O abandono do Engenho Boa Vista, em Paraty

Por Frederico Füllgraf

O abandono do Engenho Boa Vista, em Paraty

Pérola da história brasileira, mas também da Literatura Universal, virtualmente desconhecida da maioria dos brasileiros, é a referência à casa de infância, em Paraty, de Julia Bruhns da Silva, mãe dos escritores alemães, Heinrich e Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, em 1929, pela saga familiar “Buddenbrooks”).

Mais conhecida na região de Paraty como Engenho Boa Vista, sua velha Casa Grande, erguida no séc. 18 e há algumas décadas cercada de marinas luxuosas, encontra-se em calamitoso estado de conservação (telhado invadido pelo mato, paredes agredidas por mofo, madeirame de sustentação apodrecido, cipós, a jubilosa jungla, enfim, infiltrando-se pelas frestas) e ameaçada de demolição.

A crônica do descaso anunciado é antiga, dado que a propriedade mudou de donos muitas vezes no decorrer das últimas décadas, envolvendo os mais desencontrados interesses, mas voltou a ser alardeada com uma corajosa reportagem de Raquel Cozer, do Estadão, durante a realização da FLIP-Feira de Literatura de Paraty de 2011.

Os Mann com um pé no Brasil

Julia da Silva Bruhns (1851-1923) era filha do imigrante e fazendeiro alemão, Johann Ludwig Herrman Bruhns – natural da cidade portuária de Lübeck e dono de plantações de açúcar, ao longo do que hoje é a Rio-Santos – e da brasileira, Maria Luisa da Silva, filha de um português e uma índia.

O casal Bruhns-da Silva mudou várias vezes de domicílio e Julia nascera durante uma mudança de Angra dos Reis para Paraty. Cinco anos após o nascimento de Julia, Johann Ludwig Bruhns, apodado de “seu Luís” pelos nativos da região, perdeu a esposa em um momento em que a pequena Julia não falava ainda uma palavra sequer em alemão. Isto foi em 1856 e, um ano depois, Bruhns, viúvo e ocupado com seus negócios, decidiu que seria prudente enviar os cinco filhos que tivera com Maria Luisa, para a Alemanha. Instalados os filhos, Bruhns regressou ao Brasil. Até aos catorze anos, Julia da Silva Bruhns viveria num pensionato para moças.

O “exílio” da borboleta sedutora, que tanto desestabiliza quanto redime…”

Assim começa a saga dos Mann em Lübeck, onde há mais de dez anos decidiu fixar-se com seu ateliê, outro Prêmio Nobel da Literatura, o escritor Günter Grass (O Linguado). Aos dezessete anos, Julia casou-se em Lübeck com Thomas Johann Heinrich Mann (1840-1891), comerciante rico e Senador da cidade nórdica e personagem inspirador dos “Buddenbrooks”. Ventre fecundo, Julia também deu à luz cinco filhos: Heinrich, Thomas, Elisabeth Terese, Augusta e Viktor Mann.

Em 1891, o Senador Mann faleceu e Julia estava viúva aos quarenta anos de idade. Do norte ventisqueiro, mudou-se para Munique com os cinco filhos.

Referida sempre como uma “moça do sul”, em alusão ao seu sangue cinquenta por cento latino e indígena, mas também como narradora de crônicas nativas de Paraty e seus arredores (Aus Dodos Kinderheit – Da infância de Dodô, publicado apenas em 1958 e ainda inédito em português) que os filhos ouviam, estupefatos, Julia foi sem dúvida musa inspiradora das obras de Heinrich e Thomas: a personagem Gerda Arnoldsen em Buddenbrocks, a Senadora Rodde em Doutor Fausto, a Mãe Consuelo, em Tônio Kröger e, finalmente, a mãe de Gustav von Aschenbach, principal protagonista de Morte em Veneza; todos de autoria de Thomas Mann.

Já Heinrich Mann, também autor do célebre romance, Professor Unrat (1904) – crônica ácida da hipócrita moral burguesa, da qual é personagem o mentor da bailarina em O Anjo Azul (1930), adaptada para o cinema por Josef Von Sternberg e protagonizada por Marlene Dietrich e suas belas pernas -, contava que sua mãe nascera no meio do mato e que sua avó materna não sobrevivera seu sexto parto. Em Entre Raças– onde raça é referência a fenótipo, sem qualquer conotação chauvinista –  o enredo de Heinrich Mann se confunde largamente com a história da mãe, sob o pseudônimo Lola.

Correm rumores na Literatura, segundo os quais Julia fora “expulsa do paraíso” (a Mata Atlântica entre Angra dos Reis e Paraty) e que amargara um “exílio” soturno naquelas paragens nórdicas de Lübeck, onde “não era bem vista, devido ao seu riso e seus olhos, brilhantes demais para uma protestante. O riso era muito brasileiro, cascateante, considerado de mau gosto, exagerado, beirando o escandaloso”, advertiu o escritor João Silvério Trevisan, apaixonado pela saga dos Mann, e autor de Ana em Veneza – romance sobre as conversas fictícias ocorridas no verão de 1890, entre Julia Mann (“a borboleta sedutora, que tanto desestabiliza quanto redime”), a escrava negra, Ana, antiga ama de Julia, e o compositor brasileiro, Alberto Nepomuceno.

Antes de deixar a direção do Instituto Goethe de São Paulo, Dieter Strauss coordenou a publicação de JULIA MANN – Uma vida entre duas culturas (Estação Liberdade, 1997), uma belíssima coletânea de ensaios, entre os que se destaca o de Antonio Skármeta, escritor chileno exilado na Alemanha durante a ditadura Pinochet e autor do célebre O Carteiro e o Poeta.

Julia da Silva Bruhns-Mann faleceu em 1923, num quarto de hotel, sob a vigilância de três de seus filhos.

“Casa Julia Mann-editora mare

Espécie de, não sei se lampejo, há poucas semanas escrevi um e-mail a Nikolaus Gelpke, meu Editor Sênior e proprietário da Editora Mare, de Hamburgo, sugerindo-lhe uma matéria sobre o casarão abandonado em Paraty, porque de uma ou outra maneira, os textos da revista (www.mare.de) sempre se pautam em temas marítimos, e a Mare é a única editora do mundo com uma coletânea de “romances oceânicos”.

Mas o mundo é mesmo muito pequeno: no mesmo dia, Gelpke respondeu-me eufórico, informando o que eu não sabia: que ele era um dos criadores do Prêmio Literário Elisabeth Mann-Borgese, filha mais nova de Thomas Mann e irmã de Klaus Mann (Mefisto), célebre oceanógrafa e fundadora do Clube de Roma, e que além disso Frido Mann, neto de Thomas, lançaria seu mais recente romancede inevitável apelo oceânico (pela Editora Mare, bem entendido!), Mein Nidden: Auf der Kurischen Nehrung, cujo tema é aPenínsula da Curônia (Curonia spit), faixa de terra com 98 km de extensão, localizada entre Klaipéda (Lituânia) e Lesnoje (Rússia), onde, se não me engano, os Mann tinham uma casa de veraneio antes da Segunda Guerra Mundial.

E Gelpke me disse, “vamos comprar esse lugar, porque há tempos sonho com um casarão à beira-mar, para hospedar escritores-bolsistas de forma digna para escreverem seus romances!”

E desde então estamos por assim dizer na batalha, à qual voltou a somar-se o próprio Frido Mann, que em 1997 viera ao Brasil especialmente para conhecer o berço de sua bisavó brasileira, dando iniciativa a um projeto de sediar um centro cultural, que passou a chamar-se Associação Casa Mann.

O imbróglio

A associação chegou a realizar um único evento e oito anos depois

Frido Mann afastou-se, resignado, porque a situação legal do Engenho Boa Vista era para lá de complicada.

Eis um resumo do imbróglio: durante a década de 1990, a área pertencia à Serrana Empreendimentos. Em 2001, um grupo suíço adquiriu a Serrana junto com a empresa Arbeit, incorporadora de São Paulo. O casarão português do séc. XVIII veio de brinde, mas os compradores torceram o nariz quando viram. Antes que a Arbeit chegasse, o velejador Amyr Klink, que ao lado do casarão mantinha a Marina do Engenho, era comodatário do terreno e tinha planos para o local. Klink pretendia instalar ali uma escola de navegação para jovens carentes, mas impasses com o Ibama e o Iphan impediram a implantação do projeto, que acabou sendo transferido para Santa Catarina.

Em 2008, Johannes Kretschmer, professor de literatura na UFF e da UERJ, retomaria a ideia do centro cultural de Frido Mann. A iniciativa produziu um colóquio com a participação da Secretaria de Estado da Cultura do Rio de Janeiro e do Consulado Geral da Alemanha no Brasil, e sua conclusão foi de que “a questão legal é muito obscura”. Com a retirada dos investidores suíços, em 2008 a Arbeit tornou-se a dona exclusiva do Engenho Boa Vista, mas as alternativas para a ocupação aventadas por Oscar Muller batem de frente com o projeto idealizado por Frido Mann. Muller argumenta que “a implantação de um centro cultural no casarão não se sustenta”, por isso pensa quer instalar uma marina de “padrão internacional”. Até hoje Muller não explicou por que um centro cultural ali não se sustentaria.

Escrevi três mensagens educadas ao sr. Oscar Muller, mas ele nunca me respondeu, e circulam rumores de que sua empresa falira e que a casa de Julia Mann iria a leilão.

Klink irritou-se com Frido Mann: “Não gostei da forma como ele chegava, com jornalistas, dizendo que ia fazer e acontecer”. Já Muller irritou-se com Klink, a quem responsabiliza pelo mau estado da conservação, advertindo que “por contrato. ele deveria manter o casarão com suas características originais.” Klink replica, argumentando que quesitos contratuais e exigências de órgãos ambientais impediram os restauros, orçados em R$ 1,8 milhão, no mínimo. Mas Klink tem toda a razão: restauro não basta, muito menos em cima de vigas podres – primeiro, o imóvel todo precisa ser consertado.

Consertar, restaurar e ali instalar uma residência para escritores do mundo todo – este é o sonho de Nikolaus Gelpke. Em princípio, dinheiro não seria o problema. O jogo começou, o desafio está feito, agora é a vez de Oscar Muller, da Arbeit, de mostrar suas cartas.

Mas eu intuo que só as mostrará, ou com muito dinheiro à vista (o que seria um abuso), ou com idêntica pressão pública. É na última que aposto – daí a razão desse texto.

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador