Um Brasil como nunca, mas com feridas a ser lambidas e espaços de convivência a ser construídos.

Num domingo qualquer, qualquer hora, ventania em qualquer direção, sei que nada será como antes, amanhã.

São versos da belíssima “Nada será como antes” de Milton Nascimento. Vieram-me à mente ao relembrar o domingo, 26/10/2014.

Talvez ainda não nos tenhamos dado conta que existe um novo Brasil após a reeleição de Dilma Rousseff. Um Brasil como não existiu antes. No passado, em situações limites como a que vivemos no biênio 2013-2014, a “solução” para o enfrentamento entre duas correntes políticas distintas veio através da ruptura democrática.

Pela primeira vez em nossa história, a solução de uma situação política extrema se dá com o respeito à ordem constitucional. E esse é um Brasil como nunca.

Malgrado os radicais insanos que chegam a pregar a divisão territorial do Brasil, o país segue em frente, ainda aparentemente despercebido do enorme salto democrático dado. Como em um aforismo de Ibrahim Sued: “os cães ladram e a caravana passa”.

Não que o processo eleitoral esteja isento de perdas e danos e de riscos, de feridas a serem lambidas. E da necessidade de invenção, ou aceitação, de novos espaços de convivência, nosso maior desafio.

Mas, deste instante e deste lugar, já me arrisco a fazer algumas observações.

O TSE sai enormemente fortalecido. Não foram poucos e não sem motivos os que falaram em fraude, falaram em golpe. A vitória do PT por tão pequena margem de votos, diante do poder das forças que lhe eram contrárias, e a enérgica e tempestiva ação em relação ao seja lá que nome se dê praticado pela Revista Veja às vésperas da eleição não deixaram dúvidas sobre a sua capacidade e autoridade em conduzir o processo eleitoral.

O PT ganhou? Se dúvida. Neste segundo turno, sua coligação teve literalmente contra si todas as outras, a exceção do pequeno PSOL, que, mesmo assim, se declarou neutro. A imprensa, o empresariado, o setor financeiro e malucos de toda ordem se uniram contra ele. Se saiu vitorioso, é porque teve a favor de si um povo maior do que todas essas forças. E isso é vitória.

Mas o PT foi surpreendido também.

São… São Paulo meu amor. São… São Paulo quanta dor”.

Em São Paulo, seu berço, o PT praticamente não existe mais. Como foi duro estarmos de repente tão sozinhos, tão expostos, como exigiu firmeza declarar-se paulista e petista.

PT – como foi possível que o povo pobre, que o povo operário o rejeitasse? Quando esse povo não o apoiou antes? Eis a principal reflexão que todos os de esquerda precisamos fazer. A partir daí, será possível entendermos o que se passou no sul e no centro-oeste.

Não, para 2018 não é Lula. Ele tem uma missão maior.

Talvez estejamos assistindo o fim de um ciclo, o fim do ”lulismo”. E isso não é ruim. Não é o fim de Lula, por óbvio, é o fim da imagem linda do operário que chegou a presidente ou do fincador de postes que iluminam o Brasil. O fim dessas imagens não se dá por que elas se desvanecem e sim porque, vitoriosas, cumpriram sua missão. Vejo Lula como o construtor do PT socialdemocrata alinhado com o que houver de progressista na nossa sociedade. Vejo Lula como o construtor do PT pós-Lula. Ainda não sei como, mas sinto que é por aí.

A grande mídia ganhou? Ganhou e perdeu. Não derrubou, nem fez o presidente, sai exaurida e mais desacreditada. Mas ainda é um poder enorme e assustador de persuasão.

A internet ganhou? Tanto quanto há ganhos em um campo de batalhas.

Aécio ganhou? Obteve a maior votação desde a chegada do PT ao poder no governo federal.

Não, Aécio perdeu. Perdeu porque não ganhou, perdeu porque teve todas as forças da oposição ao seu favor, porque teve a tragédia a seu favor e isso não foi o suficiente. Quando isso ocorrerá novamente?  Mas, principalmente, Aécio perdeu, porque perdeu Minas. Quem conhece Aécio não vota em Aécio. Enquanto não desfizer essa maldição, ou castigo, Aécio não ganhará.

O PSDB sai das eleições novamente dividido e velho. José Serra, Alckmin, Tasso Jereissati serão esse os líderes da mudança? Matarão se para escolher o candidato à presidência em 2018. Trairão o escolhido.

De Marina e do PSB talvez seja mais generoso nada falar. Perderam perdendo.

E, por fim, Marilena Chauí ganha onde a nação mais perdeu. Como não lhe dar razão na leitura que fez da nossa classe média:

“A classe média é uma abominação política porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta e é uma abominação cognitiva porque é ignorante”?

Como isso se mostrou verdade nestas eleições, ainda que, paradoxalmente, dessa mesma classe média comece a resurgir uma revivida, jovem e ainda tímida parcela dizendo não ao preconceito. São maravilhosos, são ainda poucos e, assim, a cara com que a classe média saiu na foto é feia.

Meninas branquinhas, loirinhas com dentes perfeitos e uma boca imunda e um coração mesquinho. Jovens adultos igualmente brancos, com nível educacional superior, vestidos com roupas de grife como em uma propaganda de shopping center e agindo com a truculência e a boçalidade das nossas abomináveis torcidas organizadas em dia de clássico.

Sempre foram assim? Não, morreram nos porões da ditadura e inundaram as praças nas “Diretas Já” para construir um Brasil democrático. Quando e por que mudaram?

Não é o caso de não terem identificado o PT como um partido que defendesse o seus interesses. Isso até seria entendível. Não é o caso de lhe fazerem oposição. Foi a forma como essa oposição se deu, transbordante de ódio cego. Adotaram a máxima fernandina – “pode ser qualquer um, desde que não sejam eles”. E esse “eles” é o PT, mas também são os nordestinos ou qualquer um que lhes seja diferente. Que grande contribuição desse sociólogo para o nosso quadro social. Sem dúvida, não é necessário esquecer apenas o que ele escreveu. Necessário e profilático.

Uma classe média que participa de uma odiosa luta de classes, mas acusa Lula de jogar pobres contra ricos. Filiam-se aos ricos, sem deles obterem o seu quinhão e sem perceber que são tão somente pequeno-burgueses, em sua maioria. Tão próximos do proletário, tão distantes. Não se sentem beneficiados pelo crescimento econômico e social da era Lula-Dilma, talvez não tenham sido beneficiados mesmo. Assusta-lhes ver que os pobres se aproximam, odeiam os por isso. Desejam que lhes sejam restabelecidas suas vantagens comparativas. Esperam que a não luta de classe se dê pelo pobre aceitar passiva e pacificamente seu lugar de inferior. Nossa luta de classes é invertida.

Essa talvez seja a nossa maior perda. Não, com uma classe média assim, não construiremos uma nação. Um mercado consumidor, com certeza, mas não uma nação.

E, no entanto, eles estão nas ruas gritando por algo. Deram lhes ódio, disseram lhes que era esperança,  que era o caminho da mudança. Eles acreditaram, ódio embriaga, fascina.  Mas não lhes deram mais nada.

Uma vez, o PT tomou a bandeira da socialdemocracia que o PSDB usava como engodo, tomar essa classe média que o PSDB hoje usa como massa de manobra é o seu grande desafio. Mas para isso, o PT tem de deixar de se orgulhar de em seu governo os ricos terem ganhado dinheiro como nunca.

Redação

4 Comentários

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  1. Muito boa análise, Sergio

    Muito boa análise, Sergio Saraiva. Parabéns.De fato, fiquei com um vazio indefinido no peito ao não reconhecer amigos e parentes que sempre estimei. Como posso ter sido tão cego ao tipo de pessoas que se revelaram? Aderiram ao discurso mais sórdido possível, à desumanidade e ao elitismo vazio, pueril, em suas roupas de grife. Isso ocorreu num simples embate eleitoral. Bastou isso para que revelassem a face mais escura e sombria de suas almas. Pergunto: e se fosse numa guerra? Que atrocidades seriam capazes de cometer em nome dessa ética enviesada que defendem? Começo a entender Hanna Arendt e a sua definição de banalização do mal. Minhas perdas, em relação a alguns antigos relacionamentos sociais, é irreparável e irrecuperável. Não posso manter relação com quem xinga o nordestino, discrimina o pobre, faz pouco do negro e espanca o gay. A diferença dessas atitudes e do que tenho por um mínimo de sentido de humanidade formou um abismo entre mim e essas pessoas. Não estou me referindo a quem votou contra o PT. Isso é democracia. Mas democracia não se realiza em cima do ódio e do preconceito. A quem desbordou desses limites um muro ergueu-se diante de mim, Intransponível. Não são perdas, mas ganho na qualidade. Fico com menos, porém melhor.

    1. Fé cega e faca amolada.

      Lucas 12:51-53

      “Vocês pensam que vim trazer paz à terra? Não, eu digo a vocês. Ao contrário, vim trazer divisão.

      De agora em diante haverá cinco numa família divididos uns contra os outros: três contra dois e dois contra três.

      Estarão divididos pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra”.

      Foi realmente assustador ver o ódio estampado nos olhos de uma pessoa que antes me enviava mensagens dizendo que Jesus me amava.

  2. Muito boa a análise. Não é
    Muito boa a análise. Não é hora de jactar-se com a vitória. É hora de juntar os cacos e criar um grande país contra a vanguarda do atraso.

  3. Concordo com essa visão. Pos

    Concordo com essa visão. Pos em palavras o que estamos sentindo. Temos que refundar o PT, chacoalhar, mudar muito nosso partido.

    “Como foi duro estarmos de repente tão sozinhos, tão expostos, como exigiu firmeza declarar-se paulista e petista.”

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