Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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DOMINÓ DE BOTEQUIM, por Rui Daher

Charles Bukowski

Talvez a inquietação da semana passada se deveu ao fato de, passados mais de 30 dias da obtenção dos recursos para a reforma do imóvel na caixa de penhores, pouco de concreto havia acontecido para a abertura do “Dominó”. Implicâncias. Uns querendo mandar mais do que os outros. O Brasil vem sendo treinado para isso.

Soube que a doutoranda em Ciências Políticas, Virgínia, com mais do que menos em sua gravidez, deu um bofete na cara do “general” Prudêncio. O revide foi detido pelo bojo do violão sete cordas de Nonato João na cabeça do milico.

Segundo ela, houve bolinação histórica com negros. Para ele, apenas leve carícia na barriga, curioso em saber se o nenê viria em posição de continência.

– Nunca vi nenê jurar a bandeira no traseiro de alguma mãe. É na frente, na frente, rosnava o atacado marido.

Dei-me conta de que o mal-estar do domingo passado, como confessado aos Osorinho e Padre Luís, não tinha a ver com crise, falta de chuva, nem mesmo com os olhares de ódio que Dona Alzira me lançava a cada gole de cerveja.

Sim, o suicídio de Neide Celebração pesou, mas o motivo principal era a ansiedade com a lentidão brasiliana para abertura do botequim.

Ligo para o Netinho.

– E aí, cara? Tudo bem com você e o Serafa?

– Tudo.

Por que a secura? E a empolgação de um mês atrás? Afinal, eram responsáveis pela criatividade, a decoração em moldes tradicionais dos botecos, repetitiva como as barbearias ou leiterias dos anos 1950.

Nunca, porém, invenções chiques, temáticas, engraçadinhas, como as que desfiguraram o Maracanã, o Riviera, templos de boleiros, biriteiros e filósofos.

Vejam se pode. Visito locais com cardápio de cachaças. Onde já se viu? Que merda é essa? Querem imitar frescos rituais viníferos?

Se você não tem uma marca definitiva de cachaça e a ela é fiel na medida de seu bolso, pode aceitar gentis ofertas e sugestões de amigos. Fora isso, o cardápio deve estar, atrás do balcão, em prateleiras espelhadas e garrafas enfileiradas à sua escolha.

O aficionado deve, então, levantar a bunda de onde está, passar para dentro do balcão, sempre pedindo licença ao dono do pedaço, sentir o peso da garrafa, olhar a coloração do líquido, ler atentamente o rótulo, conhecer procedência e teor alcoólico. Destampar para cheirar o líquido não é educado. Nessa hora, uma pitada de lembrança do escritor norte-americano Charles Bukowski pode inspirar a escolha.

Tomada a decisão, o morrinha não oferecerá um gole para o santo. O humanista irá lembrar-se deles ávidos, e permitirá que redistribuam gozos aos necessitados.

– As coisas do botequim estão andando?

– Não muito.

Outra resposta seca. Lembro-me do domingo em que dividimos as tarefas. Pelos dotes trazidos da organização militar, ao “Generalíssimo” foi dado o comando executivo. Ideia minha, tempos em que me achava um executivo molóide e via prevalecer os berros dos durões. A opção pelo Filgueiras me pareceu fraca, teórica. Embora íntegro, muito conciliador.

Fizemos do padre Luís o responsável pela área financeira. Pagamentos e controle de saldos. O indiscreto Buqué perguntou-lhe se nunca tinha feito algum curso na Cúria do Vaticano. A negativa fez-nos ir em frente.

Músico e poeta, Nonato João ficou responsável pela instalação do som e escolha do repertório. Houve polêmica. Eu, por exemplo, era contra a presença de aparelhos de TV. Não há desgraça pior do que restaurantes com eles ligados em noticiários que ninguém ouve, mas também não tira os olhos. Fui voto vencido: e os jogos de futebol pela TV? Concordei. Desde que sem o som.

Virgílio, o funcionário do “Estadão”, disse que tinha direito a um exemplar diário do jornal e o encaminharia para leitura no botequim. Virgínia fez pouco caso e disse que contraporia ao legado dos Mesquita as edições quinzenais da revista Caros Amigos, “a primeira à esquerda”. No dia, o pau esquentou: Prudêncio sugeriu aproveitar para indicar o local dos vasos sanitários.

Volto ao Netinho:

– Soube que houve algumas confusões e as obras não estão andando como o desejado.

– Andando? Esqueça. Acabou. Se alguém não puser regra, autoridade e trabalho, a abertura vai ficar mais velha do que os Lusíadas. Aquele militar é uma besta. Adivinha a cor de tinta que escolheu para pintar as paredes.

– Verde-oliva.

– Claro! Não é um absurdo?

– Sei lá se faz muita diferença.

– Quer música ao vivo. Sabe com quem? A fanfarra dos cadetes do quartel do Ipiranga.

– Bem, isso ninguém aguenta.

– Ou você, o Osório e o Dr. Tetê tomam conta do projeto, ou eu e o Serafim estamos fora.

– Calma, Netinho. Um monte de coisas fez a gente ficar um tempo sem se reunir, acompanhar o trabalho. Não podemos desistir. O mais difícil já temos, a grana.

– E a graça de Deus, mediada pelo abençoado Padre Luís, que também pisa na bola.

– Como?

– Outro dia queria fazer Serafim devoto de Lourdes quando o português é Fátima.

– Poderia ser Guadalupe …

– Você brinca, mas padre deveria saber as razões da fé. Só sei que ou você e o Osorinho tomam conta de tudo isso ou vai dar em nada.

– Vou me aconselhar com o Manoel Vieira, conversar com o Osório, ligar para o Tetê. Aliás, estive com ele, em Piracicaba, na Botecaria, na quinta-feira passada, e disse-lhe que estava tudo bem.

– Sem querer, mentiu.

– Netinho, o Serafim não demonstra vontade de falar comigo ou com os demais?

– Não. Anda estranho. Para tudo o que desaprova, exclama: Quintal! Quintal! Quintal!

– Uai, pirou? Você já perguntou por quê?

– Perguntei. Ele faz um olhar ainda mais furioso, e continua a repetir: Quintal, quintal, quintal.

– Estranho. Quando falar com o Tetê, vou perguntar se ele tem alguma interpretação para o fato.

– Eu pesquisaria num hospício. Aproveitaria, também, para descobrir entre as maldades do pelourinho por que eu tenho de aguentar esse português maluco? Todos caíram fora. Logo, logo, vou também.

– Calma, Neto. Faz um favor. Diga ao Serafim que eu preciso falar muito com ele. Só nós dois. Vou aonde ele estiver.

– Será dito. Provavelmente, ele proporá um quintal. 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

5 Comentários

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  1. Rui,

    ansiedade; este deve ser o sentimento dominante em teus leitores. É o meu. Este projeto precisa decolar; sair dos planos e dos sonhos. Estou contigo: há assuntos que só uma boa conversa “sem filtro” pode esclarecer. Amigos que andam se estranhando precisam se ajustar; amizade é coisa séria. Perdi uma agorinha; joguei uma isquinha – informação que ninguém mais tem; de repente todos comentam? – mordeu, perdeu. For good. Essa tal de delação premiada fez escola e está pondo a perder as pessoas… 

    Domingueira: solzinho, banho, um belisco e venho checar as novidades no Dominó. Faço isso com a trilha acompanhando – sugestão da Odonir – e a leitura ganha um colorido ainda mais bacana. Hoje o tom é saudoso e de um certo desalento. O projeto está enrolado Rui, mas o Botequim é um Lar de que você, o dono, cuida e onde abriga os amigos. Precisa estar inteiro nessa. Lembra quando você disse que o Botequim seguiria mesmo que só comigo, Odonir e Raí – seus três fiéis leitores? Nós contamos contigo para nos manter unidos em volta desta mesa, por muitos, muitos, muitos domingos. Senão aqui, onde mais eu iria neste GGN, que anda árido, violento e pouco receptivo? Faz, dono e senhor do castelo que és, esse pessoal conversar e se ajustar em favor do Bem maior: o “Rui Bar”!  Até domingo !

    1. Anna,

      provoco, aguço. Velho hoje, aprendi na escola – de padres, hein? – o quanto era feio delatar. Ninguém falava em premiar, mas punir. 

      Explico o desalento, aliás, mencionado em seu comentário: a aridez dos temas deste GGN e a violência dos comentários.

      Isso pega. Poderia escrever mais. Sobre o quê? Repetir as mesmas obviedades que cercam Mendes, Janot, Cunha, Dilma, Temmer? As infantilidades das demais folhas e telas cotidianas? Por que eu, mais um, se centenas se dedicam a isso? 

      Falta paciência. Se a tivéssemos, veríamos 90% dos assuntos, esses. Você publica Fernando Pessoa ou heterônimo, e corre o risco de alguém lembrar Portugal deixando a União Europeia. Odonir posta Jobim e Vinícius, e inominado critica o que faz Eduardo Paes pelas Olimpíadas. O Raí fala de seu amor tricolor e ouvirá os pecados da corrupção na CBF. Se eu escrever um texto sobre a vida de um frentista de posto de gasolina, a Lava Jato prevalecerá.

      Daí que prefiro não ser chato e logo fazer nossa turma se entender para o Dominó começar.

       

      1. Primavera

        Rui, é isto. O Dono do Bar – e da crônica – dá o tom. É Primavera e a passarinhada começa a se assanhar; finalmente agosto acabou. Há um canto mavioso no ar, o canto da chegada em casa, da nidificação. Te desejo sorte no projeto e vou acompanhar todos os domingos. Se precisar de mim, já sabe, é só chamar. Abraço.

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