A desumanização dos usuários de crack

Do Portal Luis Nassif
Página de Rodrigo Mesquita de Alencar

Visita à cracolândia, no dia do churrascão dos diferenciados. 

Visita à cracolândia.

Há pouco mais de seis meses comprei uma câmera. Desde então saio para fotografar aos finais de semana, com um amigo. Estamos sempre pelo centro, mas nunca tínhamos ido à cracolândia. É natural, todos têm medo de ir até lá, a desinformação é grande. Vemos pela TV e pelos portais da internet sempre as mesmas cenas de degradação, pessoas vivendo como animais, sujas, agressivas, o que faz com que muito de nós aceitemos, sem contestação, que chamem a essas pessoas de “zumbis”.

Pois escrevo, para dizer que ontem conversei e vi vários viciados em crack perfeitamente capazes de entender a realidade em que vivem.

Paramos na Avenida Rio Branco, arredores da cracolândia, para tomar uma cerveja e ganhar coragem para fotografar na Rua Helvétia, o olho do furacão, onde se concentram a maior parte dos viciados em crack de Sâo Paulo. Eu e o meu amigo estávamos com nossas câmeras à mostra, o que fez com que Luís, um viciado em crack, se aproximasse, achando que a gente fosse da imprensa. Meu amigo o convidou para sentar, eu acompanhava a conversa distante, sem saber o que fazer com todos os meus preconceitos.

Luís, contou que era viciado em crack há mais de 10 anos. Foi quando a conversa ficou interessante para mim. Luís estava lá, de pé, com os músculos que o seu exercício diário de empurrar carrinho de papelão lhe deu. Usuário de crack há mais de uma década, vivo e forte. Ao contrário do que se ouve por aí, de que essa droga mata em poucos anos.

Luís contou que já roubou, foi preso, mas se reerguia. Não roubava mais, trabalhava como catador de material reciclável para viver. A essa altura o que havia não era mais uma experiência exótica com um crackeiro e sim uma conversa entre três pessoas. Luís nos aconselhou a assistir ao filme “expresso da meia noite”, também citou Bukowski e nos deu uma aula sobre a história do crack, até a droga chegar no Brasil. Luís queria se livrar do vício, mas lutava contra o crack sozinho. Disse por que não acreditava no tratamento oferecido pela prefeitura “eles têm dinheiro para te dar um remédio que custa 200 reais a dose e depois te jogam na rua, parceiro. Tem dinheiro pra isso, mas não oferecem uma cama para você dormir, um banho para você tomar”. Sobre a ação da prefeitura e do governo estadual na cracolândia, ele disse “eles põem a polícia lá, mas não levam o pessoal para ver um cinema”.

Fomos, com Luís, a caminho da Rua Helvétia, onde acontecia o “churrascão dos diferenciados”. Esperávamos encontrar hostilidade por parte dos viciados, que têm fama de serem agressivos. O que faltava era saber do ponto de vista deles, o por quê dessa agressividade. Não é só por conta do crack, eles simplesmente não querem ser fotografados naquelas condições, usando a droga. É óbvio, ninguém gostaria. O difícil é entender isso, pois, em muitos casos, já os desumanizamos. Foi o que ouvimos de Luís no bar, “vai lá e olha o lado humano do cara”, “e não vai com a câmera apontando”, palavras que a imprensa e a sociedade precisam ouvir, pois quando não é a câmera apontando, é a arma da polícia, o cassetete dos seguranças e o preconceito das pessoas.

A imprensa não pensa que se tratam de seres humanos ao abordá-los, querem sempre a foto mais impactante, alguém acendendo um cachimbo, de preferência sujo e degradado, um zumbi. Ou, o que é pior, a polícia entrando em ação, prendendo, abordando um viciado, para todo mundo ver e registrar.

Muito da hostilidade deles vem daí. Sentimos isso na pele, ao encontrarmos um grupo de mais de 10 usuários numa esquina. Os encontramos ao mesmo tempo em que a polícia apareceu. Foi o primeiro policial descer da viatura e todos saíram andando, fugindo dos pms, em direção à Rua Helvétia. No caminho, alguns dos viciados nos ameaçaram, vieram para cima da gente para cobrar explicações, outro veio dizendo que poderíamos tirar uma foto dele caso pagássemos.

Foi um momento de grande tensão, até aparecer o Luís para dizer que não éramos da imprensa e apaziguar os ânimos. No mesmo momento a postura dos viciados mudou e ao invés de ameaça, fomos abraçados por alguns, cumprimentados por outros, rapidamente aceitos. Caminhamos com eles por 4 quadras até chegarmos na Rua Helvétia, onde estava acontecendo o churrascão da cracolândia.

Lá, vimos muito do que se fala. Imediatamente veio a minha cabeça todo o imaginário que se tem do purgatório, junto com um cheiro nauseante de material plástico queimado. Pessoas absolutamente degradadas, algumas descontroladas, brigas e discussões entre os viciados acontecendo aqui e ali. Gente sangrando, com perfurações superficiais, gente consumindo a droga, flagrantemente, a poucos metros das viaturas policiais.

Vimos também segregação, dentro do próprio evento. Havia cavaletes e faixas separando a Rua Helvétia em duas, de um lado os dependentes, do outro as demais pessoas. Era possível transitar livremente entre as duas áreas, mas havia essa separação. Talvez ela servisse mais para controle, organização. Havia um receio natural de todos diante dos viciados, havia muita tensão no ar, de qualquer forma era desagradável encontrar uma separação ali. O bom é que foi um viciado que, educadamente, retirou alguns desses cavaletes, dizendo que ali não havia diferença entre viciados e as demais pessoas, que ali era todo mundo igual, simplesmente isso.

Vi viciados conterem outros usuários que ameaçavam agredir um rapaz com uma câmera amadora, dizendo que os cinegrafistas estavam ali para o bem deles, registrando o trabalho da polícia, pois eram dos direitos humanos.

Conversemos também com um travesti, outro que disse consumir crack há mais de 10 anos, que criticou a postura paternalista para com os viciados. Ele tinha consciência da situação em que vivia, não queria a piedade de ninguém, nem moralismo. Por falar em paternalismo, vimos gente pintando o rosto de alguns viciados, fazendo uma espécie de terceiro olho na testa deles, outros davam cartazes com frases políticas para que os viciados empunhassem. Na sua grande maioria, frases que foram pensadas por outras cabeças.

Falamos com jovens também, uns aparentando serem menores, outros, maiores, um disse fumar há mais de 5 anos. Todos diziam que depois que fôssemos embora a polícia ia chegar lá descendo a porrada. Um deles, mostrou o dente da frente, que estava mole, frouxo na boca, e disse “isso aqui, a polícia que me deu”.

O que fica dessa visita é esta experiência que só foi possível por ter conhecido o Luís e ido até lá.

O Luís nos fez romper o medo, o preconceito, sentar ao lado deles, dialogar, interagir, ouvir. Vimos usuários conscientes, críticos. Pela TV, acompanhando os noticiários, os grandes portais da internet, isso não seria possível.

O crack é uma droga relativamente nova, não sabemos ainda como conviver com ela e a postura de parte da imprensa e da sociedade, estigmatizando essas pessoas, que sempre são mostradas como animais, incapazes de falarem por si próprios, nas condições mais degradantes possíveis, não ajuda a entendermos o problema. Ajuda, isso sim, a convencer a opinião pública de que é preciso fazer uma “limpeza” na região, internando todo mundo, tanto faz onde e em quais condições.

É preciso dar voz a essas pessoas. Saber o que elas acham do tratamento que o estado oferece. Respeitá-las como seres humanos capazes de entender o problema em que vivem e de fazer as suas escolhas.

É preciso mostrar o usuário de crack por esta outra ótica à sociedade.

Não estamos aprendendo a vê-los como dependentes químicos, como um problema social, mas como marginais, animais, zumbis. O que desumaniza essas pessoas. E isso, a história mostra que é um erro gravíssimo.

Luis Nassif

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