A visão de um universitário negro sobre a questão das cotas

Do Amálgama

As cotas raciais vistas por um universitário negro

O sistema de cotas beneficia parte dos negros, os que possuem arcabouço educacional para alcançar uma universidade, mas não os reais necessitados, os pobres de diversas etnias.

Por Éder Souza, estudante de História na USP e professor de História e Geografia

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF), por decisão unânime, julgou constitucional o uso de cotas raciais nas universidades brasileiras. Antiga demanda do movimento negro e de outros setores da sociedade, as cotas são tidas como uma reparação contra a condição histórica do negro, que chegou nesta terra como escravo e em tal condição permaneceu até 13 de maio de 1888, com a abolição da escravidão consagrada na assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel. Mas a abolição não significou a libertação dos negros de todos os preconceitos. O negro continuou marginalizado, sendo negado a ele acesso aos melhores postos de trabalho, sendo vítima do preconceito velado que a sociedade reserva aos afrodescendentes – que, até hoje, possuem indicadores sociais inferiores aos brancos.

O raciocínio pró-cotas é o seguinte. Dada essa injustiça histórica, nada mais válido e justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o negro desde a escravidão, e uma necessidade urgente de que ela seja paga. O Estado deve ser o responsável para que se solucione estas distorções, e por isso a aplicação do sistema de cotas não é só justa, mas inevitável. Só pessoas racistas, preconceituosas e torpes não veriam justiça nas cotas. Como não dar razão ao ministro do STF, Joaquim Barbosa, quando ele diz que “basta ver o caráter marginal daqueles que se opõem ferozmente a essas políticas”?

Os movimentos pelas ações afirmativas, de maneira incisiva, repetem esses argumentos constantemente e em diversos fóruns, nas universidades, na mídia, etc., e quem discorda é tido como “racista”, contra a inclusão e a favor da opressão, como deixa transparecer uma reportagem da revista Carta Capital chamada “Reações às cotas subestimam o racismo”.

Esse tipo de pensamento unidirecional e simplista nos faz pensar sobre o perigo de uma única história, alertado pela escritora Chimamanda Adichie, que, em um discurso que postarei ao final do artigo, demonstra que quando contamos uma história criamos estereótipos e lugares comuns, o que faz com que um grupo social perca a sua heterogeneidade para se tornar um bloco único, o que abre espaço para a construção de uma “história oficial” contada de acordo com os interesses de certos grupos e para a perseguição aos divergentes.

Como explicado por Adichie, de onde se começa a contar uma história é fundamental para termos uma determinada percepção sobre os fatos. Os favoráveis às cotas argumentam que os negros são 51% da população, contra 49% de brancos, e que a desproporcionalidade da presença das duas etnias nas universidades é gritante. Esse argumento já traz uma falácia e adulteração tremenda. Primeiro, dados do IBGE mostram que a população se declara como sendo branca em sua maioria, 49%; em segundo lugar, pardos, 43%; seguidos dos negros, 7%. Outra questão ignorada pelos apologistas das cotas é que a ciência praticamente eliminou o conceito de raça, pois os genes de alguém de pele branca podem conter mais raízes africanas que os de um negro, e vice versa. Isso posto, o uso do critério “raça” para definir cotas perde a validade e é um retrocesso científico.

Alguns defendem que se deve ter em mente a dimensão social, pois as raças ainda têm aplicabilidade social. Porém, no Brasil, um país miscigenado, esse argumento deve ser relativizado. Obviamente, o preconceito e a discriminação existem por aqui; sabemos que, em certas ocasiões, postos de trabalho e lugares dentro da sociedade são negados a um sujeito devido à cor de sua pele. Mas esse fato não torna o Brasil um país racista em sua essência, pois aqui as etnias convivem de maneira razoavelmente próxima, com poucos conflitos de cunho racial, graças à miscigenação que constituiu o povo brasileiro desde a época colonial, o que não ocorre nos EUA (aliás, de onde a ideia das cotas foi copiada), onde cada etnia tem seu lugar, um branco é branco, um negro é negro, sem apelação, e cada um deve se adequar à cultura particular de seus grupos étnicos, formando guetos. As cotas instituem esse tipo de situação no Brasil, fazendo com que um país que não possui marcado em sua cultura esse racialismo radical, passe a desenvolvê-lo, na contramão do que a ciência tem desvendado, estimulando conflitos étnicos em vez de dirimi-los. E nos resta uma pergunta: quem define quem é negro e quem é branco? Quem arbitra? O Estado? Em breve voltarei a essa questão do arbítrio do Estado.

Outro argumento usado é que as cotas servem para a reparação histórica de um passado de escravidão e opressão vivido pelos negros. Só que há uma questão importante a ser lembrada: a escravidão acabou há 124 anos, e os atuais brancos dificilmente eram senhores de engenho, e muito provavelmente jamais tiveram escravos na vida. Por que teriam que pagar por uma situação ocorrida há mais de um século antes de nascerem? E os descendentes dos italianos que vieram para cá imigrados para trabalhar na lavoura, e dificilmente tiveram escravos? Terão que pagar também? E os descendentes dos alemães que vieram para o Sul e também não tiveram escravos em sua esmagadora maioria, terão que pagar? E os descendentes dos japoneses que chegaram aqui no começo do século XX e foram vítimas de um preconceito quase tão intenso quanto os negros, e, sem incentivo de ninguém, apenas com a própria força, através de educação e disciplina, conseguiram ascender socialmente, terão que pagar? Não faz sentido algum esse senso de justiça retroativa, punindo os homens do presente por atitudes dos homens do passado. Embora se possa argumentar com razão que os atos das gerações anteriores influíram diretamente nos destinos humanos, não é a política de cotas que consertará os reflexos negativos do passado no presente. Não se conserta discriminação com mais discriminação — o que são as cotas em ultima instância –, não se combate privilégio concedendo mais privilégios a determinados grupos, mesmo com argumentos suspeitos de “reparação histórica”.

O que os defensores das ações afirmativas nunca lembram em seus argumentos é que em nenhum local onde as cotas foram implementadas houve alcance dos resultados desejados, e em vez de diminuir os conflitos e as distorções étnicas, elas as ampliaram. Thomas Sowell, renomado economista norte-americano e insuspeito de ser racista (ele é negro), estudou a questão das cotas nos EUA, na Índia e na África. Sua obra Ação afirmativa pelo mundo: Um estudo empírico (2004) revela que as discrepâncias que as cotas queriam diminuir foram não só mantidas, mas ampliadas. Em todos os lugares em que implementou-se a política, houve um aumento significativo dos conflitos entre os grupos beneficiados e os não beneficiados, porque ela era percebida como doadora de privilégios a uma parcela da população em detrimento de outras, não como uma medida justa. Em vista de seu fracasso, na maioria dos lugares onde existiam, as cotas foram revogadas. Caso exemplar é dos EUA, onde a maior parte dos estados já eliminou as ações afirmativas, pois concluiu-se que eram ineficientes e catalisadoras de ódio entre grupos e classes.

Esses conflitos, para os ativistas pró-cotas, devem ser mediados pelo Estado, mas este tem se mostrado incompetente no papel de mediador de conflitos e árbitro para definir quem é negro ou não, quem é “digno” ou não de receber os benefícios. Prova clássica disso foi uma comissão da UnB, responsável por classificar quem é negro ou não, ter agido com critérios diferenciados no caso de irmãos gêmeos — um foi classificado como negro, portanto, contemplado com a cota, o outro como branco, portanto, não contemplado. Outro caso absurdo em que o governo desejava a igualdade racial e interveio para diminuir o preconceito foi o da feirante que vendia bonecas na orla da praia e cobrava mais caro pela boneca branca do que pela negra, sendo obrigada pelo Estado a igualar os preços, ou seria processada por racismo. A questão é: como deixar na mão do Estado critérios tão subjetivos quanto esses, que não têm como ser regulados por lei justa alguma, visto que, como vimos anteriormente, o conceito “raça” é ultrapassado e o Brasil é um país multiétnico? Dar tal poder ao Estado é ceder espaço a ainda mais injustiças, imprecisões e distorções do que as já causadas pelo sistema de cotas.

A real solução para o problema é uma só: melhoria do ensino de base (ensino fundamental e médio). Somente fornecendo educação básica de qualidade para a população como um todo será possível resolver a questão da exclusão social em que vivem não só os negros pobres, mas os brancos pobres também. O sistema de cotas raciais beneficia parte dos negros, os que possuem arcabouço educacional para alcançar uma universidade, mas não alcança os reais necessitados, os pobres, que são de diversas etnias. Fornecendo-se ensino de base de alto nível, os pobres ascendem, independente de sua origem, como aconteceu em diversos países que saíram da miséria para estar entre os mais ricos do mundo, caso da Coreia do Sul. O Brasil fica cada vez mais atrás no ensino básico, e de acordo com o ranking da UNESCO de 2011, estamos em 88º lugar, atrás até mesmo da Bolívia . A melhoria da educação nacional de base é o melhor caminho porque é impessoal, não beneficiará apenas negros ou brancos, ricos ou pobres, mas a todos indistintamente, sendo o método mais isonômico e mais condizente com uma sociedade democrática.

No entanto, a muitos grupos não interessam tais políticas, visto que são de longo prazo e não imediatistas, como as cotas, nem tão midiática e eleitoralmente interessantes para certas pessoas que pretendem se promover apoiando tais medidas.

Na universidade em que estudo, a USP, o mesmo pensamento linear que expus no início do texto vem sendo reproduzido pelo movimento afirmativo, que tem à frente o Núcleo de Consciência Negra e partidos de ultra-esquerda como PSTU, PSOL e, em menor grau, PCO, respaldados por um discurso de esquerda vulgar e binário, onde só há oprimidos e opressores, dominadores e dominados, os do topo e os da base. Se esquecem de que a realidade é muito mais complexa do que transparece em seus discursos apaixonados, porém sem consistência.

O mais interessante é que esses grupos, que dizem lutar pela democracia na universidade e pela livre circulação de ideias, são os primeiros a impedir que o livre fluxo de ideias surja na universidade, não querem que o pensamento divergente floresça, não querem que os contrários se manifestem, com o risco de serem perseguidos com rótulos de “racista”, “reacionário”, entre outros. Nem mesmo eu, que obviamente sou negro, escapo desta pecha. Por argumentar contra as cotas, alguns até me qualificaram como pertencente à “elite branca”(!), e frases do tipo “como pode ser negro e contra cotas?” são sempre repetidas, como se fosse obrigatório ao negro aderir ao pensamento racialista do movimento negro. Para esses grupos, a condição de negro é uma prisão intelectual, onde pode-se olhar o sol apenas pelo quadrado da cela fornecida pela ideologia, não podendo-se contemplá-lo de ângulos diversos. Por certo, para eles, isso deve ser privilégio da “elite branca”. Ou seja, um dos maiores cerceadores da liberdade do negro atualmente é exatamente quem quer nos defender da opressão e nos diz ter as chaves para a libertação: o movimento afirmativo. Afinal, como poderemos ousar contrariar quem tem a luz da verdade e da razão e a solução para os problemas da humanidade? Desconfie de quem possui um discurso messiânico salvacionista; geralmente são os mais autoritários e não aceitam ser contrariados. Chimamanda Adichie tem muito a ensinar a esses grupos sobre o perigo de se adotar apenas um panorama de visão da história.

Por outro lado, não se pode adotar a postura extrema oposta, a conservadora, que deseja manter as coisas como estão, e para realizar seus intentos nega o óbvio: a existência de preconceitos que limitam as possibilidades de ascensão social dos negros, algo que não deve existir em uma sociedade baseada na meritocracia. A questão é que nem o comportamento dos esquerdistas radicais nem o dos conservadores são desejáveis, pois ambos no fim contribuem para a manutenção e a ampliação dos preconceitos existentes na sociedade. A melhor solução possível é libertar o negro de suas amarras, não com ações afirmativas, mas deixando-o livre para exercer suas capacidades e liberdades como qualquer outro. Como disse Frederick Douglass no seu discurso What a black man wants: “O que precisamos fazer com o Negro? Não faça nada com o Negro. (…) Tudo que peço é que lhe dê a chance de se sustentar com suas próprias pernas (…). Se você somente desamarrar suas mãos e dá-lo uma chance, eu penso que ele sobreviverá.”

Se você, assim com eu, é contra as cotas raciais na Universidade de São Paulo, assine um abaixo-assinado contra essa medida absurda. E que possamos ter uma universidade meritocrática, que contemple a todos os cidadãos, independente de sua origem.

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O discurso de Chimamanda Adichie:

Luis Nassif

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