Procura-se um historiador para a MPB na era digital

Aproveito os dias em Poços para conviver um pouco com a nova geração musical da cidade. Minha sobrinha Tetê trouxe alguns músicos para uma rodada. Rapaziada ótima, comprovando que, a exemplo do Brasil, a música instrumental está explodindo em todos os pontos do território.

Um deles estuda na Unicamp, é violonista e aluno do grande Ulisses Rocha. Pergunto se existe a cadeira de história no curso. Sim, e os livros recomendados são de Luiz Tatit e um outro “Bim Bom”, de suposta análise técnica da bossa nova por um ex-aluno de Tati.

Aí me dou conta da falta que está fazendo um moderno historiador da música brasileira.

José Ramos Tinhorão, ainda em atividade, é ponto fora da curva. Seus estudos entraram para a história da música brasileira, mas abordando as raízes. Da bossa nova para cá não contribuiu muito, a não ser com sua implicância com Tom Jobim.

Há inúmeros pesquisadores de fôlego, levantando dados relevantes, mas setorizados. Sérgio Cabral levantou dados do samba, Henrique Cases, do choro, Rui Castro da bossa nova (belíssimo trabalho de reportagem e um equívoco em termos de análise), Fábio Zanon, do violão.

Mas falta “O” historiador, o sujeito que case conhecimento musical, histórico, sociológico e que faça a síntese dessas diversas escolas.

O modelo máximo de crítico-historiador para mim não vem da academia. É Fábio Zanon, cujos programas radiofônicos sobre a história do violão não são apenas o mais importante levantamento do violão brasileiro, mas a obra máxima da historiografia musical brasileira, mais amplo que os trabalhos de Vasco Mariz, mais analítico que os de Tinhorão. Zanon casa seu indiscutível conhecimento da técnica do violão com uma capacidade surpreendente de identificar aspectos regionais, sociológicos, influências em cada escola de violão. Infelizmente seu trabalho foi interrompido pela ignorância crassa de Paulo Markun, quando iniciou o processo de desmonte da Rádio e TV Cultura. De qualquer modo, aborda um veio apenas da música brasileira – o violão.

Caminhei agora, de manhã, ouvindo o programa de Zanon sobre Luiz Bonfá. A partir da reconstituição da história do violão, desmonta um dos mitos mais persistentes e anacrônicos, alimentados especialmente pelos pesquisadores da USP: a de que a bossa nova significou a refundação da música brasileira. Zanon fala sobre o Clube da Bossa, criado por Garoto nos anos 40, para o qual levou Bonfá. Mostra como o bolero influenciou o modo de tocar de Bonfá e como este foi vital para a escola harmônica dos anos seguintes. E o papel do mestre uruguaio Isaias Sávio na formação de Bonfá.

Importante: todos esses programas estão disponíveis na Internet, abrindo possibilidades enormes de acesso e troca de informações.

A partir dessa reconstituição da história do violão brasileiro, é fácil comprovar a bossa nova foi uma continuidade, com João Gilberto sendo a síntese dos grandes avanços da música brasileira desde os anos 30.

Esse é o problema maior: nas últimas décadas brotaram inúmeros cursos superiores de música, a Internet trouxe novas possibilidades de pesquisa, dando nova dimensão à música popular brasileira, mas não se renovou a bibliografia e as interpretações sobre a música brasileira contemporânea.

Ficou-se preso aos estereótipos do livro “O Balanço da Bossa”, reforçados posteriormente pelo livro de Ruy Castro. O pior foi quando a interpretação foi apossada pela semiótica da USP. Criou-se uma categorização de música – a entoação, ou seja a maior ou menor proximidade da música com a linguagem falada – como se fosse a pedra de toque capaz de abarcar toda a produção musical brasileira. Uma mera classificação curiosa – e irrelevante – tornou-se o fio condutor para dezenas de pesquisadores despidos de qualquer conhecimento mais profundo sobre música, história, sociologia. O ponto máximo é o livro “Bim Bom” – na qual o autor encontra explicações antológicas para o fato de João Gilberto repetir o “bim” no final da música (bim – bom – bim -bim – bom). O livro consiste em dissecar tecnicamente as maiores músicas da bossa nova. Como um contador poético, “explica” a harmonia e o ritmo de cada música, como se tivesse localizado o ponto comum a toda a produção da bossa nova. E nem se dá conta que grande parte das músicas incluídas – “Manhã de Carnaval”, de Bonfá, “Primavera”, de Lyra – são sambas canções, reconhecidos como tal pelos próprios autores.

Tatit consegue fugir da síndrome da entoação em seu último livro “O Século da Canção”. O livro todo é um equívoco. Analisa a bossa nova com os olhos preconceituosos de Bôscoli – para quem a música brasileira estava dividida entre bossa nova e os “bolerões”. Depois envereda pela MPB com os olhos preconceituosos de Elis Regina – e suas passeatadas contra a guitarra. Aí entra no tropicalismo com os olhos não preconceituosos de Caetano. Num passe de mágia, o brega dos anos 70 torna-se cult, enquanto o dos anos 50 continua maldito.

O grande históriador precisaria aproveitar os levantamentos de Ruy Castro sobre os conjuntos vocais dos anos 40 e a influência americana no Rio, os estudos de Cazes sobre a influência das bandas de jazz no novo choro, do pós-guerra, as análises preciosas de Zanon sobre o violão brasileiro, apurar a influência do samba-choro e do samba sincopado na formação de João Gilberto, buscar em Tinhorão as raízes iniciais, levantar a influência ibérica identificando os pontos em comum entre as cantigas nordestinas e a escola musical de Rosário, na Argentina. Há um enorme acervo digital disponível, dos arquivos de Tinhorão e Franceschi no Instituto Moreira Salles, aos blogs umquetenha, Loronix e outros disponíveis na Internet. E situar esse levantamento no âmbito das transformações urbanas e políticas brasileiras.

Essa formação tem que ser pensada a partir dos cursos de música nas universidades.

Luis Nassif

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