Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Aos anos de Mário de Andrade, por Maíra Vasconcelos

Invocar o espelho, se bem esta atitude demonstre-nos piores feições, mesquinha e desprezível como a vaidade, diria Mário, passá-lo da vanglória ao orgulho, isto pode ser dar-nos contornos de reflexos melhores, se é que por alguma razão célebre voltamo-nos ao espelho. O espelho, recorrido símbolo eterno. E se bem Mário não fosse rude áspero e friamente cortante, pode ser assertivo dizer que antipático abusivo e um estorvo consigo mesmo frente à própria imagem.

De posse dos seus espelhos, Mário era o exato contrário de Picasso. Se Mário declarou em versos querer a energia e a força do cubismo, arrisco cheia de certeza, dizer que Mário relutaria ir a favor do pintor com grandes galanteios. Pois Picasso era um venerado alucinado em espelhos, pincelando mulheres que eram reflexos-vidros dele e deles mesmos, tudo virava coisa de Picasso e as mulheres Picassos-de-Saia, enquanto Mário nunca brincou-bajulou o seu duplo íntimo, o outro era o seu espelho escondido no segredo almofadado ao lado da sua cama, às oito da manhã. Mário foi dum espírito mais recortado do que qualquer cubismo!.

.estou ficando corajosa ao contrário, pois se amo a palavra escrita acho que isso não é viver, e acredito que no sentir está a vida, sim!
..mas escrevo, e peço licença para bons exageros: a madrugada brilhou trezentos brilhos naqueles olhos tesourados, quando enfim nos foi feito Mário!.

Não sei a intenção de Mário com a negação do espelho, oh, espelhos!, aliás, sim, sabemos todos. E não será relevante pensar as vias tortas pelas quais ele chegou a tais elucidações, Mário tem toda razão. Se o que mais vemos são espelhos cultivados – ai!, mundo cego – como se pudéssemos deles arrancar um só pingo rasgado de orgulho. Se fosse construído um enorme espelho para o mundo, quanto de orgulho poderíamos identificar? Seguramente, merrecas. Arre mundo!, Mário gostava de exclamar assim: arre! Mas o mundo todo e essa espelhice inútil, isso não vem ao caso, se falo agora é de Mário e seus espelhos. Espelho que não sabemos o que dele restou na plena forma da sua crise dos quarenta. O soneto dos Quarenta, uma tentativa de calmaria, já nestas épocas em que o Comunismo também foi pensado pelo autor como uma alternativa de se tranquilizar e cultivar uma nova atividade intelectual, para diminuir o estremecimento que lhe acometia a alma e a carne, advindo da cercania à velhice. Mário supunha estado de velharia, no tal dos seus quarenta anos, num tal 9 de outubro, de 1933.

Mas o dia 9 de outubro, deste presente ano do século XXI, este dia ainda não chegou. E neste momento desguarnecido, nesta escrita em plena madrugada: percebo então que trabalho palavras dobráveis e flexíveis, embrulhando um presente. Agora esta crônica ficou mais bonita e sutil. Eu acho.

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Mário e sua palavra, certamente, ainda mais influenciarão as estruturas das escrituras atuais, não as minhas, por enquanto, porque sei sob qual domínio-indiretas ando por agora. Mas dizer de Mário é quase que loquaz e com certeza uma espontaneidade. Minha. E que devo fazer deixar vir emergir, como se hoje escrevesse sobre literatura para um jornal que não existe mais porque pegou fogo, sendo ainda, esta, a mão de uma jornalista já falecida. Sim!, nesta madrugada infernizada de bons vermelhos e azuis, acredito que escrevo para um jornal que já morreu, e minha mão é outra, simplesmente, porque a sinto tão solta. Escrever é tão vulgar!

E como se tudo isso fosse uma coisa revogável no tempo, justifico assim a andança desta noite-madrugada nas posturas de Mário, nos espelhos de Mário, e na absurda implicância que ele tinha consigo mesmo. Pegava no próprio pé como se não houvesse pisada mais marcante e insinuante, por qualquer passar de tempo que naquele corpo assolasse, ele esteve atento demais.

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Acostumei-me a entender que abril é um mês importante, abril coincide e é fatal (reparem na história), e foi num 20 de abril de 1926, que Mário de Andrade redigiu um comunicado urgente, jurou solenemente em letras garrafais: “QUE SOU POETA”.

.Se lesse as cartas escritas por Mário, assim como leio livros de poesia, poderia jurar que entenderia mais sobre ousadas heranças e relíquias. Mas essa impressão pode ser um assombro velho modernista e zombeteiro, nesta plena madrugada, noção de anterioridade que não sei se é exatamente minha ou das sombras desta vida.

.Se alguém quiser me presentear, gostaria muito de receber as já publicadas cartas de Mário de Andrade. Isto me traria alegria e entusiasmo. E de Mário ficaria assim tão mais íntima!, quanto também mais insuportável aos outros. Vivo desprovida de vergonha e de pudor, quando me aproprio de autores.

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Determinadas madrugadas sempre podem me render alguns bons frutos – Ângela nasceu de uma luz na jactante escuridão destas luas bem passadas, numa antiga grande casa em San Telmo. Certas específicas madrugadas são uma partitura a serem lidas, uma linha negra, um ponto escalado, um tom um silêncio que culminam na ativa participação da palavra escrita ocupando o lugar do sono.

..estou a achegar-me, tateio os lenços de Anita. Amiga queriqueri era Anita Malfatti, amiga banhada em lenços de marfim!, lenço azul verde, coberta em panos que tingiam seus tormentos sem fim! E sem ter as palavras de Anita Malfatti, as cartas desta sua eterna amiga, sem isso jamais estarei tão certa sobre as coisas que eram de Mário.
Ah!, e ainda temos Tarsila. Olhar mais e mais pinturas é conhecer Mário: recolho-me um pouco em Cândido Portinari!, se Mário dedicou-lhe um poema, talvez gostasse tanto daquela tinta que conta detalha os pés a força e os braços do homem negro no café.

Mário hoje poderia dizer que a vida é um desvio certo e que Oswald o dilacerou. Sou tão atrevida para novamente acreditar que isso realmente poderia sair de Mário. Essas considerações. Coisas íntimas de Mário pegam-me muito facilmente, como se assim tivesse mesmo que ser, porque o jornal foi renovado e a possibilidade de ser visto-e-falado ainda pode ser conduzida. Ou porque o romance Café ficou no meio do caminho, mas ele, Mário, não parou, e isso é um ponto seríssimo na literatura de um autor. Um livro incompleto, dois, feitos por um ser divididamente quebrado em milímetros reflexos e reescritos rascunhados, feito em partes por ele ser tão completo como é, exatamente pela sua falta de solução, talvez. Dizendo-se abandonado, cheio de espelhos que cobriam seu corpo.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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