O Efeito Dunning-Kruger na qualidade do debate político, por Marcio Valley

do blog do Marcio Valley

O primeiro atributo necessário à pessoa que busca um conhecimento honesto sobre qualquer assunto é a humildade de reconhecer a própria ignorância. O segundo é admitir a existência de um sem números de pessoas – sábios, pensadores e cientistas – que se debruçaram sobre o tema exaustivamente e, a partir de uma reflexão profunda, produziram e divulgaram obra do pensamento através da qual exteriorizam, não somente os contornos, a superfície, mas uma visão de profundidade sobre todos os aspectos da questão, alguns inclusive apresentando as respostas possíveis para a solução do problema. O terceiro é aceitar os ensinamentos desses sábios para, a partir deles, construir uma identidade intelectual própria sobre a matéria.

É perfeitamente saudável questionar o trabalho intelectual de pensadores e cientistas, todavia exigindo-se, primeiro, o conhecimento da obra criticada e, segundo, uma capacidade técnica própria – cognitiva e intelectual – para produzir conclusão contrária, a ser demonstrada de forma racional e lógica. O “achismo”, nesse campo, é inadmissível. Pode-se dizer caber a qualquer um não aceitar determinada conclusão, mas não se pode aceitar essa recusa como refutação. É apenas pirraça intelectual que, se não freada pela humildade, transmuta-se em mera arrogância autoritária.

A palavra chave aqui é humildade. Sem ela, vence a soberba e prevalece a ignorância, possivelmente decorrente da síndrome de superioridade intelectual ilusória denominada Efeito Dunning-Kruger. Em resumo, trata-se de um fenômeno muito mais comum do que se imagina ou se gostaria e que cega as pessoas sobre a extensão do próprio conhecimento ou habilidade, que deliram ser muito superior ao que efetivamente possuem. Grosseiramente falando, trata-se do idiota ignorante que pensa saber mais do que o sábio erudito. Cegado por essa superioridade ilusória, o iludido resta inapto para identificar os limites da própria habilidade, reconhecer a amplitude de sua inabilidade e admitir a maior habilidade alheia. Isso ocorre justamente porque o iludido não possui as ferramentas intelectuais necessárias à constatação da própria incompetência e à identificação do que é competência real quando a vê no outro. Infelizmente, não há cura externa ao iludido, que somente será capaz de admitir sua inabilidade após, e se, adquirir o conhecimento do qual carecia, o que depende de um esforço espiritual interno. Caso contrário, morrerá reafirmando a própria idiotia.

Pelo que se observa dos debates públicos, esse efeito pernicioso que conspurca a vontade possivelmente deve ser tanto mais intenso quanto maior for o grau de escolaridade do iludido e sua inapetência intelectual sobre assuntos que extrapolem a sua área de atuação profissional, o chamado “especialista sem espírito”.

As ciências humanas, por não serem propriamente ciência, no sentido estrito da palavra, é o reduto preferido de atuação dos iludidos pela superioridade ilusória. São poucos, muito poucos, os que as conhecem com um mínimo de aprofundamento, os que leram ao menos um livro de história, de filosofia ou de sociologia, mas são muitos, muitos mesmo, os que se consideram aptos a falar em nome delas.

A história e a filosofia, com suas filhas sociologia, antropologia, psicologia, ciência política, teoria do direito e economia são, provavelmente, os ramos mais instigantes a integrar o cabedal de conhecimento humano, pois são esses saberes que se preocupam com a humanidade enquanto subjetividade e interssubjetividade, ou seja, com o indivíduo como um elemento constituinte da coletividade em intensa e próxima inter-relação com os demais. Mais do que as ciências naturais, como física e química, cujos objetos – por exemplo, partículas atômicas e cadeias de elementos químicos – são mais distantes da realidade vivida, as humanas são instigantes justamente por que nos identificamos com seus objetos de pesquisa, que são o indivíduo e suas diversas formas de vinculação com os outros, ou seja, nós.

Cada um desses distintos ramos de conhecimento produziu e produz incontáveis narrativas sobre a conduta humana e civilizatória, que são realizadas à luz da aplicação do método científico. Não se trata meramente de “achar” que algo é assim ou assado, mas de coletar elementos no campo de observação e conduzi-los ao microscópio epistemológico da análise intelectual parametrizada. Um historiador, um sociólogo ou um antropólogo não se resignarão com apenas um dado proveniente de uma fonte para situar o objeto da pesquisa e, assim, categorizá-lo. Sempre que possível, irá rebuscar todas as fontes possíveis para conferir a maior credibilidade alcançável sobre a conclusão que obtiver.

Imagine-se um antropólogo fundando sua pesquisa atual sobre determinada tribo da Polinésia em um único artigo de jornal do século XVII. Dificilmente será levado a sério. O antropólogo certamente irá à Polinésia para conhecer presencialmente a tribo em questão e, sempre que possível, nela conviverá por algum tempo e tentará mesmo aprender sua língua para assim ser capaz de determinar com maior precisão seus hábitos, costumes e idiossincrasias. Publicada sua obra, pode-se discutir as conclusões obtidas, mas sempre com a extrema reserva da humildade de quem não possui as mesmas fontes, os mesmos saberes e nem o mesmo tempo de reflexão.

Num comentário sobre política, um internauta lamentava o fato de que, segundo ele, “a academia se encontra entulhada de esquerdopatas”. A afirmação, muito comum, além de ser marcada por um conteúdo autoritário que embute a vontade velada de silenciar a voz contrária, é típica de pessoa acometida pela síndrome de superioridade intelectual ilusória: o crítico considera-se superior aos acadêmicos que condena. Claro que a assertiva não é, em absoluto, verdadeira, pois a academia produz trabalhos múltiplos, polissêmicos e polissonantes. Não são poucas as oportunidades nas quais, divulgada a fala de um acadêmico respeitado, ao mesmo tempo vozes de todas as cores partidárias, muitas vezes das mesmas cores, a ela se opõem acidamente ou aderem entusiasticamente, o que revela que, na verdade, talvez o pensamento publicado tenha sido pautado por uma isenção e um equilíbrio que passaram despercebidos, não tendo o pensador incorrido em filiação a qualquer ideologia político-partidária.

Talvez seja verdade que exista um leve predomínio do pensamento de esquerda entre os acadêmicos das ciências humanas, mais propensos a idealizar uma sociedade mais justa e menos desigual. Isso, todavia, longe de ser repelido com violência leviana, deveria ser motivo de reflexão por parte daquele que sinceramente admitisse não possuir os mesmos atributos de conhecimento. Ora, se um grupo de pessoas sem afinidades entre si no tempo e no lugar, após uma vida dedicada a estudar e refletir sobre a sociedade, passa a entender que o mundo, tal como se apresenta, é profundamente injusto socialmente, com repartição desigual dos benefícios oriundos da Terra, e mereceria uma refundação político-econômica como meio de mitigar os efeitos daninhos observados, quem sou eu, que não me dedico a tal estudo, para dizer que esse grupo é formado por “esquerdopatas”? É muito provável que a afirmação da “esquerdopatia acadêmica” tenha sido comemorada, pelo internauta que a proferiu, como demonstração de inteligência racional, mas é pura idiotia arrogante, um efeito da superioridade ilusória da qual padece.

Obviamente que não cabe advogar a renúncia à crítica e uma espécie de adesão incondicional a argumentos de autoridade. Apenas se ressalta que a refutação de um trabalho sério de pesquisa, realizado com base epistemológica, não pode ser levianamente produzida na base do “achismo” ou a partir da primazia da incredulidade desfundamentada. Ao ser confrontado com uma pesquisa acadêmica, realizada por pesquisadores da Unicamp, que demonstrava que o programa bolsa-família não produz o voto de cabresto e possui baixo índice de desvio, um crítico limitou-se a afirmar não acreditar nisso. Por quê?, indagou-se ao crítico, que respondeu que não era isso que “via” nas pessoas que conhecia e que eram beneficiárias do programa. E ponto final. Uma pesquisa que envolveu trabalho de campo com centenas, talvez milhares de beneficiários do programa, em um sem número de municípios distintos, além de dados obtidos em instituições como IBGE e posterior adensamento intelectual na redação da monografia, que sempre exige longa reflexão, de meses ou mesmo anos, foi jogada fora em cinco minutos de conversa porque não era isso que o iludido “via” em três ou quatro pessoas que conhecia, a acreditar em sua palavra. Não há como remar contra argumentos desse tipo, que representam um verdadeiro tsunami de insipiência.

Nos últimos anos parece que houve uma epidemia de ocorrências do Efeito Dunning-Kruger. Para piorar as consequências daninhas da prevalência da ignorância ressentida sobre a inteligência verdadeira, a voz da ilusão de superioridade intelectual predomina no discurso que é ressoado pela mídia, multiplicando o seu efeito devastador.

Em prejuízo da construção de uma sociedade mais equilibrada, menos desigual, pari passu com a figura do idiota arrogante, movido por superioridade intelectual ilusória, têm-se os intelectuais verdadeiros que escrevem textos de forma totalmente hermética, prenhe de jargões incompreensíveis para os leigos, que são produzidos para ser publicados nos jornais, obviamente com a intenção de alcançar o público comum, não acadêmico. Tais textos são dirigidos a um público diferente daquele formado pelo universo dos idiotas arrogantes: os ignorantes deslumbrados.

Em termos sociológicos, quanto à discussão pública dos dilemas sociais a serem enfrentados coletivamente, discursos teóricos construídos com alta complexidade, e não direcionados ao estrito âmbito da academia, longe de solução, costumam ser um problema. Os primeiros com muita frequência são paralógicos, muitas vezes simplesmente vazios de conteúdo e em outras apenas sofistas. Em ambos os casos buscam produzir a ilusão da verdade para alcançar um objetivo oculto, em geral, mas não necessariamente, apologéticos ao conservadorismo. Quanto mais profundamente se deseja enganar muitas pessoas simultaneamente, mais palavras fora do comum são necessárias ser ditas para o sucesso do intento. Os ignorantes deslumbrados ficam fascinados por textos que não compreendem, entendendo-os como demonstração de profundo conhecimento de quem os escreve.

O mesmo ocorre com os discursos reducionistas. O reducionismo na conversa política busca dar a falsa impressão de que a ação coletiva almejada é facilmente alcançável, como, por exemplo, na invocação da assim chamada “vontade política”, uma espécie de varinha de condão política que tudo viabiliza, em relação a uma certa figura pública, sem levar em conta o grau de dificuldade da ação pretendida, não somente com relação às condições materiais exigidas, como na amplitude do convencimento político-institucional necessário. Parece claro que a vontade política capaz de solucionar a maioria dos problemas coletivos dificilmente será proveniente de um determinado agente político – caso em que seria praticamente anódina – possuindo potência transformadora somente aquela que é adotada pela maioria de dado universo de pessoas políticas com efetivo poder. Historicamente, tal vontade política dos poderosos, no que concerne aos reais interesses do povo, ocorre apenas em situações especialíssimas, como revoluções ou calamidades públicas.

Como costuma ocorrer em relação a todas as instituições humanas, parece que o equilíbrio repousa no meio. Nem complexificação exagerada, nem reducionismo extremo.

E, claro, tentando reconhecer valor ao conhecimento de quem realmente o possui.

no blog: O Efeito Dunning-Kruger na qualidade do debate político

Redação

3 Comentários

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  1. Errata

    Errata: num dos últimos parágrafos, que se inicia por “Em termos sociológicos”, verifiquei que, por algum motivo, talvez por acidente, cortei a segunda frase, que seria curta: “Os reducionistas também complicam as coisas”. Assim, a terceira e a quarta frases ficaram um tanto sem sentido, pois iniciam com “Os primeiros…”, que se referia a textos muito complexos, e “Em ambos os casos…”, que se referia aos complexos e aos reducionistas. Peço desculpas. Se a equipe do GGN puder acrescentar essa errata ao texto, agradeço.

  2. Excelente texto

    Marcio, obrigado por esse texto que dá uma explicação detalhada sobre um fenômeno que está cada dia mais frequente, graças ao google, que ajuda muito a encontrar textos e informações importantes para quem tem capacidade analítica, mas que transforma qualquer ignorante num pseudo-conhecedor de tudo. O “Doutor Google”, por exemplo, pode trazer graves consequências pelo seu mau uso.

    Embora você diga que as ciências humanas são o reduto preferido de atuação desse iludidos, infelizmente isso acontece também com as chamadas ciências “exatas”. Eu posso citar um caso que aconteceu comigo recentemente – e que vem se repetindo, graças ao nível de “coxinhice” no meu ambiente de trabalho. Eu trabalho num órgão municipal de engenharia de tráfego e há alguns anos atrás, por sentir falta de base científica sobre os fundamentos do estabelecimento de limites máximos de velocidade nas vias urbanas, eu me dediquei, por conta própria, a investigar o assunto. O resultado foi um – modéstia à parte – belo apanhado das metodologias, tendo como desdobramento a formulação de uma proposta para uma cidade onde não há critérios para essa tarefa – ou eles são puramente casuísticos.

    Não precisa dizer que pouca gente na empresa se interessou em conhecer o trabalho. Há pouco tempo, com a discussão levantada pela atitude corajosa do prefeito Fernando Haddad  de reduzir os limites máximos de velocidade em São Paulo, gente que nunca se interessou pelo tema começou a dar pitaco, só como pretexto pra meter o malho no “prefeito petista”. Um colega meu descolou na internet (ou recebeu de alguém da sua “rede de conhecedores”) um volumoso texto de três linhas sobre uma pesquisa feita nos Estados Unidos que teria apontado um aumento do número de “acidentes” após a redução dos limites de velocidade. Eu, que já conhecia esse estudo, feito num contexto completamente diferente (em vias rurais) e que, se analisado corretamente, não refutava a correlação positiva entre velocidade e violência no trânsito, entreguei a esse colega o meu texto de cento e poucas páginas – que ele, obviamente, ignorou.

    O resultado é exatamente como você descreveu: para quem não tinha conhecimento do assunto, o pitaco dele – por citar um “especialista” – teve o mesmo peso – mas muito mais aceitação, porque a questão passou a ser apenas política – que o meu estudo. Depois disso, como discutir?

    1. Henrique Torres, seu

      Henrique Torres, seu testemunho é perfeito como exemplo do efeito da superioridade ilusória. Junte a isso, claro, uma certa vontade de acreditar no que enfraquece o meu inimigo. Abraços.

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