A faxineira e o delegado, por Marcio Valley

do blog do Marcio Valley

Imagine a seguinte situação absolutamente hipotética: você chega na sua mesa de trabalho e descobre que um colega comeu um bombom de sua caixa. O que você faria?

Se você for uma pessoa equilibrada e altruísta, você terá colocado a caixa de bombons à vista justamente porque queria que os colegas os consumissem.

Se você for só equilibrado, mas não altruísta, sorrirá pela sapequice do colega e não ficará demasiadamente aborrecido.

Se for um pouco exigente demais, irá no máximo considerar que houve um certo abuso e ficar chateado.

Se for um ranzinza cricri, irá se queixar diretamente com o colega.

Se além de ranzinza, for egoísta, irá se queixar ao chefe e pedir que ele admoeste o colega de trabalho.

Se for um celerado, um ególatra ou um completo retardado mental, você irá a uma delegacia policial registrar queixa pelo crime de furto.

Agora, se você for um delegado da Polícia Federal de Roraima, exercendo a alta função de Corregedor, você determinará a um outro delegado da Polícia Federal que conduza esse colega de trabalho, que lhe é inferior, a uma sala de depoimentos na qual ele será interrogado por uma hora sem a presença de um advogado e lhe será exigido que apresente o papel que embrulhava o bombom, papel esse que será apreendido, encaminhando-se o “inquérito” para o Ministério Público Federal.

Você considerou essa última hipótese exagerada demais? De fato, põe exagerada nisso. Entretanto, parece que nossos homens públicos perderam de vez o senso do ridículo e a noção de comedimento no exercício da função pública. Isso foi exatamente o que aconteceu.

Segundo noticiam os jornais e matéria transmitida no Fantástico, um delegado da Polícia Federal, que exerce a alta função de corregedor da instituição, mandou autuar uma colega de trabalho humilde, que exerce a função de faxineira, porque ela comeu um dos bombons que estava em sua mesa.

Abuso de autoridade é pouco para designar uma situação ridícula como essa.

Afinal, quanto custa um bombom? Uma caixa de Ferrero Rocher, marca que não é tão barata, com 15 bombons, custa cerca de 40 reais, de modo que, cada um vale menos menos de três reais. Se for um bombom comum, custará menos de cinquenta centavos a unidade. Vamos imaginar, todavia, a partir da inacreditável dimensão do fricote policial, que é um mais caro.

E quanto custa a hora de trabalho de um delegado da Polícia Federal? Presumindo-se que o delegado que ouviu a mulher não esteja, nem no início, nem no final da carreira, deve receber em média 18 mil reais. Estando aparentemente sujeito ao módulo semanal de 40 horas de trabalho, disso resulta 200 horas mensais, de modo que uma hora de trabalho custa 90 reais a nós, contribuintes.

Só que a oitiva do acusado é realizada, no mínimo, por um delegado e por um escrivão. Seguindo o mesmo raciocínio, um escrivão com salário médio de 10 mil reais possui hora de trabalho no valor de 50 reais.

Mas a conta não para aí. O arremedo de inquérito policial foi remetido ao Ministério Público Federal. Um procurador federal terá que lançar um parecer qualquer nesse amontoado de papeis inúteis, ainda que para sugerir o arquivamento. Com um salário médio de 28 mil reais, a hora do procurador custa 140 reais.

Assim, tem-se que, no âmbito federal, e sem considerar o trabalho de mais nenhum servidor além de um delegado, um escrivão e um procurador, o furto de um bombom de três reais custou aos cofres públicos pelo menos 280 reais. O destempero, a arrogância e a falta de equilíbrio emocional do respeitável corregedor da Polícia Federal custou o equivalente a sete caixas de Ferrero Rocher, com 105 bombons.

Se por um bombom de três reais a faxineira prestou depoimento e foi autuada, o que merece esse delegado que causou ao Tesouro um prejuízo de, no mínimo, 105 bombons?

Se colocarmos nessa conta o custo do descrédito que essa demonstração de desumanidade causou à instituição policial, esse delegado teria que ser obrigado a prestar hora extra como faxineiro na Polícia Federal por uns cinco anos para reduzir o prejuízo causado.

Não bastasse o prejuízo financeiro causado ao erário, aparentemente o delegado violou o direito de defesa da faxineira, pois não lhe oportunizou ser acompanhada por um advogado, além de ter ilicitamente colocado a máquina federal em andamento, pois a lesão, se houve, foi particular, do próprio delegado, e não da Polícia Federal, de modo que o caso teria que ser apresentado à Polícia Civil e encaminhado ao Ministério Público Estadual.

Imagino que o delegado, por ser delegado, conhece bem o Direito Penal, tendo plena ciência do princípio da insignificância, do chamado crime de bagatela, que é justamente o que o nome indica, não precisa ser doutor em direito para saber. Não se dá andamento a delitos de pouquíssimo impacto social, justamente pela insignificância, que não justifica colocar em andamento o caríssimo aparato repressor estatal. Se um bombom não é bagatela, jogue-se esse princípio no lixo doutrinário, pois não sei mais o que isso significa.

Além disso, é altamente duvidoso que o fato comezinho, essa bobagem, de um colega de trabalho comer a comida do outro possa efetivamente ser considerado um furto. Trata-se de questão menor, a ser solvida no próprio ambiente de trabalho pelo superior hierárquico dos dois, se é que vale isso. A legislação do trabalho já possui penalidades próprias para esse espécie de questiúncula. O delegado sovina poderia ter solicitado à empresa prestadora que advertisse a faxineira.

Isso me faz lembrar o caso de um presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ari Pargendler, que, encolerizado, demitiu um estagiário do tribunal porque ele ousara permanecer na fila da máquina onde o excelentíssimo ministro estava realizando uma transação, permanecendo na fila mesmo após o todo-poderoso ter determinado que ele se retirasse. O estagiário estava no local certo, atrás da faixa, tendo para lá sido encaminhado por um atendente do banco. Não tinha porque sair dali, salvo o gigantesco ego do superministro.

O que leva alguém poderoso a colocar todo o peso de sua autoridade sobre um desfavorecido, um zé-ninguém?

Há poucos dias, em meu texto “O deputado e o motorista”, sustentei que temos, por herança portuguesa, uma sociedade hierarquizada e autoritária. Há, entre nós, uma forte tendência a sermos autoritários em relação àqueles em face dos quais nos sentimos superiores. Em grande parte da cultura europeia e na americana, é comum, entre superiores hierárquicos e seus subordinados, entre parentes ou entre amigos, a existência de divergências acaloradas sem grandes danos na relação interpessoal. É possível vermos isso, por exemplo, nos filmes americanos, nos quais amigos trocam sopapos e, cinco minutos depois, reconhecem reciprocamente o erro e se abraçam. Relações interpessoais podem gerar tais situações de stress e é sinal de amadurecimento saber superá-las.

No Brasil isso é incomum. Pautados que somos pela supremacia da hierarquia, esta permeia todas as relações, sejam parentais, sociais ou profissionais. Os pais mandam nos filhos, os amigos mais poderosos mandam nos menos afortunados e os chefes mandam nos subordinados. Espera-se dos filhos, dos desafortunados e dos subordinados não somente que obedeçam, mas que obedeçam de forma resignada, talvez até demonstrando alguma satisfação ou prazer na obediência, inclusive em relação a ordens abusivas. Em nossa cultura, vale ressaltar, até gostamos de obedecer quando estamos por baixo e, por isso mesmo, não aceitamos que não nos obedeçam quando estamos por cima. Há um quê de sadomasoquismo social nisso.

Isso, contudo, embora seja parte considerável do que supostamente conduz o mais poderoso a se tornar um opressor, não creio que seja suficiente para explicar inteiramente o que leva certas pessoas a massacrarem de forma tão brutal alguém que lhe é absurdamente mais fraca.

A disparidade de poderes nos exemplos citados, que envolvem relações delegado-faxineira ou ministro-estagiário, é tão abissal que naturalmente deveria conduzir ao tipo de magnanimidade que em geral os poderosos gostam de demonstrar em relação aos muito mais frágeis, notadamente quando existem testemunhos dessa demonstração de virtude. Fica bem no currículo.

Contudo, parece que, em alguns casos, a fixação na contrapartida mandar-obedecer vem acrescentado de uma boa dose de despotismo, que é um vício complexo, formado pela junção de tirania com perversidade.

A arrogância e egolatria no poder é por si um grande problema. O despotismo é um problema ainda maior. Existe em maior ou menor grau em quem se sente desproporcionalmente poderoso e não possui freios éticos e morais que mitiguem a vontade de oprimir a quem ouse divergir de sua mais insignificante vontade.

O déspota absoluto é absolutamente despótico. O déspota relativo é relativamente um covarde, que só exerce o seu poder de opressão sobre o fraco.

O crime em tese de furto é subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Como toda lei, essa tipificação é igual, exatamente igual, para qualquer pessoa, rica ou pobre, fraca ou poderosa, delegado ou faxineira. Contudo, arrisco-me a dizer que não existe uma só pessoa sã e racional nesse Brasil inteiro que tenha alguma dúvida de que o delegado somente autuou a mulher porque ela era faxineira. Se as câmeras tivessem flagrado o superintendente da Polícia Federal retirando e comendo um bombom na mesa do corajoso corregedor nada teria acontecido. Repito: nada teria acontecido. No entanto, a prevalecer o entendimento do corregedor, o crime seria o mesmo e ele teria a mesma autoridade policial para efetuar a autuação.

Coragem, coragem mesmo teria um delegado da Polícia Federal dando voz de prisão a um outro delegado por um crime de bagatela, como fez o bravo corregedor. Claro que isso não ocorreu e jamais ocorrerá.

O Corregedor, assim como outras autoridades poderosas, sabe até que ponto pode exercer o seu despotismo impunemente.

Espera-se agora, para salvar a imagem da Polícia Federal, que esse policial seja punido pelo abuso de autoridade e pelo prejuízo causado ao erário público.

Será que a Polícia Federal, como instituição, se revelará pusilânime? Esperemos.

Enquanto isso, recomenda-se à faxineira, que está sendo apoiada pela OAB local, que acione pessoalmente o delegado em busca de reparação moral. Creio que será favas contadas se não tiver o azar de pegar um juiz de caráter igual ao do delegado.

no blog: http://marciovalley.blogspot.com.br/2015/10/a-faxineira-e-o-delegado.html

Redação

14 Comentários

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  1. Retrato fiel do que é a

    Retrato fiel do que é a polícia federal hoje: abafa o caso da apreensão de um helicóptero com meia tonelada de cocaína só porque pode atingir um político amigo e tenta levar para a cadeia a faxineira que pegou um bombom da mesa de um delagado.

    Decadência.
     

  2. Hoje mesmo por esse Brasil

    Hoje mesmo por esse Brasil afora casos da espécie se repetirão. Seja nos lares, nos locais de trabalho, nas ruas……Sempre foi assim, é assim, e, parece, sempre será assim. Todos temos alguma história parecida para contar.

     

    1. JB Costa, você tem razão, mas

      JB Costa, você tem razão, mas o problema não é exatamente acontecer, a grande questão é não nos deixarmos anestesiar pelo horror cotidiano, pela degradação rotineiro e por todos esses males desse mundo “que é assim mesmo”. Não temos o direito de silenciar.

      1. Entendo. Infelizmente, por

        Entendo. Infelizmente, por ser cotidiano acaba mesmo por nos anestesiar. Essa quadra que vivenciamos me parece a mais tenebrosa das quantas já vivenciei. As demonstrações de desumanidade, arbitrariedade, ódio, violência alcançaram patamares inimagináveis. 

        Não seria exagero afirmar que parte da nossa sociedade está doente. 

    1. A respeito do primeiro caso,

      A respeito do primeiro caso, o juíz é um ser torpe mas a agente de trânsito era uma completa idiota que achava-se superior a quem ela fiscalizava E MERECEU pagar indenização para deixar de ser idiota.

      No Brasil quem tem poder de polícia, como esta fiscal de trânsito, frequentemente se acha no direito de desrespeitar pessoas. O juíz, que é um ser torpe(vide seu histórico) mas não é burro, só ficou escutando e pronto, resolveu seu problema graças a idiotice alheia.

       

      1. Na mosca, direito é força

        Quem pode mais, chora menos.

        Tivesse a agênte de trânsito a presença de espirito e o conhecimento necessário e teria enquadrado o juiz com o chaveco do Abuso de autoridade e Desvio de poder.

        Agêntes públicos SÓ PODEM PRATICAR ATOS VÍNCULADOS, fim de papo, ou o sujeito têm competência explícita em Lei ou deve se abster de agir.

        O Delegado acima deveria voltar a cursar direito penal e processual penal para poder exercer com retidão o seu mister.

  3. “O que leva alguém poderoso a

    “O que leva alguém poderoso a colocar todo o peso de sua autoridade sobre um desfavorecido, um zé-ninguém?”:

    Certeza de impunidade.  Em praticamente qualquer pais do mundo esse delegado ja estaria no olho da rua.  No Brasil, emprego publico eh so casa da sogra de white trash mesmo.

  4.  
    O delegado poderia ter

     

    O delegado poderia ter transferido a faxineira, ou, na pior hipótese, aberto um Termo Circunstanciado de Ocorrência e encaminhado ao Tribunal de Pequenas Causas, onde a chocólatra responderia em liberdade.

  5. Exemplo

    Decerto o delegado teve a intenção de tomar medida policialesca para servir de exemplo, ou seja, não tolera o mal feito na instalações da própria policia e qualquer ato dessa natureza deve ser punido com os rigores da lei, independente de quem o cometeu e da gravidade.

    1. Independentemente de quem o

      Independentemente de quem o cometeu? Você acha que se fosse um colega do mesmo nível, de nível superior, ou até de nível inferior, mas de origem social mais elevada, que tivesse pego o bombom, ele ia mesmo tomar essa atitude? Tá bom que ia… 

    2. Você leu o texto?

      Porque se você leu não entendeu nada… Ou então é mais um neurótico dominado por ideias preconceituosas e bobagens sem fim. E pensar que você ainda perde seu tempo para postar uma idiotice tamanha como essa que falou…

  6. Acho que não é só com

    Acho que não é só com faxineira.

    Tempos atrás fui embarcar num avião no Santos Dumont (RJ). Na época estava usando uma joelheira dessas que tem umas tiras de metal nas laterais para dar estabilidade, pois havia rompido um ligamento importante do joelho.

    Claro que a maquininha apitou quando eu passei. Mostrei então a joelheira ao funcionário tentando explicar a situação. Foram me empurando para um canto e me disseram para retira-la de forma grosseira. Enquanto tirava tentei convencer o funcionário da necessidade de usa-la, quando um sujeito na minha frente falando alto me disse que eram normas de segurança e coisa e tal, que eu não podia usa-la no aeroporto.

    Argumentei que tudo bem, mas isso deveria ser tratado com educação e respeito. O sujeito então levantou mais a voz e disse que era policial federal e que poderia me prender por desacato à autoridade. Tenho mais de 60 anos e esse sujeito era muito mais novo que meu filho.

    Em resumo, fui andando sem joelheira, mancando com medo de torcer o joelho, até o terminal que era longe. No caminho fui ruminando sobre o que era esse tal de desacato.

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