nós viva em seu gueto étnico, para que eles possam permanecer no poder e governar mais facilmente”, acredita o bósnio muçulmano Daut.

Eles começaram a falar abertamente sobre quem fez o que e onde durante a guerra. “Não preciso ter vergonha”, frisa o sérvio. “Eu não fiz nada de errado ou ilegal, eu era um soldado como ele, atirei nele, ele em mim. Assim é a guerra: você mata para não ser morto. Acho que nem eu nem Daut queríamos essa guerra”. Eles concordam que nenhuma guerra jamais trouxe algo de bom.

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Jota Botelho

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  1. São esses ragos  de luz em

    São esses ragos  de luz em meio à escuridão que não nos deixa perder a esperança que algum dia consigamos conviver na paz e na fraternidade. 

  2. Para ambos: A razão do título

    Rakija, a bebida oficial dos Bálcãs

    A rakija é uma bebida típica de vários países balcânicos, como Bulgária, Bósnia, Croácia e outros. É um licor de frutas semelhante ao conhaque, que varia conforme a região produzida.São usadas para a formação da bebida frutas como ameixa, uva, pera, maçã, figo etc. É forte, tendo geralmente cerca de 40% de teor alcoólico. O bom é que mistura uma boa graduação alcoólica com frutas – o que faz com que as chances das mulheres gostarem aumente mais. Rakija, não tem como descrever… é simplesmente rakija! É a bebida mais famosa da Sérvia e dos países balcânicos em geral, símbolo de toda a alegria, descontração e companheirismo da região. Presente tanto nas maiores comemorações quanto nos mais simples encontros de amigos. A rakija faz parte do dia-a-dia da Sérvia e já está no sangue do seu povo. Quando você vai à casa de um sérvio, e este te oferece rakija, saiba que você é muito bem-vindo – um verdadeiro drug! (“amigo”, em sérvio).  A bebida é também conhecida em outros países da região como Rakia, Rakije e outros nomes complicadíssimos para o português, mas no fundo é a cachaça deles lá. Por falar em cachaça, lembro-me de ainda criança, ir com meu já falecido pai na fazenda das Crioulas, onde se produzia uma cachacinha, destilada na fermentação da jabuticaba, que era um verdadeiro néctar, quase um licor, mas cachaça. Seu fabricante à época, o dono da fazenda e do alambique, era muito amigo do meu pai e, grandes bebedores que eram, aproveitavam essas ocasiões para por a prosa em dia, enquanto iam degustando in loco à fabricação da cachaça. Ele tinha um viés comunista e vivia desdizendo as carolas da cidade. “Essas carolas, que vivem se escondendo por aí, por debaixo da batina do padre, nessa beijação com o bispo, andam falando que eu fico envenenando o povo. Não sabendo elas que Jesus Cristo foi o primeiro cachaceiro da história”.  “Uai, que estória essa que eu não tô sabendo?” – interrogou meu pai. “Ora, pois não é moço. Por que ele botou o vinho na eucaristia. Ora, ora, vem me dizer que não tinha tâmara? Tinha! E laranja? Damasco? Também tinham! Vai ver, tinham até pêssegos. Mas era vinho, moço! Aquilo era ressaca! Descobri isso lembrando da última ceia. Que farra foi aquilo…” E meu pai já calibrado: “Ué, quer dizer que Ele era um dos nossos!” Cai o pano. Mas como diria Millôr: “Nunca vi um exército de bêbados invadir um país de bêbados”. Fecham-se as cortinas. A seguir, um videozinho da rakija sendo destilada na Sérvia, o que mostra que o povo no mundo é tudo igual. Tudo gente boa. E roça é roça, aqui, na Sérvia e até Conchichina. A praga é o capitalismo mesmo, sempre foi. Destruíram a antiga Iugoslávia como o último reduto da utopia comunista na Europa. Como aqui, com a nossa última experiência (?) de um Governo Nacional que pretendia civilizar este país. 

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=bJR-LDVRH50 align:center]
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