Presidente João Goulart: importante e injustiçado líder das esquerdas

Por Roberto Bitencourt da Silva

Uma das ideias mais marcantes na memória construída em torno do golpe empresarial-militar de 1964, especialmente disseminada pela produção jornalística dos conglomerados da mídia, é a seguinte: o ex-presidente João Goulart era temido por setores da sociedade (não-dito: altos e médios), assim como por parcelas das Forças Armadas, por “aproximar-se da esquerda”.

Trata-se de uma ideia, no mínimo, controversa, mas convencionalmente veiculada e aceita, que acompanha as interpretações correntes sobre o golpe, que ora completa 51 anos (1).

Não apenas na grande mídia, mas também em uma miríade de trabalhos acadêmicos – inclusive produzidos por pesquisadores considerados de esquerda –, vemos acentuada a referida ideia. Deliberadamente ou não, ela, de maneira “semi-ingênua”, revela um viés interpretativo que coloca Goulart na condição de um político “oportunista”, que buscou se “aproveitar” do cargo e do momento, em que foi pujante a mobilização popular. Nesse sentido, em respeito às memórias brasileira e do ex-presidente, algumas considerações se fazem necessárias:

1. O partido de Jango (Partido Trabalhista Brasileiro – PTB) foi um agrupamento político de esquerda. Um partido não marxista, mas de esquerda. O que não impede em dadas conjunturas, diga-se, guardar um potencial mais radicalizado que um organismo coletivo que expresse uma orientação marxista. Não raro, esta é apropriada pela intelectualidade brasileira de maneira irrefletida e destituída das devidas mediações, em face do caldeirão cultural europeu, que delineou o pensamento de Marx e demais teóricos sob a sua inspiração filosófica. O marxismo não possui o monopólio das esquerdas, em que pesem as amplamente compartilhadas opiniões em contrário. O movimento guerrilheiro e nacionalista, liderado pelo jovem Fidel Castro, em Cuba (1959), tem muito a dizer a respeito.

2. Importantes lideranças do “falecido” PTB e do trabalhismo, de maneira ousada, defenderam temas caros às esquerdas brasileira e latino-americana, tais como: as reformas agrária, urbana, bancária e tributária; a limitação das remessas de lucros do capital estrangeiro; a geração de emprego e a elevação dos salários dos trabalhadores; a dilatação do mercado interno; a nacionalização e a estatização de diversos setores da economia. Isso desde os primórdios do itinerário do partido, fundado em 1945.

Contribuíram na elaboração e na difusão dessas propostas personagens de proa do petebismo, como Getúlio Vargas, Alberto Pasqualini, João Goulart, Leonel Brizola, Sérgio Magalhães, Fernando Ferrari, Almino Afonso, Elói Dutra, Ruy Ramos e tantos outros. Os temas sublinhados alcançaram repercussão no curso do tempo, por conta do crescimento eleitoral do partido, da sua conquista de maior organicidade e de capilaridade entre os trabalhadores, no regime democrático de 1946.

Longe da trivialidade, as propostas em alusão conseguiram ser incluídas na pauta de discussão pública, norteando os debates políticos e econômicos no país, principalmente nos anos 1960, até a ruptura democrática. O PTB defendeu também uma política externa independente dos interesses estadunidenses. No ápice da guerra fria, com Jango na Presidência, reatou as relações diplomáticas e comerciais com a URSS (1962) e posicionou-se abertamente contrário ao embargo a Cuba.

3. João Goulart dialogava sistematicamente com as lideranças sindicais e buscava representar os interesses dos trabalhadores, com bastante evidência desde a sua experiência no Ministério do Trabalho (1953), no governo democrático do presidente Getúlio Vargas. Era saudado por expressivas faixas da classe trabalhadora e por suas entidades sindicais como um respeitado e legítimo representante das suas aspirações.

4. Ao longo da experiência como presidente nacional do PTB, entre 1952 e 1964, João Goulart empenhou-se em estabelecer relações cordiais e alianças entre o seu partido e o proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), nas esferas sindical e político-eleitoral. Em seu governo à frente da Nação (1961-1964), contou, não sem tensões, com o apoio comunista.

5. O PTB incentivou a participação política da classe trabalhadora, da cidade e do campo. Buscou integrá-la aos processos decisórios do país, bem como preconizou a legitimidade do seu envolvimento na construção da agenda pública. A tensão entre democracia representativa e democracia participativa atravessou o governo Goulart e foi marcante, sobretudo, na atuação de boa parte do seu PTB, que questionava abertamente a legitimidade de um “Congresso reacionário e anti-povo”. Em nenhum outro período da história republicana brasileira os estratos trabalhadores alcançaram tamanha participação nos rumos e nas decisões do governo federal. Parafraseando o ex-presidente Luiz Inácio, “nunca antes na história deste país” – e complementando, nem depois –, as classes populares e trabalhadoras estiveram tão próximas do exercício do poder.

Dessa forma, colocadas as coisas nos seus devidos lugares, de forma alguma é adequado alegar que o destituído presidente João Goulart, em seu turbulento governo, se “aproximou da esquerda”. Como decorrência, ele não usou artifício “demagógico e populista” para se “aproveitar eleitoralmente das massas”, como argumentariam conservadores, liberais e alguns incautos esquerdistas. O ex-presidente Jango constituiu, sim, um dos personagens mais importantes das esquerdas brasileiras. Provavelmente, um dos mais injustiçados.

(1) A título de ilustração, consultar o material memorialístico especialmente produzido pela Folha de S.Paulo, ano passado, sobre o golpe empresarial-militar de 1964. Disponível no  endereço que segue: http://arte.folha.uol.com.br/treinamento/2014/01/05/50-anos-golpe-64/

Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio.

Publicado originalmente no Diário Liberdade.
 

Redação

7 Comentários

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  1. Goulart e os comunistas

    Goulart era um latifundiário. Os comunistas que cercavam João Goulart eram, no geral, os mesmos que haviam cercado Getúlio Vargas e Juscelino Kubitchek – basicamente aquela turminha do Prestes – a diferença foi que Vargas e Kubitchek colocaram os comunistas a seu serviço, ao passo que Goulart colocou-se a serviço dos comunistas. Falta de pulso para a liderança. Goulart dialogava sistematicamente com as lideranças sindicais. O problema começou mesmo foi quando ele quis tratar cabos e marinheiros como se fossem lideranças sindicais. Como você quer que alguém que faça isso não desperte suspeitas de estar tramando um golpe? Se Goulart não estava tramando um golpe, então ele foi uma marionete mesmo.

  2. Liderança

    João Goulart foi um lider imposto pelas esquerdas, diferente do lider que conquista seus liderados. Jango também não foi um lider pragmático. Resultado: foi arrastado pela torrente conjuntural .

  3. golpes

    O golpe militar de direita já estava prometido desde 1950, como reação à eleição de Getúlio Vargas.

    A crise de 1954 – culminando com o suicídio de Vargas – , a tentativa de impedir a posse de JK em 1955 – inviabilizada com o contragolpe do general Lott – e a rebelião militar contra a posse de João Goulart, em 1961 – culminando no parlamentarismo de fancaria – foram ensaios para o golpe de 1964.

    A mobilização política de cabos e marinheiros – alimentada por agente provocador bem conhecido – foi apenas mais um pretexto.

    Indisciplina de praças!

    Façam-me o favor…

    Convenhamos que o oficialato tupiniquim tem uma longa história de indisciplinas.

    …………..

    Aproveitando a efeméride, seguem modestas sugestões de leitura.

    -1964: A CONQUISTA DO ESTADO – René Armand Dreifuss

    -FÓRMULA PARA O CAOS – Moniz Bandeira

    -a trilogia GETÚLIO, do Lira Neto

    -MEMÓRIAS DE UM SOLDADO – Nelson Werneck Sodré

    -1961 – O BRASIL ENTRE A DITADURA E A GUERRA CIVIL – Paulo Markun e Duda Hamilton

    -DENTRO DA “COMPANHIA” – DIÁRIO DA CIA – Philip Agee. 

  4. Replay!!!

    Há algumas semanas critiquei Jango de maneira até desrespeitosa. Me arrependi do desrespeito mas não das críticas.

    Essa é apenas uma análise rasteira olhando apenas para a ‘big picture” e sem entrar nos detalhes.

     

    Vamos aos fatos,  é como analisar lance de impedimento pelo replay. Vamos dar o replay na história!

    UM general golpista resolve marchar contra o governo. Até aí ok. Não era a primeira vez e muito menos a décima em nossa história.

    E o que fez nosso Presidente? Ao invés de ir para o escritório em Brasília ou ao menos para o Rio, ainda centro do poder e para onde as tropas revoltosas se dirigiam, foi para sua fazenda no INTERIOR do RS.

    Quando tentam golpe para remover um presidente, o presidente não precisa ir buscar suas tropas. Ele TEM que buscar as tropas do seu país. Se não o faz…

    O cargo foi declarado vago e estava vago DE FATO! Ele não estava lá, se ausentou! Poque o Poder foi feito para ser exercido. Se vc não exerce, não existe vácuo neste planeta, alguém ocupa o seu lugar. Um político não saber disso é primário. Alguma relação com o PT e Dilma? Bom, não vou mudar de assunto!

    O Brizola teria justificativa para ficar por lá mas nunca, jamais o Presidente da República. Se omitiu num dos momentos mais importantes de nossa história. E as consequências deste fato perduram até hoje!

    A maior parte dos brasileiros desconhece que havia uma frota dos EUA em nossa costa. Não sabem e te olham como se vc fosse maluco ao contar! Isso é concequência direta da decisão de Jango!

    Os golpistas jamais(até hoje! fingem que não existem apesar dos obvios movimentos “democráticos”) foram enfrentados de frente em nosso país. Tivemos um presidente que enfiou uma bala na cabeça e outro que saíu fugido aparentemente em pânico.

    Será que ninguém venceria os golpistas? Será?

    Nunca saberemos! O Golpe foi mais fácil que tirar doce de criança! O golpe mais barato dos EUA. Sucesso absoluto! molezinha!

    Jango na minha opinião seria um dos melhores presidentes de nossa história mas sua inabilidade política nos levou a 30 anos de ditadura. Ele perdeu, foi derrotado e isso é um fato inconteste!

    Dito isso,teria tido o meu voto…antes do replay!

  5. Nossos grandes “heróis”: um

    Nossos grandes “heróis”: um fugiu, outro se matou, o terceiro fundou o partido que hoje serve de plataforma para Cristovam “nulidade” Buarque.

  6. Defesa de João Goulart

    Sempre defendi João Goulart aos que, mesmo de esquerda, o condenam e o chamam de fraco ou ainda o consideram pouco inteligente. Faz pensar em parte o que dizem hoje da presidente Dilma. Lembro de um documentario, em que Goulart consulta os ministros sobre as possibilidades de resistir ao golpe do dia 1° de Abril de 1964 e afora um so, todos foram unânimes a lhe dizer que eles não teriam como combater as forças armadas, sob o comando dos generais golpistas. Goulart não teve apoio de seus ministros para resistir e de nenhum outro setor da sociedade brasileira d’então. O unico a conclamar com força a resistência a qualquer preço foi Leonel Brizola, que era jovem à época e sem experiência sobre a real capacidade das FFAA naquele momento. Como podia João Goulart resistir apenas com Brizola e um so ministro a seu lado ?  Ha ainda muita injustiça sobre o dificil governo Goulart e sua atuação em meio a um Pais dominado pelo conservadorismo da TFP.

    1. As forças armadas não se
      As forças armadas não se rebelaram contra o Governo. Um general se rebelou.
      Concordo que da fazenda no RS ninguém daria apoio mesmo.
      Este é o ponto do meu comentário.

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