Observações sobre a polêmica militar, por Roberto Bitencourt da Silva

Foto: Agência Brasil

Amplos segmentos das esquerdas brasileiras contemporâneas pecam, lastimavelmente, pela absoluta falta de percepção sobre a questão nacional. Nisso se diferem radicalmente das esquerdas pré-1964. Uma limitação subjetiva que inibe tanto a capacidade de proposição programática, quanto a identificação de bases sociais, parceiros, aliados, adversários, inimigos.

Isso restringe a interpretação sobre a realidade do País. Uma realidade subdesenvolvida, econômica e tecnologicamente dependente do exterior. Realidade que se encontra em franco e tenebroso processo de reconfiguração aprofundada da subalternidade econômica, cultural e política frente às potências capitalistas; o sentido decisivo do golpe de Estado de 2016.

O capital, enquanto sistema regulador do mundo, opera basicamente com três importantes dimensões espoliadoras: as assimetrias entre povos e Estados nacionais (centro e periferia); as relações de exploração de classe, entre proprietários de meios de produção e circulação e assalariados, empregados, desempregados, subempregados, inempregáveis; exploração e uso de divisões de gênero, étnico-raciais, não raro em articulação às demais dimensões.

Todas estas três dimensões interligadas propiciariam uma visão abrangente sobre os desafios brasileiros e ações políticas consequentes. Infelizmente, em nossas terras, os grupos e as classes sociais tendem a privilegiar visões unidimensionais.

Entre o grosso das esquerdas brasileiras a questão nacional tende a ser desprezada. A questão democrática altamente prestigiada, via de regra sob a armadura liberal, e a questão social operacionalizada, em boa medida, de maneira defensiva.

Isso posto, chamou-me a atenção certo tipo de posicionamento em relação à polêmica que gravita em torno das recentes manifestações políticas de oficiais das Forças Armadas. Li e ouvi muitos intelectuais e analistas políticos, inclusive dos bons, fazer paralelos imediatos com a experiência de 1964. A comparação é boa. Mas, me parece que deveria visar, fundamentalmente, a identificação de potenciais diferenças e uma dinâmica peculiar, em curso, ainda obscura. Cabe, nesse sentido, indagar:

– Qual Constituição seria rasgada com uma eventual intervenção militar na cena política? (Diga-se, a intervenção já ocorreu, simbolicamente, com pronunciamentos, aqui e ali, de oficiais). Aquela Constituição de 1988, que foi toda fatiada com a supressão de relevantes direitos coletivos, a duras penas conquistados pelo Povo Brasileiro e mal realizados pelo Estado nacional? Direitos escanteados sem qualquer mecanismo institucional legítimo de consulta e delegação popular? Cumpre lembrar que tais medidas antipopulares não passaram pelo crivo do voto majoritário em 2014.

– Qual democracia seria violada? Aquela em que os conglomerados de mídia, o grande capital, inclusive gringo, o Judiciário e as oligarquias políticas destituíram ilegitimamente uma presidente eleita? Vivemos, realmente, nos quadros de uma democracia?

– Qual seria o objeto de uma arriscada, pouco plausível, mas não impossível intervenção militar de fato? Os trabalhadores desorganizados e apassivados de anos de movimento sindical desmobilizador? A destruição de uma CLT – que atravessou décadas como um dos poucos instrumentos normativos civilizadores no Brasil – já rasgada pelas oligarquias políticas e burguesias entreguistas no poder? A alienação do patrimônio público? Aquele vasto e tão facilmente submetido às atuais, acríticas e perniciosas privatizações? O hipotético objeto seria satisfazer os interesses do imperialismo e dos bancos? Mas, qual a dificuldade que ambos têm tido e que se possa enxergar no horizonte, ao menos de curto e médio prazo, para a aplicação das suas terríveis agendas vende pátria e reacionária? Por que o incômodo manifestado nas hostes militares?

É importante não se esquecer que as Forças Armadas possuem quadros talhados na vivência de fronteira, gaúcha e amazônica. São tipos com sensibilidade territorial um tanto mais aguçada. Nessas mesmas fronteiras, em particular ao Norte, encontram-se diversas bases militares estadunidenses, que basicamente cercam o Brasil.

A passeio é que lá não estão, sobretudo para o gigante da América do Norte que concebe o nosso País como fundo de reserva energética, mineral e de biodiversidade. Considere o cenário futuro, não muito longínquo, de mudança climática e potencial escassez de recursos naturais no mundo.

Leve em conta as medidas pretendidas e adotadas pelas oligarquias sob a batuta de Temer: venda e arrendamento semi-irrestritos de terras a estrangeiros, alienação e maior desnacionalização da Petrobras e da Eletrobras. Potencial criação de enclaves territoriais estrangeiros no País, bem como erosão da capacidade de controle sobre energia. Perda de recursos estratégicos em qualquer planejamento para a defesa e soberania nacionais.

Adicione-se a projeção internacional alcançada pelo País nos últimos anos, os compromissos firmados, entre outros, com potências regionais e mundiais que integram o BRICS. Agrupamento que visa alargar margens mais autônomas de atuação internacional, de defesa das suas soberanias e que tem se posicionado na direção de um questionamento da legitimidade do ordenamento internacional hegemonizado pelas potências ocidentais.

Uma projeção internacional totalmente abalada com a ascensão de Temer e seus aliados no governo. A temática da projeção mundial brasileira, não se esqueçam, há décadas integra o campo da subjetividade militar nacional.  Enquanto isso, entre outras demonstrações de total despreparo para o exercício das funções, o ilegítimo chama os russos de “soviéticos”.

Um presidente que converte uma potência virtual como o Brasil em “república bananeira”. Um chefe de Estado subserviente aos EUA e refratário ao mundo multipolar que se tem aberto e com certas oportunidades aproveitadas e igualmente criadas pelo País, em especial nos governos Lula.

Essas me parecem algumas hipóteses para as recentes “intervenções” simbólicas de oficiais militares. Em termos comparativos, se elas não estiverem erradas, talvez seja mais fecundo refletirmos sobre 1930 do que 1964. É possível que a tão esquecida, mas importantíssima questão nacional esteja falando mais alto, mesmo que de forma não muito clara.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Redação

13 Comentários

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  1. A esquerda brasileira, Lula e

    A esquerda brasileira, Lula e Dilma não incluídos, não gosta dos temas defesa nacional, soberania, nacionalismo, patriotismo etc. Lula e Dilma foram muito mais longe, por isso mesmo a própria esquerda empurrou Dilma ladeira abaixo.

    Sejamos práticos, não há mais opção. Sou pela inclusão, pela democracia e pela CF88, mas isso só exite se existir um país soberano para redistribuir a riqueza gerada. Sem isso, qq discurso sobre inclusão será só retórica.

    Se for para proteger o pré-sal, para evitar a compra irrestrita de terras por estrangeiros, para proteger nosso Nióbio, nossas Terras Raras, nosso minério, nosso programa nuclear, nosso submarino, nossa Amazônia Azul, o BRICS, um mundo multipolar e um Brasil soberano. Sim estou com Villas Boas.

  2. Se as suas forças armadas

    Se as suas forças armadas realmente têm compromisso com o país, eles iriam eliminar os “juízes” dessa coisa patética que vocês chamam de justiça brasileira, liquidariam a maioria do congresso e senado, fuzilariam traidores do país como José Serra e Michael Temer e depois de feito o trabalho iriam convocar eleições gerais para recomeçar a sua democracia do zero.

    Mas como um dos comentaristas aqui alertou corretamente, eu não acreditaria muito no compromisso dos militares brasileiros com o país.

  3. não gosto de militares

    Da mesma forma que lixeiros, tem coisas que alguém precisa fazer. Mas permitir que saiam cagando regras para os seres diferentes deles, inteligentes? Aí é demais.

    Temos que dizer alto e bom som que os militares estão a cargo apenas de um servicinho que a sociedade lhes imcumbiu de fazer. Tal qual acontece como todos nós outros. O governo deve ser exercido pela conjunção dos vários grupos sociais. Quando um quer prevalecer, está nos dizendo que somos inferiores.

    Eu não aceito! Militares, vão trabalhar! Depois podem aposentar bem e só tirar o pijama para ir falar merda no clube militar. Isto é máximo da tolerância que lhes devemos.

     

  4. Vivemos ou nos colocam a

    Vivemos ou nos colocam a viver uma dicotomia entre o gigante adormecido, fraco, insonso, subserviente, que atende ao capital internacional, e não é de hoje e a visão de um estado capaz de se erguer por conta do esforço e trabalho da sua população.

    Infelizmente me parece que nossa caserna é conivente com a estagnação do país como subserviente à mídia, mais especificamente aos Marinhos.

    Há uma história não contada que é a não aceitação por parte tanto da esquerda que quer resgatar a “concessão” havida nas arbitrariedades do regime golpista de 64 e trazer ressarssimento via declarações de que houve crime, o que sabemos todos que houve. As FFAA não farão esta declaração e aproveitam o momento para como forças obscuras condenar um Zé Dirceu, Genoino, Dilma dentre outros, que elevaram o PT à condição de Partido com capacidade de governança, a criminosos do estado. Pifia as alegações de crimes cometidos. Moro atende a interesses norte-americanos, se aproveita e executa o desmonte do estado nacional, nos levando de volta à financeirização. Já vivemos esta história e vivos aonde nos levou.

    Ambas as partes deveriam repactuar para  bem do país, mas é necessário ter compressão de atualidade e futuro.

     

  5. Vivemos ou nos colocam a

    Vivemos ou nos colocam a viver uma dicotomia entre o gigante adormecido, fraco, insonso, subserviente, que atende ao capital internacional, e não é de hoje e a visão de um estado capaz de se erguer por conta do esforço e trabalho da sua população.

    Infelizmente me parece que nossa caserna é conivente com a estagnação do país como subserviente à mídia, mais especificamente aos Marinhos.

    Há uma história não contada que é a não aceitação por parte tanto da esquerda que quer resgatar a “concessão” havida nas arbitrariedades do regime golpista de 64 e trazer ressarssimento via declarações de que houve crime, o que sabemos todos que houve. As FFAA não farão esta declaração e aproveitam o momento para como forças obscuras condenar um Zé Dirceu, Genoino, Dilma dentre outros, que elevaram o PT à condição de Partido com capacidade de governança, a criminosos do estado. Pifia as alegações de crimes cometidos. Moro atende a interesses norte-americanos, se aproveita e executa o desmonte do estado nacional, nos levando de volta à financeirização. Já vivemos esta história e vivos aonde nos levou.

    Ambas as partes deveriam repactuar para  bem do país, mas é necessário ter compressão de atualidade e futuro.

     

  6. Estariam as Forças Armadas Divididas?

    Talvez existam dois grupos entre os oficiais generais: 1- Os que colocam os interesses do Brasil acima de tudo, sem exceções; e 2- Os que, pelo vício adquirido com a Guerra Fria, admitem colocar os interesses brasileiros em segundo plano, em favor de uma aliança com os EUA. Esses últimos não teriam percebido que, especialmente na nova configuração geopolítica que está se delineando (integração euro-asiática, volta da Rússia como grande “player” e China como primeira potência econômica,…), o Brasil não deveria se alinhar automaticamente com ninguém, mas jogar com todas as possibilidades, visando maximizar o próprio benefício e, subsidiariamente, o benefício de nossos vizinhos (não adianta querer ficar “bem de vida” num bairro de excluídos).

  7. Será?
    Talvez os generais já tenham se adiantado e percebido que a grande indústria armentista do norte, se aproxime cada vez mais do nosso território. Acho que até os militares, serviçais do império, estão ficando assustados.Será que num futuro próximo teremos forças armadas brasileiras por aqui? Será que não dividirão o país?Mas este é o retrato do Brasil:* um povo sem direito a educação, saúde, saneamento básico de qualidades e em breve sem trabalho e direitos trabalhistas, e aposentadoria;* todo o patrimônio do país sendo entregue de bandeja para aproveitadores de todas as partes do mundo;* uma imprensa manipuladora que não informa a verdade;* Polícia que não defende o povo;* Forças Armadas que não defendem a soberania e os interesses do Brasil;* um Ministério Público rebelde que ultrapassa as fronteiras da legalidade;* um poder Legislativo que virou um balcão de negócios, com todos os tipos de interesses, menos os nacionais;* um poder Judiciário que não defende a Constituição e uma Suprema Côrte (última fronteira da legalidade) mancomunada com a facção dos golpistas;* um poder Executivo que… Este, sem comentários.A verdade é que vivemos em um mundo duro e difícil, e não há mais nada para nos defender contra interesses e arrogâncias internas e externas. Estamos virando um amontoado de gente, entregues a própria sorte.Talvez os generais brasileiros e suas tropas estejam mesmo defendendo a soberania e os interesses do Brasil. Talvez.

  8. Discordamos: é fake news!

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    ALERTA: a (muito!) perigosa “Fake News” de “golpe militar” (sic)

    Por Romulus & Núcleo Duro

    – A provocação do General Mourão: “se não forem capazes, através do Poder Judiciário, de barrar Lula, as Forças Armadas o farão”.

    – A sinuca de bico do General Villas Boas, Comandante do Exército: como manter a “legalidade constitucional” tendo de bater continência para um…

    (UNIVERSALMENTE reconhecido…)

             – … chefe de quadrilha??

    – Mourão – a “síndrome do vice” (golpista!) ataca de novo: General Mourão tenta a última cartada para cacifar-se. Ao produzir a “fake news”, avaliou, corretamente, que o “seu” (?) momento era agora…

             – … ou nunca!

    – Decifrando o “mistério” (?) narrativo: quando o (civil…) Ministro da Defesa, Raul Jungmann, para (de maneira estabanada…) mostrar serviço, cobra a punição de Mourão, Villas Boas recusa-se.

    Ora, o Comandante, corretamente, não quis promover o espetáculo reclamado pela mídia – inclusive a “de esquerda”!

    Espetáculo esse…

             – … ANSIADO pelo próprio Mourão (!)

             – Dããããã!

    – Cumpre registrar: o Brasil do(s) Golpe(s) – e do caos “institucional” (sic) dele(s) resultante – deve MUITO ao bravo General Villas Boas. Bem como à sua resiliência cívica e altruísta – inclusive em nível pessoal e, até mesmo, físico.

    – Desastre na “blogosfera progressista”: o único a sacar o “jogo” – e a sinuca de bico – foi Fernando Brito, do Tijolaço. Evidente: ter andado tantos anos ao lado de Leonel Brizola fez toda a diferença.

    – Lamentavelmente, todos os demais blogueiros derraparam feio na nova “batalha de narrativas”. Pior: foram PAUTADOS por interesses de direita (de novo, Senhor!). Desta feita, dos mais perigosos que há: nem mais, nem menos!

    – Destaque, em especial, para a inverossímil análise dessa “nova polêmica” feita por Luis Nassif, no GGN.
     

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  9. Quando o comandante do

    Quando o comandante do Exército declara, em entrevista em rede de televisão de grande audiência, que o problema da América Latina é o “populismo”, eu creio que há razões para que nos preocupemos!

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