Da série Biografias Requentadas: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho

Por Sebastião Nunes

CAPÍTULO I: REALISMO UNILATERAL

            Na rua que hoje se chama João XXIII, em Vila Rica do Ouro Preto, morava nos áureos tempos uma estranha senhora mamaluca, bastante feia, desdentada e de voz estridente. Teria seus 45 anos, ar melancólico e ombros tristemente encurvados, sempre metida num casaco imundo de algodão grosseiro, que usava dia e noite, fosse inverno ou verão.

            Debruçada na janela dos fundos de uma casa modesta, tal senhora namorava o centro luminoso da bela vila, no qual ouvidores tropeçavam em sonhadores, vigários frequentavam usurários, amantes desfilavam diamantes.

            Debruçada na janela da frente, odiava os morros arredondados, imaginando uma época em que aquela rua fosse povoada por gente e não por tatus; por meninos e não por gambás, ratos e passarinhos. Sim: sua casa fora construída com a frente para os morros e os fundos para a povoação, contingência da tormentosa topografia. Sim: como tanta gente, também ela sonhava o impossível sonho de riqueza e poder.

            Lá embaixo, Vila Rica resplandecia 1. Decerto o ouro rareava e sabia-se que um tal de Tiradentes fora enforcado. Mas também é certo que a mamaluca pouco se lixava para tudo aquilo. Só o brilho da riqueza ostensiva lhe entrava pelos olhos amendoados.

 

CAPÍTULO II: NATURALISMO CONDENSADO

            Naquele último dia de dezembro de 1799, enquanto o aleijado roncava no quarto, a mamaluca mostrava-se profundamente irritada. O sol endurecia as nuvens. O dedo do Itacolomi criava uma diagonal invisível entre a terra e Deus. Os telhados brilhavam e a mulher imaginava, de sua janela pobre, toda a alegria das gentes lá embaixo. Eles, os felizes. Eles, os ricos. Eles, os belos. Eles, os eleitos. E amaldiçoava o aleijado que roncava no quarto.

 

CAPÍTULO III: ROMANTISMO CÍNICO

            O tal aleijado, deitado num velho catre fedorento, gemeu alto. Com um movimento de ódio saudavelmente humano (– Por que esse infeliz não morre de uma vez?), a mamaluca deixou a janela e entrou no quarto escuro. Lá fora, puft! – a cidade sumiu.

            – Água! – pediu o aleijado, contorcendo a boca.

            Era baixo e forte esse aleijado, o rosto duro deformado pela doença que já lhe comera os dedos de uma das mãos e, como a marca dos eleitos, enfeitava as feridas arroxeadas da mão esquerda. Deitado de costas, um travesseiro suado sob a cabeça, não aparentava a idade que tinha, cerca de sessenta anos. Seus pés também haviam sido comidos pela ávida doença, quase com certeza uma sífilis, apanhada nos puteiros de Vila Rica ou Sabarabuçu, Matozinhos ou São João del-Rei, quem sabe no Arraial do Carmo? – e eram tantos becos e cafuas, e tantas mamalucas, cafuzas, mulatas e negras lindas, lindas, lindas! Quem resistiria, quem?

 

CAPÍTULO IV: ROMANTISMO PROLETÁRIO

            Embora lentamente comido pela doença deformante, ele trabalhava duro quando a dor não incomodava muito. Exceto na mão esquerda, que às vezes doía desesperadamente, quase não sentia nada: uma coceirinha aqui, um arranhar de unhas pontiagudas ali, de vez em quando súbito espetar de inesperadas agulhas, ao acaso.

            Então, quando a dor permitia, ele trabalhava lá, na resplandecente cidade de ouro e pedra, de pau e lama, de ócio e poder. Mas, naquele final de ano e de século, sem trabalho e sem dinheiro, só possuindo de seu a dor fulgurante, tudo o que fazia era gemer deitado, comer uma sopa de fubá com torresmos e couve rasgada 2, enquanto a mulher resmungava, e seus escravos vagabundeavam lá embaixo. Sim: namorando crioulinhas lindas, pegando biscates, bebendo até cair nas ruas pedregosas, sendo bem mais felizes do que ele. E depois dizem que a liberdade serve para alguma coisa!

 

CAPÍTULO V: MODERNISMO TROPICAL

            Alguns anos antes, esse rude aleijado estivera no Rio de Janeiro, não se sabe se a trabalho ou se levado por um punhado de ouro e pelo gosto de vadiagem. Mal suportando agora o intenso calor, lembrava-se das ondas, indo e vindo, o mar infinito enchendo-lhe os olhos de espanto e de luz. Voltando, afundara-se entre morros e saudade.

            Na metade do ano novo, convidado a trabalhar em Vila Nova, ele deixaria mais uma vez a luminosa cidade para esculpir imagens de sonho e pedra, de madeira e sangue, na igreja nova da cidade vizinha. E também deixaria, para nunca mais voltar – como se pudesse fugir da dor –, tudo aquilo: catre, molambos, mulher, torresmos, couves e gambás.

 

CAPÍTULO VI: NATURALISMO BURGUÊS

            O aleijado bebeu a água pensando em cachaça e devolveu o copo à mulher, sem agradecer. Com um resmungo, a mamaluca voltou à sua janela de sonho e de ódio. O aleijado suspirou, reclinando-se no travesseiro sujo. Agora calmo, embora a dor persistisse latejando, sabia que logo estaria longe da vida daquela estranha criatura, tão feia quanto pobre. Então ela ficaria sozinha, com seus sonhos de beleza e riqueza, sem saber que ele, naquela e em tantas outras cidades, criava imagens que todos admiravam, embora sempre reclamassem um pouco do exagero das formas e dos olhos esbugalhados, como se vissem, de repente, com nojo e terror, a vida.

            Mas, para o aleijado, era exatamente aí que estava a beleza: na reprodução de um mundo louco, criado pela imaginação doentia de um deus grotesco.

 

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1 Vila Rica, valha a verdade, não era feita para causar boa impressão aos viajantes estrangeiros. Ao próprio Saint-Hilaire, tantas vezes benévolo ao referir-se às coisas de Minas, não agradaria o aspecto tristonho e melancólico da antiga capital do distrito aurífero, o ar de abandono que apresentavam suas casas, quase todas construídas de barro e mal conservadas, o que tudo anunciava a diminuta fortuna de seus moradores. Nem mesmo os estrangeiros tinham o recurso de achar ali uma estalagem medíocre. Calculava-se a sua população em 8.000 habitantes. (FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve. Belo Horizonte: Itatiaia, 1950)

 

2 O administrador, o intendente e os feitores comiam conjuntamente o trivial, a saber: ao almoço, feijão preto com farinha de milho e um pouco de toucinho frito ou de carne de sol cozida; ao jantar, um pedaço de porco assado; na ceia, hortaliças cozidas e um bocado de toucinho para lhes dar gosto. Água, como bebida comum. Em dias de festa, ou quando recebiam pessoas estranhas, servia-se, às refeições, galinha cozida. Alimentavam-se os negros, ao almoço e à ceia, com farinha de milho misturada com água quente, o angu, propriamente dito, no qual punham um naco de toucinho, e ao jantar davam-lhes feijão. (FRIEIRO Eduardo, op. cit.)

Sebastiao Nunes

2 Comentários

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  1. Belo mesmo. Pungente e
    Belo mesmo. Pungente e familiar. Couve rasgada. Quem ainda conhece isso num mundo em que um simples cafe e pao de queijo originais desapareceram e a maioria nem conhece.

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