A experiência da moeda social

Do Informação Incorrecta

A moeda social

 Michael Unterguggenberger

Adam Smith e Carl Marx, Capitalismo e Comunismo.

Já no passado houve quem tentasse, com sucesso, ir além desta dicotomia. Obviamente nada disso aparece nos sagrados textos académicos e ainda menos é partilhado nos meios de informação.

Mas existiram e é isso que interessa.

O protagonista da nossa história tem um nome assustador: Michael Unterguggenberger. Com um nome deste só podia ser alemão ou austríaco. E, de facto, era austríaco, do Tirol.

Após uma vida bastante desgraçada, Unterguggenberger (que agora vamos chamar Unter em nome da poupança) foi eleito Burgomestre (Presidente da Câmara) duma pequena cidade com 4.000 almas, Wörgl.

Era o Julho de 1932. Após uma vaga deflacionária geral, alegadamente provocada pelo colapso da Bolsa de New York três anos antes, a situação não era boa: o dinheiro era escasso, as empresas fechavam e havia muito desemprego. Wörgl já contava com 1.500 desempregados.

Para boa sorte, no topo da cidade havia Unter: este tinha lido Marx, Smith, mas sobretudo Die Natürliche Wirtschaftsordnung (A Nova Ordem Económica) de Silvio Gesell. Já Gesell, mercante e economista, mereceria bem outro aprofundamento, mas por enquanto é suficiente dizer que no Die Natürliche Wirtschaftsordnung pega em Marx, em Smith, e atira tudo pela janela, apontando o dedo para uma desordem estrutural incrivelmente não detectada durante 26 séculos.

Unter ficou retido pelas ideias de Geselle e decidiu torna-las realidade na pequena Wörgl.

Depois de uma abordagem cuidadosa e uma obra de convicção dos pequenos empresários, lojistas e profissionais, no dia 5 de Julho apresentou o seu programa para resolver as dificuldades económicas.

Unter explicou que a principal causa das dificuldades económicas é a baixa velocidade de circulação da moeda. Como meio de troca, a moeda desaparece gradualmente das mãos dos trabalhadores: filtrar para os lugares onde há interesses (juros), acabando por acumular-se nas mãos de poucos, os quais não estão interessados na compra de bens e serviços (isso é, na circulação da moeda). O objectivo final é a especulação.

Bestätigter Arbeitswerte
A Câmara de Wörgl, portanto, emitiu a sua própria moeda, baptizada Bestätigter Arbeitswerte (raio de idioma: significa Certificado de Trabalho), com um valor igual ao xelim oficial (utilizado no resto do País), mas com uma grande diferença: cada Certificado, de 1, 5 e 10 xelins, expirava após um mês a partir da data de emissão, a menos que não fosse renovado com um selo de valor igual a 1% do valor nominal (por exemplo: um Certificado de 5 xelins era renovado com um selo de 0.05 xelins), selos disponibilizados na Câmara. Esta, por sua vez, aceitava os certificados como forma de pagamento dos impostos.

Quem não quisesse gastar, podia manter o valor dos seus Certificados depositando-os no banco, com uma taxa de juros de 0%. Resultado: o que o banco desejava era fazer desaparecer quanto mais depressa possível os Certificados para não ter de pagar a taxa de armazenamento. E a forma mais prática para livrar-se dos Certificados era empresta-los a quem quisesse investir ou pagar salários e serviços.

Era possível trocar os Certificados para Xelins oficiais em qualquer momento. Portanto, não era uma moeda “alternativa”, mas “complementar”. Ninguém era obrigado a aceitá-la.

No total, a Câmara de Wörgl emitiu Certificados por uma valor de 32.000 Xelins, na prática foram utilizados menos de um quarto. A circulação alcançou uma média 5.300 Xelins, o que mal chega aos dois Xelins por pessoa. Todavia, os Certificados tiveram um impacto bem maior do que os 150 Xelins/pessoa emitidos pelo Banco Nacional.

Um Bestätigter ArbeitswerteComo Gesell havia previsto, a velocidade de circulação era o aspecto fundamental: mudando de mãos cerca de 500 vezes em 14 meses, em comparação com 8,6 vezes da moeda nacional, os Certificados de Wörgl provocaram uma movimentação de bens e serviços equivalente a dois milhões e meio de Xelins. A Câmara conseguiu construir uma ponte sobre o rio Inn, asfaltar quatro estradas, renovar a rede dos esgotos e as instalações eléctricas, até um trampolim para saltos de esqui foi inaugurado.

No resto do País a experiência de Wörgl foi observada com bastante suspeita, chegando a falar de fraude. Mas os factos eram inquestionáveis: os preços não aumentavam, a prosperidade crescia, os impostos eram pagos até antecipadamente tal como as despesas para obras e serviços públicos.

A conhecida estância de esqui de Kitzbühel, nas proximidades, começou a aceitar os Certificados de Wörgl e no dia 01 de Janeiro de 1933 emitiu próprios Certificados por uma valor de 3.000 Xelins. Aproximadamente 300.000 cidadãos da província estavam prestes à entrar na experiência bem sucedida.

Enquanto isso, Wörgl tinha-se tornado a meta das peregrinações dos macroeconomistas de todos os tipos. Queiram ver o “milagre” do local, que desafiava a pobreza e o desemprego global.

O Banco Central avança
Se este fosse um conto de fadas seria lícito esperar um final feliz. Mas este não é um conto, foi realidade. Então a história é diferente.

Apesar de Unter não ter utilizado o termo “moeda”, o Banco Central encarava os Certificados como de dinheiro se tratasse. E, apesar das negociações entre a cidade e o Banco, a interpretação foi que explicação a cidade de Wörgl tinha excedido as suas competências, uma vez que o direito de emitir moeda na Áustria era privilégio exclusivo do Banco Central, nos termos do art. 122 do seu Estatuto. E Wörgl tinha violado essa lei.

A proibição do Certificados entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 1933, no entanto, a cidade recorreu. Em 15 de Novembro, o caso chegou à Suprema Corte, a qual, como é óbvio, anulou o apelo pondo fim à experiência.

A história da Wörgl é conhecida em parte graças ao relatório de Fritz Schwartz, uma testemunha ocular que descreveu os detalhes num livro publicado em 1951.

Interessante também notar que três anos antes de Unter, um experiência similar (e igualmente bem-sucedida) tinha tido lugar em Schwanenberg, na Alemanha. Um tal Dr. Hebecker, proprietário de uma mina de carvão, estava prestes à fechar as portas da empresa, pois tinha carvão mas não dinheiro. Falou então com os funcionários e avançou a proposta de pagar 90% dos salários comuma própria moeda, chamada Wara, convertível em carvão.

O Wara tinha também uma taxa de armazenagem própria, que favorecia a rápida circulação, mas neste caso o Banco Central foi ainda mais célere e o chanceler Heinrich Brüning fez aprovar uma série de decretos-leis de emergência que proibiam a emissão de qualquer moeda além daquela oficial.

John Maynard Keynes, o pai da Modern Money Theory, tinha lido Gesell e chegou a menciona-lo na sua Teoria Geral:
O futuro vai aprender mais com o espírito de Gesell do que daquele de MarxAs razões do fracasso
Porque a experiência de Wörgl fracassou?

A resposta mais óbvia é que foi por culpa da oposição do Banco Central.
Esta foi a causa imediata, mas há outras que teriam decretado o fim dos Certificados (mas não da ideia!).

Outra razão para o fracasso era a taxa de armazenamento de 1% mensal, um total de 12% ao ano. Gesell tinha proposto um 5,2% anual, ou seja, um por mil por semana. Um imposto de “armazém” é essencial para que uma moeda deste tipo possa funcionar, pois obriga os banco a forçar a circulação do dinheiro (quanto mais tempo ficar nos cofres, mais imposto é pago). Todavia é preciso encontrar um ponto de equilíbrio: a circulação deve ser favorecida mas os bancos não podem mergulhar nos impostos.

Neste aspecto, Unter tinha exagerado. Os empresários de Wörgl tinham aceite a proposta simplesmente porque não existia alternativa, mas um tal valor condenava o Certificado à rejeição no médio e longo prazo.
A melhor prova deriva duma experiência nos Estados Unidos, onde o Professor Irving Fisher propôs um monstruoso imposto de 2% por semana, 104% por ano. A rejeição foi tão imediata e total.

O terceiro motivo do fracasso foi ter fixado o valor dos Certificados igual ao valor do Xelim oficial. Aqui o discurso é um pouco mais complexo. Para que uma moeda possa ter um poder de compra constante, é necessário que tenha também uma medida de valor constante. E os Certificados de Wörgl não tinham esta medida.
Os Certificados tinham valor apenas em relação ao Xelim oficial, mas careciam dum valor “real”. Por exemplo: os preços de determinados bens básicos representam um valor constante. Mas, como afirmado, os Certificados eram atrelados ao valor do Xelim, não tinham um valor próprio em relação a determinados bens.

O que significa isso? Significa uma coisa simples: uma moeda social, como eram os Certificados, com o tempo veria a moeda oficial gradualmente desvalorizar-se, perder valor; de forma gradual em tempos normais, de forma catastrófica em tempos de crise. O resultado seria um forte desequilíbrio entre a moeda utilizada como referência (o Xelim, no caso dos Certificados) e a nova moeda. A qual, lembramos, continuaria “atrelada” a moeda oficial, que todavia, já não representa o verdadeiro valor dos Certificados.

Última razão dum fracasso anunciado: os Certificados de Wörgl apareceram em 1932, apenas 4 anos antes da tomada de poder de Hitler. Em qualquer caso, teriam tido vida curta.

Ipse dixit.

Fontes:
Bernard Lietaer: The Future of Money. (Amazone-book
Margrit Kennedy: Inflation and Debt Free Money (Amazone-book)

Luis Nassif

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