Entre criacionismo e evolucionismo

Uma perspectiva mais ampla no debate entre criacionismo e evolucionismo

J. Carlos de Assis*

Muitos evolucionistas sinceros e razoavelmente informados não se dão conta de que a hipótese do aparecimento da vida por acaso está no mesmo nível ontológico da hipótese da criação da vida de forma intencional por um ente superior. Isso se constata sempre que uma variável arbitrária não explicada é introduzida nas equações da Física ou algum salto externo é introduzido na representação teórica evolucionista. É que há um problema fundamental de origem, nos dois casos, seja a origem do Universo, seja a origem da vida. Mas não é só isso.

Existem várias hipótese para a origem do Universo mas a que parece ter o maior consenso entre os físicos quânticos é traduzida como uma flutuação do vácuo. O que isso significa para além das fórmulas matemáticas? Sinceramente não sei, e suponho que ninguém saiba, mas pode-se imaginar um vácuo primordial que não era propriamente um vazio e sim um amálgama de energia positiva e negativa. A flutuação no vácuo significaria, nesse caso, o momento de ruptura do equilíbrio (por quem, pelo acaso, por um Criador?) entre a energia positiva e negativa, liberada no Big Bang.

Desde logo aviso que se trata de uma imagem poética, ou mesmo metafísica, porém coerente com a filosofia yoga que coloca na origem de tudo a vibração, a qual cria o tempo. A ruptura do equilíbrio resultaria na vibração cósmica de fundo. Entretanto, ontologicamente, flutuação do vácuo, vibração, Criador, todos se equivalem. O suporte matemático da primeira hipótese não lhe dá o status de científica porque não pode ser testada ou ser sujeita à refutação, já que não há como reproduzir as condições iniciais do Big Bang.

Mas esta não é a única limitação epistemológica da Física. Ela está repleta de constantes que são medidas, encontradas geralmente por intuição ou por aproximações sistemáticas, e que tornam precisas as equações mas que não são explicadas pelas teorias subjacentes. São mais de 40. É o caso da constante gravitacional de Newton, que entra arbitrariamente numa equação que descreve o movimento das grandes massas celestes, ou a constate de Planck, que se aplica aos fenômenos da termodinâmica, assim como uma miríade de constantes da Mecânica Quântica.

Contudo, a constante física de longe mais impressionante é a que mede a velocidade da luz no vácuo. Sem ela o Universo seria totalmente desordenado e impossível de se viver. A não ser que nos acostumássemos com um tipo de informação visual pelo qual veríamos um avião se distanciando antes de chegar. A presença de tantas constantes inexplicáveis é um embaraço para a física determinista, embora não totalmente para a física quântica. Esta está mais ou menos preparada para aporias, mesmo porque muitos quânticos, como Bohm ou Capra, se tornaram muito próximos do misticismo.

Digo isso para abalar as certezas de quantos acham que a Física resolveu todos os problemas do reconhecimento da realidade. No campo biológico é infinitamente mais complicado. Podemos definir matéria, mas não podemos definir vida de forma rigorosa. Quando um evolucionista tenta testar suas teorias sobre surgimento casual da vida ele, a rigor, não sabe exatamente o que está procurando. Por analogia, busca coisas parecidas com a vida no que supõe ser uma sopa primordial ou argila, e introduz uma hipótese arbitrária – um relâmpago, um raio cósmico – para fazer essa “coisa” físico-química adquirir a “coisa” chamada vida.

É claro que, na medida em que esse tipo de construção foi se revelando implausível, as hipóteses se sofisticaram. As ideias inicialmente formuladas de aparecimento do DNA e do RNA prontos, por acaso, foram descartadas. Depois, por implausibilidade, também foi descartada a hipótese do aparecimento da vida na forma de uma proteína acabada que adquirisse propriedades replicadoras – de novo, por interferência de um miraculoso raio cósmico. Recentemente, apareceu uma teoria mais elaborada (Dawkins) de construção especular de uma proteína, do simples para o complexo, por atração bioquímica de aminoácidos. Seus defensores se protegem da implausibilidade desse processo para formação de uma proteína biológica complexa dizendo que isso existe na natureza, não na forma biológica, mas na forma análoga à da biologia. Isso bastaria para demonstrar que o sistema funciona. Mas como? Por interferência de um raio cósmico?

A complexidade biológica não parece ser um problema para os evolucionistas. Seu deus é o tempo. O tempo resolveria todos os problemas, inclusive a seleção natural reversa (a absorção no nível dos nucleotídeos do DNA das características determinadas pelo ambiente no nível macrobiológico). A acreditar na hipótese evolucionista, o DNA criaria a tromba do elefante antes que o elefante com trompas existisse. Eu até me simpatizo com essa abordagem, porque suspeito que o processo evolutivo se desenvolveu do complexo (criado) para o simples. Mas os evolucionista acham que foi do simples para o complexo, num processo que, a meu ver, também exige a intervenção de uma inteligência externa.

O tempo dos evolucionistas, como disse, está no mesmo nível ontológico do Criador dos criacionistas. Mas minha vantagem, diz o evolucionista, é que eu vejo o efeito do tempo agora em Biologia e não vejo o do seu Criador. Como não? Tudo o que está criado originalmente e não comporta uma descrição logicamente sintética, determinista ou probabilística, é uma pista do Criador. Veja a luz: dependendo da posição do observador, ela é partícula (determinista) ou onda (probabilística), mas não há uma palavra ou conceito linguístico que a descreva sinteticamente. Você pode dizer: ela é onda-partícula, mas isso não quer dizer nada em termos da realidade que é a luz.

Note que não estou falando que a origem da vida não tem explicação, e portanto requer a intervenção de um deus. Isso fazia parte do argumento ontológico de Aristóteles e Tomás de Aquino. Um evolucionista simplesmente pode dizer que a evolução da Ciência trará uma explicação. Entretanto, estou falando em aporias quânticas que jamais terão explicação pois sua complexidade está além da lógica determinista ou da probabilidade. Podemos ter uma descrição analítica delas, como aliás faz a Ciência, mas elas rejeitam a explicação por uma proposição sintética.

Tome-se o exemplo canônico de um experimento quântico que embaraçou desde o início os físicos deterministas, inclusive Einstein: não há como medir simultaneamente a posição e o momento de uma partícula correlacionada. Não se trata de falta de precisão dos equipamentos; é um fato profundo da natureza, fisicamente insolúvel. Ou ainda: experimentos quânticos recentes que constaram transmissão de informação instantânea, portanto quebrando o limite da velocidade da luz. Isso, contudo, são evidências da verdade da Mecânica Quântica, não da verdade definitiva da natureza. Esta, aparentemente, está acima da lógica humana, porém não acima da lógica da Criação.

Embora muitas coisas da Física e da Biologia ainda possam ser descobertas, o que já se descobriu é suficiente para concluir que não há como descobrir ou explicar tudo. Portanto, vou abandonar, provisoriamente que seja, a hipótese do deus-tempo e adotar a do Criador natural intencional. Aqui as coisas ficam mais claras pois no conceito de Criação devemos necessariamente incluir o arranjo social que produziu o homem inteligente. Se há um Criador intencional, há um propósito na Criação. Se há um propósito na Criação humana, ele deve gerar uma ética que concilie o interesse individual com o interesse coletivo, pois do contrário a evolução “natural” destruiria ou o homem ou a sociedade. E, claro, essa ética interativa deve estar sujeita às leis da evolução seletiva casual (nas quais acredito, fora a origem da vida e a diversificação das espécies).

Propostas por Hegel no plano das ideias e por Marx no plano das relações sociais, as leis dialéticas estão presentes, a meu ver, em nível profundo, por trás de toda natureza. Da fantasmagórica flutuação do vácuo ao encontro do homem e da mulher, todo processo criativo reflete uma interação entre positivo e negativo, masculino e feminino. Contudo, essa interação não se manifesta de forma apenas determinista, mas também quântica (ou probabilística). Essa discussão é infinita, e alguns comentaristas estranharam, em algum de meus artigos anteriores, a introdução de temas ordinários, como política e economia, num debate sobre criacionismo e evolucionismo. Tentarei explicar, pois julgo isso fundamental na justificação da crença num Criador intencional. Vamos á política e à economia.

O ápice da civilização política ocidental, hoje quase universalizada, é a afirmação da liberdade individual a partir da Idade Moderna. Essa liberdade, na leitura de Kant por Bobbio, tem duas formas essenciais: a liberdade como não limite, e a liberdade (cidadã) de impor seus próprios limites. Uma gerou o liberalismo radical (atualmente, neoliberalismo); outra, a social democracia. Uma tem caráter determinista: Hobbes, o direito absoluto do soberano; outra, probabilística: Locke, o direito dos homens se auto-organizarem. Note que essas duas concepções, aparentemente antitéticas, são complementares: sem as duas atuando juntas não há liberdade de criação política. Em outras palavras, não há avanço da civilização.

Todo o desenvolvimento da economia moderna baseia-se na busca de criação e acumulação do valor. Entretanto, valor tem um sentido ambíguo. Na economia, é traduzido na forma monetária de preço; na moral, como algo bom, que não se traduz diretamente na forma monetária. Valor monetário é um conceito determinista: é apurado no mercado, pode ser dividido, multiplicado etc. Valor subjetivo é um conceito probabilístico, indivisível: é o valor do ar ou da água potável na fonte. A civilização, tal como a conhecemos, impulsionado pela busca contínua de valor objetivo mas condicionada também por valores subjetivos (o valor de uma crença, da educação ou de uma criação sem fim monetário) seria diferente, se não auto-destrutiva, sem a interação desses valores na política e na economia.

O que tem isso a ver com um Criador? Não seria tudo ao acaso? Sim, acredito que tudo poderia ser produto da pura evolução política ou econômica, como está registrado nos livros de história, exceto num ponto: a lei dialética em si que está por trás desses fenômenos. Ela implica um equilíbrio sutil entre o masculino e o feminino que contém, em si, um impulso à continuidade da criação, seja em nível individual, seja em nível de espécie. Isso é fantástico demais para ser puro produto do acaso, tendo em vista seu caráter volitivo implícito.

Obs. Desde quando começamos este debate, tenho lido atentamente comentários, alguns muito pertinentes, sobre o tema do criacionismo e evolucionismo. Entretanto, talvez pelo pouco espaço que um spot permita, noto uma certa tendência ao Fla x Flu, não ao debate em si. Como a maioria dos comentários é de evolucionistas, quero deixar claro que minha intenção não é convencê-los de meus pontos de vista. Pessoalmente, percorri todos os caminhos: fui seminarista, fui ateu, fui agnóstico (muito influenciado por Bertrand Russel) e hoje sou criacionista não religioso. No fundo, no fundo mesmo, apenas gosto de conversar com gente inteligente e, quando possível, tolerante!

Economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”.

Luis Nassif

4 Comentários

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  1. Evolução?

    Evolução das espécies e origem da vida não seriam coisas diferentes?

     

    A evolução das espécies é um fato (gostem ou não) amplamente embasado em milhões de evidências fósseis, variação geográfica das espécies e mais recentemente pela “genealogia genômica” se me permite o neologismo.

    A origem da vida que, apesar de ter hipóteses elegantes ainda é um mistério. Pode ser atribuído a seres superiores, geração expontânea ou até a extraterrestres….  Nesse ponto eu concordo com você.

    Só não concordo com a associação disso com a evolução.

  2. Evolução das espécies e origem da vida são, de facto assuntos diferentes, como referido no post anterior.

    E a evolução das espécies é um facto demonstrado por milhares, senão milhões, de evidências fósseis. E a evolução do homem está patente em muitas descobertas ao longo de todos estes anos.

    Para descrever a evolução precisaria de muitas páginas, mesmo só do homem. Certo é que o Homo sapiens surgiu na África há cerca de 350.000 anos, depois espalhou-se para o leste do Mediterrâneo em torno de 100.000 a 60.000 anos atrás, e pode ter chegado na China 80.000 anos atrás.

    E por fim surgiram há 50 mil anos atrás os homo sapiens sapiens, que, pelas suas habilidades altamente desenvolvidas, podiam dominar melhor a natureza e assim adaptá-la ao seu modo de vida. O homo sapiens sapiens é, na verdade, uma subespécie do homo sapiens. O significado do nome dado a essa subespécie é “homem que sabe o que sabe”, o que faz referência à principal característica desses seres: o pensamento.

    A origem da vida é de facto outra coisa.
    Importa sublinhar, neste particular, que se hoje a ciência ainda não tem uma resposta cabal sobre a origem da vida, bem como sobre a origem do universo, isso não significa que ela não tenha qualquer resposta para o problema. Houve e continua a haver progressos decisivos no campo da compreensão da origem do universo e da vida, e sabe-se certamente mais hoje do que se sabia no tempo de Darwin e de Pasteur.
    Não podemos é, porque ainda desconhecemos uma coisa, … atribuí-la a uma inteligência superior ou a um desígnio inteligente. Isso faziam os nossos ancestrais que atribuíam o que não conheciam e não compreendiam (trovões, terramotos, actividades vulcânicas, etc) aos Deuses, fossem eles quais fossem.

    O facto simples é que os mitos de ontem, que os nossos ancestrais encaravam não como mitos, mas como verdades absolutas, colapsaram, e, embora não estejamos certos da impossibilidade de aproveitar alguma coisa do que deles resta, o que sobra é demasiado pouco para se poder constituir um corpo de crenças conscientemente organizado. Mas a verdade é que ainda hoje há muita gente que encara tais mitos como verdades absolutas. Assim, a grande maioria das populações parece estar bem-aventuradamente alheia a tudo isso.
    É nesta base que devemos abordar o problema da origem da vida e da evolução, assim como a origem do Universo, sabermos de que é feito, e, em especial, sabermos qual o nosso lugar nele. Não ter interesse por estes tópicos é revelar-se verdadeiramente ignorante.
    Até porque nós temos agora uma esperança muito real de obter respostas para eles por meios que teriam sido encarados como milagres mesmo em tempos tão recentes como a época de Shakespeare.

    Defender o criacionismo, e apelar para um Deus que tudo fez é um sinal de grande ignorância.

  3. Evolução das espécies e origem da vida são, de facto assuntos diferentes, como referido no post anterior.
    E a evolução das espécies é um facto demonstrado por milhares, senão milhões, de evidências fósseis. E a evolução do homem está patente em muitas descobertas ao longo de todos estes anos.
    Para descrever a evolução precisaria de muitas páginas, mesmo só do homem. Certo é que o Homo sapiens surgiu na África há cerca de 350.000 anos, depois espalhou-se para o leste do Mediterrâneo em torno de 100.000 a 60.000 anos atrás, e pode ter chegado na China 80.000 anos atrás.
    E por fim surgiram há 50 mil anos atrás os homo sapiens sapiens, que, pelas suas habilidades altamente desenvolvidas, podiam dominar melhor a natureza e assim adaptá-la ao seu modo de vida. O homo sapiens sapiens é, na verdade, uma subespécie do homo sapiens. O significado do nome dado a essa subespécie é “homem que sabe o que sabe”, o que faz referência à principal característica desses seres: o pensamento.
    A origem da vida é de facto outra coisa.
    Importa sublinhar, neste particular, que se hoje a ciência ainda não tem uma resposta cabal sobre a origem da vida, bem como sobre a origem do universo, isso não significa que ela não tenha qualquer resposta para o problema. Houve e continua a haver progressos decisivos no campo da compreensão da origem do universo e da vida, e sabe-se certamente mais hoje do que se sabia no tempo de Darwin e de Pasteur.
    Não podemos é, porque ainda desconhecemos uma coisa, … atribuí-la a uma inteligência superior ou a um desígnio inteligente. Isso faziam os nossos ancestrais que atribuíam o que não conheciam e não compreendiam (trovões, terramotos, actividades vulcânicas, etc) aos Deuses, fossem eles quais fossem.
    O facto simples é que os mitos de ontem, que os nossos ancestrais encaravam não como mitos, mas como verdades absolutas, colapsaram, e, embora não estejamos certos da impossibilidade de aproveitar alguma coisa do que deles resta, o que sobra é demasiado pouco para se poder constituir um corpo de crenças conscientemente organizado. Mas a verdade é que ainda hoje há muita gente que encara tais mitos como verdades absolutas. Assim, a grande maioria das populações parece estar bem-aventuradamente alheia a tudo isso.
    É nesta base que devemos abordar o problema da origem da vida e da evolução, assim como a origem do Universo, sabermos de que é feito, e, em especial, sabermos qual o nosso lugar nele. Não ter interesse por estes tópicos é revelar-se verdadeiramente ignorante.
    Até porque nós temos agora uma esperança muito real de obter respostas para eles por meios que teriam sido encarados como milagres mesmo em tempos tão recentes como a época de Shakespeare.
    Defender o criacionismo, e apelar para um Deus que tudo fez é um sinal de grande ignorância.

  4. As coisas são difíceis porque se criam dogmas de fé. Tanto Deus Infinito como o nada só podem fazer coisas, se alguém acreditar nisso. Deus Infinito se fizesse algo, teria que ser perfeito, acabado, estático etc., senão teria que ser algum deus em “evolução” com os próprios erros, como nós. E o nada fazendo coisas, é demais até para a inteligência de uma criança do jardim da infância.
    Quando a Vida, é só pensar na morte. O mesmo organismo é ‘vivo antes, e morto depois”, é evidente que a Vida não atributo da matéria, mas os dogmáticos evolucionistas juram “por Deus” que é!
    A discussão é dois surdos berrando sobre sexo de anjos, uma tremenda inutilidade.
    arioba

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