Um enredo previsível

“Dizem por aí que os realistas só olham a parte má das coisas. Mas que querem? A parte boa da sociedade quase que não existe. De resto é bom a gente acostumar-se logo com as misérias da vida. É melhor do que o indivíduo, depois de mergulhado em pieguices, deparar com a verdade nua e crua” (Graciliano Ramos).
 

A sessão que ora transcorre no Senado para cassar o mandato da presidente Dilma Rousseff (PT) – é para cassar, não para julgar, muito menos avaliar o processo – caracteriza-se como mais um espetáculo dantesco. A hipocrisia dos parlamentares e demais personagens associados ao golpismo não tem limite. Nauseante.

A presidente Dilma está sendo defenestrada por uma verdadeira gangue, vende-pátria, autocrática, que despreza qualquer imagem de democracia, de respeito à vontade popular. Com todas as limitações do processo eleitoral brasileiro, se tem uma coisa que a maioria do eleitorado não apoiou e não apoia é um programa privatizante e de desmonte da nação.

Infelizmente, um programa levado a cabo pelo último governo Dilma, mesmo que com certa timidez. Já bastante intensificado (será ainda mais), como era de se esperar, pelos agrupamentos reacionários e golpistas que fazem oposição à presidente legítima. O vice Michel Temer (PMDB) à frente.

O “brinquedo” chamado governo é concebido pela plutocracia – representada especialmente pelo PMDB, por DEM, PSDB e demais satélites – como propriedade sua. Assim, buscando incrementar a acumulação capitalista e realinhar as relações exteriores do país, resolveu retomá-lo dispensando intermediários como o PT.

Quem está assistindo às discussões travadas no Senado tem a possibilidade, uma vez mais, de observar o comportamento e os valores que norteiam os representantes do poder oligárquico e multinacional no país. Digo poder e não governo, pois habitualmente tratam-se de realidades distintas, por muitos confundidas.

Quem tem o capital tem os meios de comando. As formalidades, mesmo da enclausurada democracia representativa brasileira, não precisam sequer ser atendidas. A legitimidade fica a cargo dos conglomerados de comunicação, que fazem uma horrenda e odiosa ginástica verborrágica e de enquadramentos.

Isso posto, cumpre assinalar que não surpreende o furor golpista e entreguista dos espúrios agrupamentos políticos que hoje monopolizam o governo federal. Menos ainda a facilidade com que escanteiam uma presidente eleita, o flagrante desprezo com os votos da maioria. Trata-se de um enredo previsível.

Desde o ano passado, em meio às movimentações golpistas e fascistas, a tônica dos apelos feitos particularmente por setores associados ao PT era e tem sido a “defesa da democracia”. Ora, não existe democracia em abstrato, que flutue sobre o tempo e as condições materiais e subjetivas do grosso da população.

A renitente pregação pela “democracia” não sensibiliza nem sensibilizou o povão, a ampla maioria da população, porque a dureza do cotidiano é grande, com caveirão, assassinatos oficiais, desapossamento da terra e da moradia, parcos empregos e salários, substantivo subemprego, escassos ou violados direitos, inclusive individuais.

Menos ainda tal apelo tem capacidade de sensibilizar à revelia de estímulos simbólicos e políticos ao envolvimento das camadas populares e trabalhadoras nos processos decisórios, que permitam a geração do sentimento de coparticipação nos rumos do país. Esse envolvimento não se cria da noite para o dia, é matéria do cotidiano, de trabalho político.

De modo que a ex-presidente Dilma, com o PT e demais aliados ditos progressistas, tendo definitivamente alienado qualquer laivo de base popular após a vitória eleitoral de 2014 – mesmo com um programa para lá de tímido – só poderia deparar-se com a cena em vigor.

Isto é, enfrentar uma correlação de forças extremamente desfavorável, sem bases populares significativas que permitissem e permitam ao menos fazer com que as velhas forças entreguistas e oligárquicas colocassem as barbas de molho.

Os únicos protestos existentes são, em especial, formados por estratos pequeno burgueses, de estudantes, professores, artistas. Todos fora do “expediente” de trabalho. Por mais louváveis que sejam – participei de alguns sob o influxo do desespero e da angústia –, convenhamos, nem arranham o capital, as estruturas de poder oligárquico e multinacional no país.

Reclamar, como muitos têm feito, que a presidente foi “abandonada”, por “ingratidão” e “passividade” das classes populares e trabalhadoras, é injusto, não é razoável e não permite minimamente a compreensão do que se passa.

A maior parte do movimento sindical é controlada, em suas cúpulas, por agrupamentos ligados ao petismo e a seus aliados. Mesmo assim, não raro os dirigentes alegam que não podem promover uma greve geral, de cima para baixo. Isso está certo.

Mas, em meio ao fenômeno de alheamento, há que se considerar que, de um lado, anos a fio tais setores sindicais abdicaram de uma mobilização e de um trabalho político-educativo, subordinando-se à correlação de forças, para não criar dificuldades às escolhas do PT e seus satélites.

De outro, o amplo subemprego e o perfil precarizado e de baixa densidade salarial e formativa, que caracterizam o mundo do trabalho nacional, como não foram, nem de longe, superados pelos governos Lula/Dilma, não oferecem motivações maiores para paralisar a produção e arriscar os empregos. Uma dura e triste realidade. Não foram, nem serão interpelações etéreas pela democracia que vão mudar tal cenário.

O legado social e de país na esteira do petismo é tão frágil que as intenções golpistas que mais preocupam aos setores progressistas e às camadas trabalhadoras dizem respeito a direitos trabalhistas e a iniciativas nacionalistas (como as empresas estatais) que remontam a conquistas, lutas sociais e ações políticas de um passado já remoto.

Direitos e instituições, que mesmo antigas, dão certos traços de civilidade à sociedade brasileira e preservam alguma capacidade de soberania e controle nacional em torno da geração dos nossos excedentes econômicos.

O que os golpistas vende-pátria querem é intensificar a transferência internacional dos nossos excedentes, por meio da alienação/privatização do patrimônio público. Como em seu martírio denunciava o presidente Getúlio Vargas, as “aves de rapina” querem que o povo não seja livre, que esteja submetido à escravidão da miséria e da superexploração do trabalho.

Vejamos o que vem depois da mal dissimulada ruptura institucional, com a cassação do mandato da presidente Dilma. Isso em termos de mobilização e organização popular de resistência às ações de submissão integral do país aos ditames do capital internacional e à perda de direitos sociais. Porque o que vem e já está vindo da ação dos entreguistas no governo golpista e no parlamento federal já se sabe muito bem o quão danoso é.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Publicado no Diário Liberdade.

Redação

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