Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Jubileu de Ouro, por Rui Daher

Jubileu de Ouro

por Rui Daher

Há quatro dias tento escrever este texto. Não sai. Tentei de cara limpa e não. Tanto fez. Engastalho, como mulheres se arrumando para saírem de casa. Sei. Quando sair será uma merda, mais forçada e dolorida do que as costumeiras.

Em 22 de fevereiro de 1967, um funcionário do Departamento de Pessoal da Serraria Americana Salim F. Maluf assinou a minha primeira Carteira de Trabalho. Pronto. Estava empregado. Função, kardexista. Assustei-me. Fazia pouco tempo deixara 12 anos de colégio católico. Como seria a transposição? Tanto faria, precisava ganhar algum.

O x no lugar do c, me aliviou. Não se tratava, pois, de aderir à crença espírita, mas sim de ficar num enorme armazém da Avenida Francisco Matarazzo, São Paulo, em meio a toras de madeiras, vigas aparelhadas, ripas, caibros, felpas e fiapos, o zunir incessante de serras, controlando estoques num arquivo com fichas “entrada-saída-saldo”. E ai de mim se o meu controle não “batesse” com o físico, quando das cubagens e contagens.

Alguns familiares e amigos muito amados, hoje, me chamam de “turco sem-vergonha”. Um jeito sorridente de ir levando.

– Ô Doutor Paulo, teria sido o seu treinamento?

Creio que não. Naquela época, mandava na empresa o seu irmão mais velho, Roberto, bela pessoa, empresário mesmo, como São Paulo se fez e hoje vergonhosamente abandona para se desindustrializar.

Depois do colégio beneditino, dois anos de cursinho para medicina sem aprovação na USP (não admitia nada que não fosse “a Pinheiros”), e a morte de meu pai, Fritz. Filho único de mãe viúva, restava-me trabalhar no que fosse. Kardexista, então.

Parêntesis: vamos brincar de ministro do Supremo Tribunal Federal: em tempos informáticos, será que ainda haverão, hão, hau-haurão? Serão eles cidadões?

Como não poderia gastar mais um ano esperando por novo vestibular para medicina, naquele mesmo ano, em julho, passei no vestibular da EAESP, Escola de Administração de Empresas da FGV. Enfim, resolvi dar o rabo para o que me traria grana mais rápido. O curso, à noite, me permitia dar entrada e saída nas madeiras sem, na época, saber de onde vinham. Seriam das florestas plantadas na cara-de-pau do Dr. Paulo?

E assim comecei. Até completar este Jubileu de Ouro, 50 anos de empregado. Na maior parte do tempo, estive protegido pelo Doutor Gegê e sua CLT. 13º, férias, aviso-prévio, seguros isso-e-aquilo, tempo de casa, fundo de garantia, dias livres com a fêmea ao nascimento dos filhos.

Foi só crescer em cargos, funções e reponsabilidades, que, aos poucos, foram me enganando com consultorias, diretorias, estatutos, terceirizações.

– Vai ser melhor! O teu líquido será maior!

Nada percebi nas ejaculações, mas convenciam-me da globalização, do passadismo celetista. Grudaram em meu rabo terceirizações, crises, competitividade, outsourcing, estrutura horizontal.

Ao cabo e ao rabo, lá estava eu assinando avais, fianças, e encarando a todos sem ser dono de porra nenhuma. Só queriam economizar nos encargos trabalhistas.

– Ah, mas o líquido que você receberá será maior. E agora você é vice-presidente!

Ganancioso de merda, esquecido de Marco Maciel e Cláudio Lembo, fui aceitando. Alguns podem ter-se dado bem; eu, sempre confiante de que “tutte sono brave persone”, Não são.

Cinquenta anos atrás. A palavra que mais dá forma a este jubileu de ouro. Os verbos haver ou fazer não me dariam o mesmo prazer desse passado. Foi, ficou para trás, envelheceu, tempos que não voltam, como não os quero que voltem. Que permaneçam fechados numa caixa inviolável, mínimos, como retratos que vão amarelando, esmaecendo com o tempo.

Hoje, tenho certeza, de que de todas as felicidades que tive em vida nenhuma está nos registros lá iniciados. Somente frustrações e vilanias. O demais que foi conquistado não precisou daquele registro. Eu que os transformei em felicidade. Se sim, dar-me-iam prazer, lembraria de bons momentos, que impossível não terem existido, mas pífios, misturados, sempre, sempre e inquestionáveis desprazeres, traições, frustrações, que não tirei deles em si, mas do dinheiro, que me deram para usufruir de alguma felicidade, nesse planeta chamado capital.

As músicas que ouvi, os filmes a que assisti, as viagens que fiz, os filhos que tive, a família que formei, os amigos, os amores todos, as passeatas, todas as canas – líquidas e sólidas – e a oportunidade de estar aqui, escrevendo mal para vocês, foram escolhias minhas. Que se foram, pois. Logo caio fora!

22 de fevereiro de 1967. Era Carnaval? Se não era, ficou sendo. O meu.

 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

4 Comentários

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  1. Jubileu….

    Até tu, Rui? Mais um que cospe no prato que comeu? Desta eu não sabia. Bendita Eucatex. Bendito Paulo Maluf que constuiu São Paulo como conhecemos. E produziu tucanatos e petralhadas para se esbaldarem no orçamento público com a única desculpa que conhecem,  que colou e otários creem: a culpa é do Maluf !!!! Carandiru da chacina do Fleury? A culpa é do Maluf !!! Pedrinhas e Alcaçuz de FHC, Lula e Dilma: a culpa é do Maluf !!! 4 horas de congestionamentos por 60 Km de passeio em estradas de pedágios extorsivios? A culpa é do Maluf !!! Vida prospera, viagens, familia, blogs, textos para influenciar patrícios, amizades de alto escalão, de intelectuais, influentes, propriedades, liberdade, acertos erros, olhar para tudo e poder agradecer por ter sido tão abençoado. Tanta meritocracia nisto. Seus textos e a história da sua sua vida, além de divertirem e informarem, explicam muito de como a situação do país se perpetua e como pensam as elites intelectuais, politicas, ideológicas e financeiras deste país. Deixam claro porque estamos assim. Parabéns pelo Jubileu. A culpa é do Maluf !!! abs.

  2. boa Rui! Às favas os pequenos bloqueios e verbalize seu Eu…
    … O resultado pode não ficar grande coisa (ótimo), mas conforme a vida avança, sobra cada vez menos tempo para a perfeição, então faça o fizer, do jeito que sabe, do jeito possível, mas faça (bom)!
    (e danem-se os detalhes e as críticas dos presunçosos! rsrs)

    Ponto, parágrafo!

    Dois pequenos detalhes sobre “ficou ótimo”…

    1) o ótimo atrapalha o bom (a busca de um resultado “ótimo” atrapalha vários resultados “bons”, e isso é contraproducente);

    2) o único Perfeito foi morto pelos que não eram.

    3) para (eu) ser um pouco contra-corrente (anarquista light), não estava indexado no “dois pequenos detalhes”, mas dane-se… é importante mencionar: 3) ainda bem que vc mudou de site e de “amigos” (do “terra” para o Carta Capital).
    Não sei se vc seguiu meu “conselho” de alguns anos atrás, qdo mencionei que me recusava a ler o “terra magazine”, mas foi uma boa mudança (aliás, quem sou eu para aconselhar alguém? apenas dou palpites no que acho mais plausível, que gere maior ganho social, e fazer outras pessoas pensarem fora da caixa… se convergir para o bom senso, para benefício da maioria da sociedade, ótimo; se não, ótimo tbém, mas o pedágio a pagar por todos nós será maior se muita gente pegar o caminho errado).

    Então, de novo, dane-se tudo o que pensarem sobre o que eu escrevi, mas consegui escrever porque vc escreveu, e assim nossos pequenos universos interagiram de alguma maneira, e talvez ambos tenhamos aprendido com isso.

    Masss… como colunista formal, sugiro a vc ter um pouco de controle sobre uma publicação, sobre o vocabulário, sobre a lógica do artigo que vc publica (minimamente “começo, meio e fim”, ou “hipótese, tese, conclusão” ou “tese, antítese e síntese”, sem ser sofismático, lógico!).

    Caso misture um pouco de “porralouca” com “coisaséria”, algumas pessoas mais “lerdinhas, chatinhas, formatadas” podem não entender e não gostar… Eu, particularmente, gosto dessa “mistureba”, pois adoro entrelinhas, ironias e “tiradas” em geral, mas acho que a grande maioria das pessoas é meio lenta nisso, e ignorância aliada a preconceito é uma merda… para a própria pessoa e para seu (dela) entorno… só gera conflito, mal ententendido e confusão, e ela ainda acha que todo esse “rolo” não parte dela mesma…

    Um pouco de informalidade em um artigo formal até que vai bem, mas usado umas poucas vezes e bem sinalizado (quase explicando q vc está brincando ou sendo irônico).

    Se quiser ser um pouco (ou muito) “porralouca”, adote um pseudônimo, um e-mail “descaracterizado” que vc não conta pra ninguém, e saia “metralhando” as besteiras que abundam por aí, e o que abunda, não falta… rsrs…

    E como vc mencionou, viva o carnaval, para tudo acabar na terça-feira! rsrs…

    1. completando o contexto…
      Caro Rui,

      Antes de mais nada, peço desculpas se estou sendo “entrão”, mas como vc colocou um texto um pouco mais pessoal, achei que vc não se importaria de um comentário tbém mais pessoal de minha parte… como escrevo relativamente rápido, meus comentários ficam um pouco (muito? rs) grandes e, às vezes, nem me dou conta se estou sendo detalhista ou intrusivo.

      Fiz um comentário acima, e talvez pela pressa (vida “moderna” é uma porcaria) ou pela “soberba” do intelecto, fui um pouco (ou muito, sei lá…) afoito (ou no popular, descuidado)…

      Comentei (dei palpites… rs) sobre o formato e conteúdo de textos, coisa e tal, passei por leitores não muito atentos ou perspicazes, mas não abordei um detalhe que lembrei depois de postado, mas se mostra (talvez, e para mim; sei lá os outros… rs) pertinente, útil para o leitor “situar” os assuntos abordados:
      — que tal dar uma temática (grandes grupos) aos seus textos?

      tipow… (lógico q vc colocaria o nome ou tema que quiser)…

      “Rui entre amigos” (papo de boteco, conversas informais, ficção ou reais, “causus”, histórias anedóticas ou coisas afins, coisas não muito sérias, mas q vc julgue interessantes abordar)

      “Rui agrobusiness” (avaliações de políticas agrícolas; discussão e comparação de estatísticas da área; inovações, pesquisas, cuidados ou denúncias de agrotóxicos; cuidados com alimentos transgênicos, segurança alimentar, políticas de seguridade ao homem do campo ou pequeno agricultor ou criador; agricultura familiar; logística agrícola, feiras e exposições; influência dos governos municipal, estadual e federal para o agrobusiness, etc)

      “Rui pensando na vida” (reflexões, novos pontos de vista pessoais, opinativos, moral da história de algum fato passado ou recente, vontade de falar o que der na “telha”… rs… — como estou eu fazendo agora –, visão política, visão de país, etc)
      O texto de hoje, poderia ficar, por ex., assim: “Reflexões: Jubileu de Ouro” por Rui Daher

      peça uma opininão ao amigo Nassa sobre as bobagens (sugestões) que mencionei… rs…
      vai que tem alguma lógica, como a série “Xadrez” dele…

      ou se não gostou de nenhuma sugestão, boas…
      vou continuar lendo os seus textos do mesmo jeito!

      e, novamente, desculpe-me se pareci pedante ou intrusivo… garanto que minha idéia de comentar passou longe disso.

      ‘bração! (interiorano falando “abração”… rs)

      1. Let’s rock,

        Apenas hoje li seus comentários. Vez ou outra esqueço de ver se há comentários novos em postagens passadas. Nada de “entrão”, apenas interação entre dois textos bons.

        Muito do que você comenta é pertinente, mas o meu estilo, aqui no GGN, é assim mesmo. Meio mistureba. É que são tantos os textos postados com formalidade de começo, meio e fim que, para mim, se tornam meio repetitivos e tenho preguiça de lê-los, daí que nos meus dou uma “acordada” no meio deles para fugir da monotonia. Isto, quando estou tratando de assuntos sérios. No mais é galhofa mesmo, ficção, personagens, como foi e terminou no Dominó de Botequim.

        Quanto à CartaCapital, lá evito mais a mistureba, embora sempre procurando escrever em linhas crríticas.

        Infelizmente, minha profissão não é escrever. Se fosse, poderia dedicar mais tempo para melhorar. Mas suas críticas foram muito bem-vindas.

        Bração

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