Dona Áurea, o papa, e o Santo Graal

Segue conto de minha autoria, inspirado na visita do papa, na foto que minha mãe tirou desse Amanita Muscaria em estância no Paraná, em minha vizinha de infância Dona Áurea, nas idéias de Terence McKeena sobre a importância cultural dos cogumelos, entre outros fatos reais embaralhados na ficção – cristã, ainda que “twisted”.

O Santo Graal

Dona Áurea era frequentemente confundida com uma freira. 

Era enfermeira aposentada; seu uniforme era único, desenhado exclusivamente para o cargo de chefe do voluntariado cristão do hospital em que atuava. Dona Áurea não recebia salário: bastava a honra de ter um cargo ínventado para que ela pudesse permanecer na instituição, bastava que mocinhas lhe pedissem a benção na rua, enquanto ela caminhava de volta para casa. 

Muito da confusão sobre ela ser uma “esposa do senhor” se dava por aquele respeitoso uniforme, bordado com um intrincado brasão que misturava símbolos católicos e médicos. 

Para ocupar o centro de sua modesta sala, restaurou uma antiga penteadeira e a transformou em um altar, onde rezava ajoelhada para a imagem de João Paulo II (que mui dignamente tomou o lugar do espelho). Em vez de maquiagens e perfumes, pequenas relíquias, como o terço feito de uma benta massa de pétalas de rosas, em um convento na Espanha.

Sempre foi solteira. Havia quem acreditasse que fosse virgem aos 79 anos de idade. Tudo indicava que fosse feliz. 

Era. 

Até que um dia o santo padre foi baleado em praça pública, em Roma. 

Foi como se ela própria houvesse levado os tiros; sorte sua estar no hospital, pois foi socorrida antes mesmo do que o próprio papa. Um acidente vascular cerebral pregou-lhe uma semana no leito da UTI. 

Recuperou-se, mas quando pôde finalmente retornar ao seu modesto apartamento, o mundo já não era o mesmo . Não conseguiu sequer ajoelhar-se no genuflexório improvisado na base da penteadeira. 

Não porque suas pernas não obedecessem: algo a repelia. 

Um medo infundado, sem palavras, sem razões. Um terror individual, que diferente do Santo Agostinho, não provinha de Deus – sua certeza de ter caído nas graças do altíssimo permanecia inabalada após o AVC. João Paulo II estava salvo, como não poderia deixar de ser. A ordem divina havia se reestabelecido, mas… 

Pediu ajuda. Desta vez, ao invés de orar na capela como habitualmente fazia, decidiu conversar com uma distinta conselheira da instituição (de quem não era íntima), uma psicóloga que pertencia à família que mais fazia doações ao hospital. 

O que está acontecendo? Porquê não consigo sequer olhar para a foto do meu polonês? A mulher não soube, ou preferiu não responder. 

Em mais um sinal de respeito pelas décadas trabalhadas e à reputação exemplar, a conselheira decidiu pagar do próprio bolso uma viagem para Dona Áurea: uma semana em uma estância na Lapa, interior do Paraná. 

Uma espécie de casa de repouso, talvez inspirada no sanatório de A Montanha Mágica, em Davos, na obra de Thomas Mann – um lugar para curar-se de doenças vagas, mas também para refletir. Em vez da neve suíça, havia brumas e araucárias. Grama, ordem e comida caseira.

Dona Áurea identificou-se com o ritmo respeitoso, silencioso e atento de todos no lugar; viu-se quando jovem nas estóicas cozinheiras, arrumadeiras e ajudantes – elas seriam valiosas enfermeiras, pensou. Mas por alguma razão, não conseguia expressar à elas, nem a ninguém, este seu suave diagnóstico vocacional. 

Ela, que sempre se orgulhara de sua habilidade em aproximar-se das pessoas, de fazê-las falar, de escutar suas histórias, estava muda. 

Apesar de ter recuperado parte de sua calma rotina, o silêncio interior a incomodava. A misteriosa tensão permanecia. E a felicidade definitivamente havia ido embora, ainda que sem dar lugar à tristeza – era algo mais como uma perplexidade constante.

Na terceira noite, já deitada na cama, com muito esforço ela concentrou-se o suficiente para orar. Só conseguiu pedir um sinal, um contato, como se lançasse uma garrafa ao mar. 

Dormiu e sonhou com um país que devia parecer com a Algeria antiga; algo mediterrâneo, mas sem o oceano. Em uma casa simples, envolta pela vegetação arbustiva, seca, uma senhora tentava escutar o que uma criança cantava, mas nenhuma delas paraceia entender. Áurea estava em pé, embaixo de uma figueira, e suas roupas pareciam inadequadas para o clima, para a cultura.

Acordou e foi caminhar. O dia estava claro mas o sol estava ainda baixo, atrás das árvores e da névoa. Estava frio e sua malha de lã tricotada não era suficiente para aquecê-la, nem com a camisa de manga longa por baixo. Mesmo dentro da meia calça, ela sentia seu corpo magro, solto. 

Humilde, ela apenas seguia em frente, aceitando aquele momento, aceitando o enigmático sonho, que pouco lhe revelava.

Notou que à beira do caminho de pinheiros, brotava uma grande quantidade de cogumelos. Não era uma visão típica da cidade grande e a cena, algo fabulesca, proporcionou-lhe um tímido mas espontâneo sorriso. 

Seguiu a linha de árvores e notou que os fungos acompanhavam a trilha; variavam em cores e tamanhos, amarelos, alaranjados, marrons e alguns vermelhos.  

Ela deteve-se ao avistar o que parecia ser uma taça esquecida no chão. Um resquício do sentimento de ir encontro à uma tarefa veio à tona, um sentimento familiar, que a movia pelos corredores do hospital. As meninas irão me agradecer se eu levá-la de volta à cozinha, chegou a pensar. 

Porém ao aproximar-se, percebeu que a taça era, na realidade, um cogumelo: seu chapéu superior, avermelhado, havia se dobrado para o alto, expondo as brancas lâminas da parte inferior, que repetiam-se como dobras de um tecido sedoso. A altura da haste era idêntica à de um cálice, como se fosse pensado para as mãos humanas. O copo natural que se formara estava cheio de água, de garoa ou orvalho. 

A natureza, a natureza! 

Ela sentiu novamente a inteligência superior a quem costumava atribuir a origem de todos os seres vivos, manifestando-se naquela forma exótica de brotamento, da qual jamais ouvira falar.

Arrepiou-se com a palavra que lhe ocorreu, com uma clareza e assertividade ímpares: 

Graal. 

Lembrou-se de sua oração noturna e desta vez, o choque fê-la sentar-se abruptamente no chão. Tremia. Temeu pelo segundo acidente vascular, mas afastou a idéia com as mãos, como se espantasse uma mosca. 

Jesus, senhor, Jesus, oh, meu Deus, Maria, José, Jesus. Deus, Deus, Deus.

Chorou ao constatar que havia tencionado pedir a Deus que a afastasse daquele cálice. 

Do choro passou ao riso, sentiu-se tocada como uma criança é tocada por seus pais. Uma onda de calor a aqueceu: o sentido, que a havia abandonado, fez-se presente novamente. A graça ausente, voltou com uma evidência indiscutível. Ela disse:

“Não afaste de mim este cálice, pai”. 

Sentiu aquilo como o maior de todos os seus atos de bravura; uma coragem gigantesca, uma ousadia sólida.

Em sua carreira de enfermeira, o medo havia dado lugar à clareza desde cedo. Mas o que ela sentiu depois de proferir esta sentença era diferente: era um poder humilde. Sequer lhe ocorreu ter cometido uma heresia, pois sentia-se naquele momento amparada por todos os santos. 

A lucidez, que fora sua marca distintiva enquanto profissional, agora dava lugar a um entendimento pré-racional. Ela emanou a sentença, sem premeditá-la.

A sensação de um poder que se extravasava não durou mais do que o tempo da frase; em seguida, a velhice veio de novo à tona, como uma lembrança incômoda ainda que necessária. 

O dia, as horas, as distâncias, a comida, a dimensão concreta voltou a seu devido lugar e Áurea agarrou-se a seu pragamatismo usual, o grande companheiro de sua vida sem amantes.

É hora de fazer o que é preciso fazer, disse, pensou. 

Ela segurou a taça com as mãos, notando a suave consistência do caule; a leve resistência do solo, quando ela levantou o cogumelo do chão, fê-la sorrir com a idéia de que também Eva sentiu o caule romper-se ao pegar a maçã – mas eu estou velha demais para ser tentada, não, não é disto que estamos tratando aqui. 

A água balançou e alguns grânulos se agitaram no líquido. Ela bebeu apenas um gole. 

Segurou a peça com as duas mãos e recostou-se na árvore mais próxima. Derramou o restante do líquido no chão, ao lado, com uma reverência interior, de quem não se sente observado. 

A música surgiu antes do sol. Como ela jamais havia tocado um instrumento, sabia que o compositor era outro, mas quem se importaria com nomes? 

Uma formiga subiu em sua perna esticada na grama, desceu, passou pela seguinte, desceu… e Áurea comungou com os insetos, sentiu a multidão de pequenos seres à sua volta, sentiu sua insignificância perante a vasta maioria de organismos que a circundava. 

Depois, observou mentalmente a legião de seres microscópicos que a habitavam. Era uma verdadeira festa! A velhice se relativizou e todos os fluxos internos lhe pareceram não somente normais, mas perfeitos. 

As ranhuras do cogumelo, que se abriram para soltar os esporos que continham, lhe fascinavam ora como as cortinas de pedras da caverna que visitara na juventude, ora como as esculturas de mármore que vira na Basílica de São Pedro, que superavam a mera imitação dos mais finos tecidos. 

O odor, com uma reminiscência de amônia, ao invés de enjoá-la, parecia favorecer que as narinas se abrissem à todos os outros perfumes. Ela procurou por uma rosa à sua volta, a Rosa Mística: viu-as, à uma enorme distância. Quis que o vento lhe trouxesse o aroma e ele a obedeceu, improvável. 

Mordeu primeiro a haste, onde havia notado que uma pequena lesma havia satisfeito também sua fome, expondo a carne impecávelmente branca e suculenta. O sabor era fantástico: não era agradável, mas sim amargo, no entanto, seu paladar parecia apreciá-lo como se pertencesse à outra pessoa, como se inconscientemente soubesse de algo mais importante do que o gosto, como se a certeza da necessidade de uma boa nutrição o guiasse para além das papilas gustativas (que Áurea sentia, uma a uma).

Então ela sentiu Jesus. 

Não o viu; era como se ele estivesse ocupadíssimo, atendendo uma fila interminável de pacientes, mas teria conseguido enviar um recado para ela: já chego na sua vez. Ela esperou em seu lugar. Ele veio e rapidamente seguiu seu caminho. Ela não conseguia se lembrar se o vira, se conversaram: somente tinha certeza de que ele tinha estado ali. Não sentiu-se especial, tampouco privilegiada – apenas atendida.

Ela deitou na grama e sonhou mais. Desta vez, voltou para sua escola pré-primária; andava pelas salas, sentava-se nas cadeiras, segurou no corrimão e sentiu sua textura ao subir a escada. Foi até a sala do piano, viu o círculo de almofadas amarelas e reparou que as janelas continuavam tão altas que ela não podia ver o lado de fora. Foi ao banheiro e reparou na trava de ferro, que ela tinha medo que não abrisse; funcionava normalmente.

Uma cozinheira a acordou. Dona Áurea! A senhora dormiu, mas que susto me deu, valha me Deus, eu a vi de longe e… e… aí quando vi que a senhora estava… bem, mas que alívio, acho que eu gastei um desejo com a senhora Dona Áurea, a senhora está bem? 

Estava. Voltou e não saiu mais da cozinha até o fim da semana. Conversou tudo o que tinha para conversar com todas as meninas, tentou mais de uma a sair da estância para se tornar enfermeira, contou a história de sua vida, ouviu tudo o que todas tinham a dizer. 

A dona da estância passou pelos fundos do refeitório e perguntou “Do que riem tanto estas meninas? Que escândalo!”

Está tudo bem, é só a Dona Áurea! As meninas estão apaixonadas por ela.

Fez exercícios. Comeu muito bem. Dormia tranquilamente.

Viveu ainda mais 20 anos, sempre trabalhando como voluntária no Hospital. João Paulo II também viveria por mais muito tempo, assim como ela. 

Parou de ajoelhar-se na sala. Sua piedade elevou-se a um outro estágio – fluia constantemente, natural, livre.

Hoje quando passei por seu busto no jardim da capela, perto da entrada de trás do ambulatório, notei que do pedestal de madeira maciça brotava uma colônia de pequenos cogumelinhos, branquíssimos.

Re: Fora de Pauta
Luis Nassif

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