Novecento, de Bernardo Bertolucci

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

1900

 

Título original: Novecento
País: França, Itália, Alemanha Ocidental
Idioma: italiano
Duração: 320 min.
Technicolor
Direção: Bernardo Bertolucci
Produção: Alberto Grimaldi
Roteiro: Franco Arcalli, Bernardo Bertolucci, Giuseppe Bertolucci
Fotografia: Vittorio Storaro
Música: Ennio Morricone
Elenco: Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda, Francesca Bertini, Laura Betti, Werner Bruhns, Stefania Casini, Sterling Hayden, Anna Henkel, Ellen Schwiers, Alida Valli, Romolo Valli, Bianca Magliacca, Giacomo Rizzo, Pippo Campanini, Donald Sutherland
Nota: 9,2 (parâmetro/categoria: épico/?)

– Algumas considerações iniciais
Antes de começar a discorrer sobre esse filme, queria compartilhar com vocês um susto que levei. Se, como eu, acham que 1900 é um filme grande – mais do que grande, imenso – mais do que imenso, absurda e insuportavelmente interminável, vão entender o que eu estou falando. Li em um site aparentemente confiável (do jornal Estadão: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-epico-1900-de-bernardo-bertolucci-sai-em-dvd,412061,0.htm) que o filme foi concebido por Bertolucci com oito (eu disse oito) horas de duração, mas foi mutilado pelos produtores. Além disso, teria sido picotado mais uma vez pela censura brasileira, já que estávamos em ditadura militar (a obra é de 1976). 
Bom, passado esse susto inicial, quero primeiro apontar umas características gerais que percorrem os 320 minutos de filme e que contribuem para torná-lo uma obra-prima, para depois apontar um defeito grave que ele contém, e enfim encerrar minha (tentativa de) crítica com observações mais pontuais. Suponho que quem enfrentou um filme um pouco mais extenso que os demais não terá maiores problemas em uma crítica um pouco mais extensa que as demais!
1900 logo de início apresenta todas as características necessárias para ser o melhor filme do mundo: é dirigido por Bernardo Bertolucci (um Bertolucci amadurecido, que já realizara obras-primas como Antes da Revolução, O Conformista e O Último Tango em Paris), é protagonizado por Robert De Niro e Gérard Depardieu, a música é de Ennio Morricone (a divindade onipresente das trilhas sonoras); temos ainda a fotografia maravilhosa e incriticável de Vittorio Storato. E, principalmente, a promessa de uma temática monumental: a obra abrangeria meio século de História, e não nos referimos a qualquer século; trata-se da primeira metade do complexo e conturbado século XX, o que englobaria duas guerras mundiais e a ascensão tanto do fascismo quanto do movimento comunista.
Infelizmente não é o melhor filme do mundo, mas é uma obra-prima sem comparações no cinema. A promessa que ele nos apresenta de antemão foi cumprida: não de forma didática, sistemática, mas abrindo mão de um recurso que, quando bem utilizado, cria filmes maravilhosos: a abordagem de um macrocosmo histórico, social e político através do viés de um microcosmo, que contém, em si, todas as características desse macrocosmo. É um formato que consegue um envolvimento muito maior, abordando a História de um jeito muito menos distante: é como se ela tivesse presente em cada ação dos personagens, em cada cena que se segue, e nos olhos de cada um que assiste. O condensamento da História num microcosmo tem o dom único de mostrá-la como um agente realmente atuante, presente e onipresente, não como um conceito, uma idéia: é como se trocássemos o método pela experiência. É o que faz Michael Haneke em seu recente A Fita Branca; é o que fizera muito tempo atrás Bertolucci, falando de meio século da história de um país através da história de dois amigos, um patrão e um camponês, em algum lugar do ainda feudal sul da Itália.
Sob essa linda e palpável perspectiva Bertolucci, partindo da morte de Giuseppe Verdi, o que talvez para ele simbolize o início do século – ou pelo menos o início do século para a Itália –, consegue acompanhar o início do movimento comunista, a conscientização dos camponeses, os primeiros movimentos de greve, os grupos depois efetivamente organizados, as prisões; consegue acompanhar as raízes do fascismo, desde sua situação de submissão à classe dominante até a tomada do poder – e sua queda. Consegue acompanhar a História de seu país, e consegue a autoria de uma obra-prima.
E tudo isso a partir do formato único e maravilhoso do cinema europeu, que, sem as hipocrisias quer permeiam, por exemplo, o puritanismo do cinema norte-americano (aqui, claro, falando em termos absurdamente genéricos), impedem que uma representação da vida (o que além disso seria o cinema?) discorra com naturalidade – uma bobagem que potencializa em muito a distância entre a representação e o representado. O cinema europeu, em sua generalidade, tende a representar a vida de um modo muito mais natural e sincero, e isso é claramente perceptível em Bertolucci, e ainda mais em 1900. Podemos captar tudo isso em cenas como aquela que acompanha o abate de um porco para alimentação dos camponeses, mas o exemplo mais bem-acabado será sempre o tratamento dispensado à sexualidade – seja desde a explicitação sem constrangimentos de cenas de nudez e de sexo, seja até o próprio evidenciamento que se dá à sexualidade dos personagens – o que entra em forte contraste com a Hollywood à qual muitos se acostumaram, uma grande produtora de personagens assexuados.

– Maniqueísmo
De fato trata-se de um ótimo filme, porém apesar de tudo apresenta um problema sério, e esse problema, claro, é o maniqueísmo. Um enfático maniqueísmo referente a uma dicotomia muito rígida que antagoniza não somente patrões e empregados (embora haja essa dicotomia também), mas principalmente (em termos da força que ela assume), comunistas e fascistas. Oras, o capataz interpretado por Donald Sutherland é o demônio. E amante dele, Regina (interpretada por Laura Betti), que é prima de Alfredo, fica atrás apenas por uma distância de representatividade (em termos de “mau”, ele é o protagonista e ela a coadjuvante). Basta que eles surjam em cena para que se crie instantaneamente uma atmosfera absoluta de mal-estar, com direito a uma trilha sonora funesta. Contudo, claro, seria até compreensível se o maniqueísmo que endemoniza os fascistas fosse referente apenas aos aspectos estéticos. Mas não é. De um modo muito simbólico, acompanhamos o capataz Attila, representante máximo do fascismo no filme, assassinando psicoticamente (trazendo-nos inclusive uma cena que beira o trash) os que talvez sejam três dos maiores símbolos de pureza, ingenuidade e bondade que temos: um gatinho fofo, uma criança (que ele estupra antes de matar) e uma senhora viúva. É claro que essas três figuras não são casuais. Também é claro que não possuem qualquer embargo político: é um impacto muito diferente do que proporciona ver fascistas matando comunistas ou quaisquer opositores ou dissidentes do governo de Mussolini. É um impacto que afeta muito mais aquela emoção que é condicionada por nossa moral, é, em outras palavras, um impacto apelativo, e com poucas (nenhumas) relações com o contexto sócio-político. Concebido exclusivamente para que odiemos o personagem-símbolo do fascismo. O que (claro!) consegue com muito êxito: é impossível não se regojizar quando Attila é perfurado pelas enxadas dos camponeses furiosos (cena que se projeta duas vezes durante o filme).
Existe também a dialética entre patrões e camponeses, mas essa já se apresenta mais bem-enquadrada ao contexto histórico que o filme representa e, mesmo que não encontremos também aqui imparcialidade, obviamente não se trata isso de um defeito, pois se é difícil exigir imparcialidade de uma aula de história é estúpido que se o exija de uma obra de arte. E mesmo que o eixo principal do filme nos apresente os camponeses como heróis imaculados, alguns pequenos cuidados são tomados: o momento em que é perguntado a Olmo (Gérard Depardieu) o significado da frase “o comunismo é a juventude do mundo” seria perfeito para que o protagonista do movimento camponês discorresse (sob muita pompa estética) um eloquente discurso marxista; mas trata-se de um camponês, um personagem sem instrução, cujo impulso revolucionário vem da experiência e da vontade, não de um saber intelectual, e o que acontece é que ele fica sem resposta. Além disso, não temos aqui o herói perfeito e ideal: por exemplo, por várias vezes Alfredo lhe indaga “você roubou a pistola de meu pai. Por que não a usa?”, e ele não somente não a usa, mas é o primeiro camponês que, ao final do filme, cede à ordem de desarmamento. Alfredo, por sua vez, interpretado por Robert De Niro, leva a vida vazia de sua herança aristocrática, mas mantém desde sua infância uma personalidade ambígua (eu ia dizer multifacetada, mas acho que no ambiente bipolarizado que se criou nesse contexto histórico isso seria exagero). Quando criança, Alfredo em um momento se diz dono não apenas dos bichos-de-seda de Olmo, mas do próprio Olmo; em outro momento se diz socialista (socialista dos bolsos rasgados, como eles falavam). Quando adulto, já impregnado pela lógica que taxava os comunistas de subversivos e os culpava por qualquer tragédia que acontecesse, presencia por muitos minutos os Camisas-Negras espancando Olmo (sob a acusação de que teria assassinado a criança que na verdade foi Attila que matou), e, mesmo sabendo que Olmo não fora o culpado, pois passara a tarde com Ada (Dominique Sanda), não os ordena que parem. Porém, após anos e mais anos convivendo com a incapacidade de demitir Atilla de seu cargo de capataz, imediatamente o faz assim que o flagra invadindo a casa de Olmo (que estava fugido). E temos também o avô de Alfredo, também Alfredo, interpretado por Burt Lancaster (personagem que lembra muito o aristocrata decadente que Lancaster interpreta em O Leopardo, de Luchino Viconti), que é permeado de incertezas e frustrações, mas que é sobretudo carismático. Que acaba se suicidando, meio que levando consigo os resquícios de dignidade de sua linhagem.
Claro que temos o pai de Alfredo como encarnação da aristocracia perversa. É o tipo de gente que manipula o testamento do pai para adquirir pra si a herança inteira, que substitui os empregados por máquinas e os quer obrigar a trabalhar mais por menos em prol da recuperação das plantações perdidas pela tempestade. Mas tudo isso soa muito mais realista e legítimo quando comparado ao fascista que tem prazer em exterminar gatinhos, crianças e viúvas.

Não obstante tudo o que foi apontado neste tópico, é importante considerar que a Itália viveu o fascismo na pele; poderíamos de certa forma apontar aqui uma espécie de “trauma” coletivo, do qual seria muito exigir que Bertolucci, italiano fruto de suas condições materiais, escapasse. Em outras palavras, o maniqueísmo é um erro grave, mas podemos decerto dar algum desconto.

– Quase dois filmes
Esse viés comunista que o filme aparentemente assume manifesta-se de modo particularmente intenso e claro na primeira parte – essa sim, um verdadeiro “épico”, segundo as categorias mais elementares do termo: um enredo simples, personagens “tipos”, a heróica luta entre o bem e mau, a estética do espetáculo (o que rende cenas lindas e emocionantes como a em que os camponeses deitam-se na frente dos cavalos das autoridades para impedi-los de passarem).
De fato, se o filme se limitasse à primeira parte (ou se encontrássemos na segunda parte o mesmo formato da primeira), eu o descreveria em poucas linhas como o melhor épico que já assisti, o que – eu acrescentaria – não significa algo tão maravilhoso assim, já que a categoria épico encerra em si limitações muito profundas. É claro que eu me delicio muito mais assistindo o embate entre o movimento camponês do Sul da Itália contra a aristocracia feudal na primeira metade do século XX do que ser obrigado a me posicionar do lado dos sulistas escravocratas na Guerra Civil norte-americana e testemunhar o romance novelesco de protagonistas rasos (estou me referindo, claro, a “…E o vento levou”, um épico por excelência). Mas mesmo assim, o simples fato de ser um épico já impõe problemas muito sérios, como a redução de personagens a caricaturas.
Mas 1900 não se limita a sua primeira parte, e não se limita à categoria de épico. A segunda parte se encarrega de aprofundar psicologicamente os personagens, tornar bem mais complexa a temática trabalhada e, principalmente, tornar o filme menos linear e mais confuso. E tudo isso sem abandonar de jeito nenhum a abordagem política e histórica – ao contrário, a construção dos personagens evidencia eficientemente o quão eles são determinados pelas condições materiais de seu tempo (isso fica bem nítido, por exemplo, quando as dificuldades no casamento de Alfredo e Ada e a atração desta por Olmo demonstram ter forte fundamento na bipolaridade político-ideológica do momento). É como se a psicologia e a História se fundissem para construir os personagens e as relações entre eles – o que provavelmente corresponderá à mais realista reprodução da realidade.
Antes de mais nada, a segunda parte é muito mais Bertolucci, e quando digo isso me refiro não apenas a tudo isso mas também à estética. Deixando-nos a impressão de que toda a primeira parte, com suas três horas de duração e todos os seus momentos maravilhosos – o “melhor épico que já assisti” – é simplesmente uma preparação para a segunda parte, que não é um épico, mas algo sem definição.
É certo que boa parte das aberrações mencionadas encontram-se na segunda parte (é nela que morrem a criança e a viúva). É certo também que a primeira parte conta com trechos psicologicamente trabalhados – o personagem de Burt Lancaster resolve-se definitivamente pelo suicídio ao tentar seduzir (ou estuprar) uma jovem camponesa e perceber-se sexualmente impotente (o que sob uma leitura psicanalítica estaria intimamente relacionado à decadência que o cerca e que o atormenta).
Entanto é na segunda parte que essa abordagem mais aprofundada surge não em pontos específicos, mas no próprio eixo de condução do filme. O que torna-se mais explícito seja nos momentos com a prostituta epilética, seja na relação entre Ada (então já esposa de Alfredo) com Olmo, que reprimem uma tendência inconsciente de recíproca aproximação e desejo, seja na expressão dos ciúmes de Alfredo, ou seja em outros momentos. 
Mas como aliar psicologia e política, e deixar as coisas claras? O pressuposto é que filme político só funciona com personagens “tipos”, superficiais, caricatos. E de fato, o único diretor que eu conheço, a princípio, que aborda esses dois aspectos da vida humana simultaneamente em seus filmes é o Bertolucci – e certamente é isso que o torna tão difícil para mim. Sim, ouso reconhecer que estou aqui escrevendo sobre um diretor com o qual enfrento dificuldade, e de jeito algum se trata essa de uma crítica acabada, mas antes de um exercício árduo de compreensão. Bertolucci é difícil – e nem o mais entendido vai poder dizer que ele não o é! – porque política pressupõe uma direção, enquanto profundidade psicológica pressupõe uma névoa difusa. Isso se torna muito claro quando se pensa em termos de roteiro: os filmes intimistas encaminham-se para as direções mais variadas possíveis, enquanto filmes políticos tendem a ser mais previsíveis – filmes históricos, por motivos óbvios, tendem a uma previsibilidade ainda maior.
Se 1900 seguisse a linha da primeira parte, seria mais do que óbvio, pelo menos na minha cabeça, que Alfredo, o personagem de Robert De Niro, terminasse transmutado em um aristocrata perverso, e que ele e Olmo se enfrentassem (não necessariamente fisicamente) em uma dialética absurdamente classista e determinista. Ou, na melhor das hipóteses, o Alfredo mudasse de lado, abdicasse de suas pompas e se inserisse na luta ao lado dos camponeses. Só era possível a esse personagem um dos extremos, eram apenas essas as posições e mais nenhuma, mas não foi nenhuma delas que aconteceu; os dois protagonistas permaneceram simultaneamente amigos e inimigos durante absolutamente todo o decorrer do filme.

– Bertolucci e sua política: a cena final
E o que aconteceu não foi nada menos do que o seguinte: sem sequer passar-lhe pela cabeça essa idéia maluca de legitimar a luta de classes (e, o que seria ainda mais raso, fixar-se a um lado mesmo depois que a História tornasse esse lado um absurdo existencial), o que Bertolucci fez foi SATIRIZAR a luta de classes, do jeito mais debochado, cômico e, principalmente, cruel que poderia fazê-lo. E é por isso que direi aqui que a genialidade do filme reside na cena final. Porque é nela que ele quebra toda a esperança de libertação que ele segura entre os dedos por horas e horas de filme para, de uma só vez, numa tacada fria e profundamente sóbria, mostrar-se desiludido e vazio de expectativas.
1900 não é um filme pontual, pois trata de meio século de história. Alguns críticos disseram que isso faz com que ele perca o foco, mas não é assim que vejo. Para que se entenda o que estou a dizer, resumirei com o seguinte: durante todo o período histórico em que o movimento comunista mostrou-se a verdadeira esperança para a libertação das classes baixas do julgo da exploração, o filme se apresentou assumidamente comunista e esperançoso. No momento em que esse movimento se apresentou nitidamente frustrado – oras, eles tinham ganhado, eles derrubaram os fascistas, eles venceram, estavam todos festejando animados e felizes, mas eis que o Comitê Nacional de Libertação, sim, aquele que os representava no novo governo (ao mesmo tempo a eles, aos liberais, e a gente de todo o tipo) ordenou-lhes que entregassem todas as armas!, e de prontidão o próprio Olmo concordou em entregá-las, lançando mão de um discurso que legitimasse isso – oras, nesse momento também o próprio filme se apresenta frustrado. E é uma frustração amarga, pois ela não traz nem em seu mais remoto ser um resquício de esperança. E o que nos resta é rir – rir muito – dos dois velhos amigos estupidamente brigando para sempre.
Se a luta de classes é eterna, talvez a pergunta que me faço a cada filme do Bertolucci – qual é, de uma vez por todas, sua posição política? – seja, de fato, irrelevante. Melhor talvez o explicaria Kafka: “Há esperanças; só não para nós”.


– 1900 ganhou o Prêmio Bodil de Melhor Filme Europeu (1976)

 
Luis Nassif

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