Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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O apelo ao erro, por Maíra Vasconcelos

por Maíra Vasconcelos

Um-por-um dos meus passos é tudo o que possuo hoje, nesta noite vinda mais fria e que meu corpo tanto agradece. Cada passo é um primor. Passemos adiante, por favor. O que fui ontem, hoje não sou mais. A mudança pertence à vida fazendo-se em cada segundo – a morte é a paralisia daquilo que pensávamos e depois não sabemos mais. É preciso saber morrer e ficar sem nada nas mãos; a noção de Deus nos enche de afazeres e pedidos de perdão, se não quero o perdão, preciso do erro, preciso errar para despertar e me despedir daquilo que eu era. Preciso morrer para querer descobrir o que há depois. Amanhã é o resultado inacabado do ontem, e todo dia é ontem. Esse tempo corre lá fora, enquanto neste quarto minha alma vagarosamente se reflete e acolhe. Preciso do tédio para não me engolir. Esse tempo que corre lá fora está separado de mim. Relego a noção do tempo ao chateado cotidiano das ruas, eu vejo passar os segundos enquanto como frutas e imóvel escuto pássaros, depois saio a contar todos os passos que preenchem as horas de um passeio. Sou muito esperta para não me sufocar. Posso amar o tédio porque meu interior se agita constantemente. Minha atenção se dispersa tão rápido que eu nem sinto. Tudo balança e o equilíbrio é aparente. Mas estarei atenta a cada chão como um bicho ressabiado e privilegiado debaixo da árvore. Olho o dia passar, vivo observando e ainda assim fico tão cansada de tudo. Não entendo como o mundo passa por minha pele. Perfura, às vezes, e eu apenas sinto. Surpreende-me como tanto me é dado. Estarei atenta a cada chão porque fui feita para atos meditados. Minha distração também é meditada, senão me perco do todo e não escrevo. Posso secar. Mas hoje não vou secar porque estou cheia de paixão. Parece que escrevo sozinha?, mas cada palavra está sempre acompanhada – hei de me contentar com a satisfação da palavra, como se fosse minha – e a solidão é outra coisa, se parece ao corpo que nos abandona, o corpo que nos abandona um pouco a cada dia. Os ossos se desgastam. Mas a solidão pode ser também a realidade vinda dos chãos. Cada um desses chãos que representam um pouco do nosso verdadeiro descaso. Cada um desses chãos que são um relento cru. Caminhos são ilusão poética e vontade de se eternizar, caminhos têm intenções religiosas e isso eu não quero. Se algum dia falei em caminhos, ah, eu errei, mas erro muito porque tanto desencontro haverá, sempre. Quem pensa que já se encontrou está perdido. Não somos assertivos como animais, somos mesmo humanos e atuamos pela destruição sem quê – seria racionalmente injusto e pobre escrever sem condecorar a vida animal-floral, toda realidade é vazia e cômica demais se apenas projetada no humano; não deveríamos passar séculos rindo e coçando e aprimorando a própria pança. Desisto rapidamente de pisar os chãos, se estão desprovidos de qualquer arte delirante. O chão puro é a pior das verdades. Por isso pássaros bicam tantas janelas, e bicarão sempre outras janelas, veja-os, suas asas antigas e novas perambulam e eu as agarro porque preciso visualizar um alento. Sim, estou a esperar mais um pássaro. Amanhã. Mesmo que aos chãos eu esteja tão atenta, supondo enxergar sobriamente o passo-de-cada-dia – a sobriedade às vezes é tão irritante – acomodo um prato de flores com pétalas de rosa rente ao sol, e mesmo que em linhas tortas tento pegar o passo-de-cada-dia. Mas não sei. Os passos escapam sempre e são intensos demais. Vivemos para alcançar a nós mesmos, quem dirá o coração do outro. Pode ser tudo tão longe e nossa proximidade contemporânea, essa junção dos corpos livres em tantos corpos, talvez seja a falsidade mais bem elaborada. Se estamos fatalmente tão distantes um do outro, mas vivemos indolentes quase sem saber do passo que nos submerge. O autêntico fracasso é a nossa vida mais bonita, eu sei. Teríamos um amanhã se pensássemos menos que passos corretos são nosso fim, que chãos latejam e nós os escolhemos, que passos os bebemos e dirigimos fortemente uma vida que é a nossa, com família casa e comida, amém. Mais uma vez, eu disse amém. E isso não é. Meu Deus!, isso não é mais que mera distração até a chegada da morte. Então alguém prosseguirá pelo caminho da igreja e esse alguém não será a minha cruel palavra. Ainda que no vazio, meu coração não se intimida em viver espantado.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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