Luciano Hortencio
Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.
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Rua dos Abandonados

por Luciano Hortencio

RUA DE POBRE – Marilita Pozzoli.

Rua de pobre não carece asfalto:

pobre não tem automóvel…

Rua de pobre não carece luz:

pobre deita cedinho…

Não precisa também numeração:

não vem carteiro,

não vem telegrama,

não passa lixeiro.

 

Cada casa é indicada por um acidente:

aquele do tôco é do João Dorminhoco.

A da laje no terreiro,

é do Zuza Pedreiro.

Essa da gaiola,

é da Maria Paxola.

A da trepadeira

é da Luiza Peixeira.

Tem casa torta pra lá,

tem casa torta pra cá.

Casa inclinada pra frente,

casa empinada pra trás.

Parecem formar ballet,

parece que vão cair

mas continuam de pé…

 

Vem lá de dentro uns berros de mulher:

Pass pá dento Juaninha!!!

E Joaninha num berreiro:

“Mãe, furmiga tão me cumendo,

eu caí no furmigueiro!

“Do outro lado alarido

um cão que quebrou panela

e apanha como um danado!

E sai cada palavrão!…

Coitado do pobre cão!

 

Um papagaio se expande

numa algarávia maluca:

“O lelê carapeba é pêxe de má

Ô lele carapeba é pêxe de má.

Currupaco — papaco

Currupaco — papaco.

Lôro… Lôro…”

 

E tem menino sambudo

brincando na enxurrada

pra se esquecer da maleita…

Lá na esquina, um vadio

tira dois dedos de prosa

com a morena dengosa

que vai à venda comprar.

Bebe um trago de aguardente

e oferece pra toda gente

sem mesmo poder pagar:

— “Não são servido, mecês?

Ë entorna o copo de uma vez!

 

Vem gemido da vizinha

que está com dor de dente…

Vem canção de carnaval

lá no fundo do quintal…

“Tava jogando sinuca

uma negra maluca me apareceu.

Vinha com o filho no braço…

 

……………………………………….

 

Mas essa rua tem alma!

Tem alma e tem coração!

Hoje só há tristeza…

Morreu o João da Tereza,

— fogueteiro que enfeitava

as noites de São João.

 

Vão cantar a noite inteira

até o dia raiar.

Vão cantar as “inselença”

que é pro João se salvar.

“Uma inselença da Virge da Conceição

Deus num primitas que eu morra sem cunfissão.

Duas inselença da Virge da Conceição,

Deus num primitas que eu morra sem cunfissão.

Três inselença da Virge da Conceição

Deus num primitas

que eu morra sem cunfissão…

Quarta inselença”…

— São doze inselença

E não se pode parar

porque senão dá azar…

 

Mas quando é noite de lua

e uma viola soluça

esse abandono fatal,

como é bonita essa rua!…

Rua de pobre esquecida

do governo da cidade!

Sem água, sem luz, sem placa,

Sem carteiro e sem lixeiro

— rua que nem nome tem…

Só a lua é tua amiga,

só a lua te quer bem.

 

Rua de noites perdidas,

de dias estagnados

num bairro pobre qualquer…

Rua de cães vagabundos

pelos terrenos baldios,

de gatos pelos telhados…

teu nome devia ser:

Rua dos abandonados.

Do livro: “Enquanto espero as rosas”, Ed. Henriqueta Galeno, 1969, Fortaleza-Ceará.

luciano hortencio – RUA DE POBRE – Marilita Pozzoli – do livro ENQUANTO ESPERO AS ROSAS.

 

Luciano Hortencio

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