Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
[email protected]

Dominó de Botequim, por Rui Daher

Dominó no Brasil

O piano da mulher do Osorinho não precisou ir a penhor. Até seria aceito. Grana alta, mesmo considerando o desconto pelo armazenamento. Usamos o valor do frete para recusar. Lorota. Na verdade, evitamos a tortura que seria toda a semana aquela ferrenha defensora dos tempos da Inquisição nos perguntando quando o objeto seria resgatado.

O professor Filgueiras foi definitivo:

– Perda menor, o certo era o Osório penhorar a mulher, não o piano.

– Entalada numa daquelas prateleiras de aço ficaria bem guardada, mas gorda como está, o frete seria ainda mais alto do que o do piano, disse o Netinho.

Ao Rolex do Buqué e ao crucifixo de ouro da paróquia se somaram joias de todos os tipos, antiguidades de prata, ouro e platina, uma gravura de Aldemir Martins, uma série numerada de Di Cavalcanti.

O militar da reserva do Exército, General Prudêncio, como o chamávamos batendo continência, insistiu em levar um violino que herdara de um avô salazarista que lhe garantiu ser um Stradivarius.

Nonato João, mais tarde, nos contou que o perito da Caixa Econômica, brincalhão, disse ser um “Estraga Vários”.

Cada um levou seu objeto pessoalmente e recebeu sua cédula. Os orçamentos iniciais permitiam pensarmos em sofisticar a reforma ou não nos endividarmos tanto. Vai que as novas leis, a cada dia promulgadas na cidade, tornasse o dominó jogo de azar e o proibisse em botecos. Ou que, assim como fumar, bebidas alcoólicas só poderiam ser ingeridas ao ar livre ou em regabofes da nobreza.

Virgínia nos convenceu a pegar tudo a que tínhamos direito:

– Em todas as obras, sejam reformas, puxadinhos, estádios para a Copa do Mundo, ginásios e pistas pan-americanas e olímpicas, os orçamentos sempre estouram. Podem aparecer imprevistos, mesmo quando nenhuma autoridade ou empreiteiras estão envolvidas.

– Uai, e se sobrar algum, resgatamos alguns dos objetos penhorados. Sempre tem um de nós precisando mais, falou o Magrão. Até pensei em fazer uma pista de skate naquele terreno baldio ao lado.

– Meu filho, tira o capacete da cabeça e bota no lugar a joelheira. Quem sabe areja teus pensamentos.

Dona Zilá, nunca abandonou a ideia de que o Magrão deveria praticar hipismo, mesmo tendo sido criado em Parelheiros.

Por estar reformado, pouco serviço, e ter noções muito fortes de hierarquia e acompanhamento de cronogramas, por unanimidade, o Generalíssimo foi apontado para comandar os trabalhos executivos até o final e inauguração do projeto.

Claro que Serafim e Netinho ficariam com a criatividade. A arquitetura, o ambiente, espíritos, essências, odores e sabores que lá sobreviveriam, escondidos, a disputar a vontade do freguês do dia seguinte.

Buqué me chamou do lado:

– Ruizinho, ninguém vai se entender. Esse milico vai querer levar tudo a ferro e fogo. O Serafa, se antes já era cheio de susceptibilidades, imagina agora. E o Netinho, forte como é, além da sua fidelidade de cão ao português, em segundos, seria capaz de transformar o Prudêncio num soldadinho de chumbo corneteiro.

– É pode dar merda.

– Por que não o professor Filgueiras?

– Teórico demais. Vai querer reunião todos os dias. Certezas. Consensos.

– Então, vamos em frente com o milico, mas convém perguntar se o Padre Luís topa intermediar eventuais conflitos.

– Ótimo! Ninguém melhor do que um discípulo de Francisco interessado em recuperar o crucifixo.

– Tenho a impressão que tudo vai dar certo, mas estou apreensivo.

– Com o Botequim?

– Não, com o dominó. Hoje deve estar acabando o 12º Campeonato Mundial de Dominó, em San Juan de Puerto Rico. Não recebi nenhuma notícia do Manoel.

– Eram muitos participantes?

– Mais de mil. Vinte e um países.

– Uma coisa é certa. Disputaram pelas centenas de mesinhas que se espalham pelo Brasil, sem ninguém entrar de carrinho em ninguém, dar chutão para o alto e ver se alguém pega a bola, sem cuspir na cara do adversário.

– Nem “técnico-professor” ganhando 500 mil reais por mês e “peladeiro” descendo do ônibus do clube com fones de ouvido de dois metros de diâmetro.

– Acho que vou te deixar triste, mas é melhor contar logo.

– Em agosto, nada me espanta. Mês de meu aniversário.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Ô, Rui, covardia mês de agosto, véspera do meu setembro e

    ainda com João Bosco em companhia “matadora” !

    Num tem pra técnico professor nenhum. “Quero me separar!”

  2. Amigo Rui!

    Sempre que penso numa notícia não tão boa, logo me vem a ansiedade de sabê-la, equacioná-la e resolver o que há para resolver. 

    Mas a vida não é – nem sempre é – assim …  Há que se respeitar o tempo das coisas. 

    Sabes bem que, qualquer que seja a notícia, estarei por aqui aguardando a saber no que posso ajudar, se negativa; e em sendo uma daquelas bem boas, no que vou me alegrar junto.

    Estarei por aqui Amigo. Aguardando notícias e com a pá na mão, para o que for preciso!

    Obrigada por mais esta peça domingueira. Ontem não pude estar aqui, mas meu coração esteve neste Dominó!

    Abraço da Anna!

     

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador