20 anos da morte de Dener, o gênio do Canindé

Belo texto o de Thiago Arantes, abaixo. Também me lembro como se fosse hoje do dia da morte dele. Era dia do índio, eu estava na terceira série. Ouvi no rádio com a minha mãe, a caminho da escola. Mas esperei chegar até minha sala p/ chorar quietinho na minha carteira. Foi a primeira vez que eu lamentava a perda de quem eu não conhecia de perto. Eu o vi, contudo, várias vezes no Canindé. De certa forma, foi ele quem me fez torcer pela Lusa, quando eu tinha 5 anos, naquela campanha espetacular no Campeonato de Juniores de 91 – quando ia para o estádio pelas primeiras vezes, levado pelo meu pai (nas tardes de Domingo, às vezes com a família toda, saindo da casa dos meus avós no Jaçanã, ouvindo, no caminho, Fiori Giglioti), e jogava cascas de amendoim nas carecas dos velhinhos lusitanos, emocionados com o gênio e indiferentes à minha peraltice. Nunca vi coisa igual. Talvez, nem os velhinhos, que pelo menos tiveram Ivair, o príncipe do futebol, quando Pelé era rei. Mas eu curti, o pouquinho que deu, o craque, nessas memórias infantis que são um pouco translúcidas, mas que não vão se apagar definitivamente.E hoje, vejam só, está fazendo 20 anos. Curiosamente, duas décadas depois, a querida Portuguesa enfrenta a maior crise da sua história – nenhuma novidade o azar ou o apito historicamente inimigo, mas sim o golpe branco do tapetão, profissionalizando o vilipêndio do poder econômico-feudal contra os clubes pequenos. A minha origem portuguesa talvez me autorizaria a desejar um retorno sebastiânico de um Dener Augusto de Souza pra tentar salvar o time da extinção, mas o melhor que poderia esperar, a essa altura, seria simplesmente não levar a sério o espetáculo meramente venal que se tornou o futebol de hoje.

http://espn.uol.com.br/post/403973_o-brilho-eterno-de-dener

Foi ele quem me ligou e deu a notícia. “Cara, o Dener morreu”.

Como assim, morreu? Eu tinha 11 anos e nunca havia perdido ninguém desde que me entendia por gente. Ninguém da minha família, nenhum amigo, ídolo, nada.

“Morreu, foi num acidente de carro, acabou de passar na TV”.

Era 1994, a internet ainda não era isso que é hoje, o negócio era esperar de frente para a TV em busca de novos fatos. Foi isso que fiz. Ele me ligou, de novo.

“Cara, ele morreu. Não adianta ficar olhando para a TV, não vão dizer que ele não morreu. Vem aqui pra casa.”

E fui. Atravessei a rua, gritei na frente do portão marrom – a campainha era uma convenção desnecessária – ele saiu com a camisa do Vasco, chinelo de dedo, uma fita VHS na mão.

Fomos para a sala, TV com videocassete embutido, home “teacher” e não sei mais o quê. Ele era rico, mas quando jogávamos bola na rua, deixando pedaços de pele no asfalto e sonhando com um futuro que nunca alcançamos, éramos iguais. (Mentira, ele era muito melhor, jogava nos infantis do Goiás, canhoto, habilidoso, dizia que eu seria um bom volante, mas com 11 anos ninguém quer ser volante, com 11 anos a gente quer ser tudo o que talvez nunca consiga ser; mas, volante? Sai fora!)

“Cara, ele morreu. Mas olha isso aqui.”

Reprodução/NetVasco

Dener, com a Taça Guanabara de 1994
Dener, com a Taça Guanabara de 1994

A fita VHS tinha gravados os melhores momentos de um jogo de poucos dias antes. A memória me apaga o adversário, mas é possível que fosse o Flamengo. Talvez o Fluminense. (O Google me salva e diz que era o Fluminense, final da Taça Guanabara)

Dener, com a camisa do Vasco, fez o inferno na defesa adversária. Eram uns 8 minutos, um compacto que ele havia arrumado sei lá onde, mas certamente já estavam gravados antes da morte do jogador que mais gostávamos de assistir.

“Cara, ele morreu. Mas ele era bom demais, ele não podia morrer.”

Vimos a fita de Dener durante uns dias. Depois, a vida seguiu, dias depois veio a morte de Ayrton Senna, e de repente o mundo estava todo estranho, morrendo gente que nos inspirava, que vida era aquela?, era isso que chamavam de adolescência?, para o ônibus que eu quero voltar a ser criança.

Mas ônibus não parou. Esses ônibus malditos que não param. 

E num final de ano, em 1997, três anos e meio depois que ele me contou sobre Dener, o telefone tocou outra vez.

Ainda bem me lembro daquela tensão estranha na voz da minha mãe. Uma tensão que eu nunca tinha visto, sentido, escutado. Do outro lado da linha, a mãe dele. Moravam do outro lado da rua, não tinha essa de ligar. Se ligou é porque deu merda. A ligação entre as mães acabou, e a minha veio falar comigo.

“Thiago, vem cá, preciso de contar uma coisa”. Ele estava andando de bicicleta e foi atropelado por um ônibus. “Está em coma, parece que é estado crítico”.

Eu já era experiente com estado crítico, nunca tinha visto ninguém em estado crítico sair numa boa. Mas, algumas semanas – talvez um mês, dois? – depois, ele saiu. Deixou o hospital, voltou para casa, e lá fui eu no portão marrom. Desta vez, tive de tocar a campainha.

Ele se lembrava de mim, da nossa amizade, de muitos dos jogos que ganhamos e perdemos naquele campo de sonhos e de asfalto. De outras, não. O lado esquerdo estava um pouco paralisado, a boca meio torta, mas era ele, vivo, inteiro.

“Tente falar com ele sobre coisas de que vocês gostavam”, aconselharam-me as duas mães, a minha e a dele. E, diante da chance de conversar de novo com alguém que eu pensei que nem poderia mais ver, assuntos não faltaram.

Partidas memoráveis, campeonatos “Inter Ruas”, Super Nintendo, Top Gear, Strike Soccer, Mega Drive, Sonic, a banda que nunca tivemos porque eu não tocava nada, as meninas da rua que começavam a virar mulheres. De algumas coisas ele se lembrava em detalhes; em outras, os nomes fugiam, ele fazia força, mas nada parecia vir.

Arrisquei falar sobre Dener.

“Dener? De qual rua?”

Dener talvez fosse de todas as ruas, mas não era aquela a resposta que eu imaginava. Perguntei à mãe dele se ainda havia alguma fita VHS por ali, ela disse que não sabia, mas que estavam todas numa caixa, guardada não sei onde, coisa e tal.

Insisti sobre Dener.

Dener, do Vasco. Aquele que fez uns golaços quando jogava na Portuguesa, aquele que jogava demais, que era craque, mas também era louco, e talvez por isso fosse craque. Dener dos dribles improváveis e das jogadas que nos faziam rever uma, duas, dez vezes aquela fita VHS, na televisão que tinha videocassete embutido, lembra?

“Ah!… Eu lembro desta televisão.”

Vinte anos depois daquele abril de 1994, já não sei mais por onde ele anda. Mudei de rua, de cidade, de estado, de país. Ele mudou de religião um par de vezes, entrou numa faculdade, e na última vez que nos encontramos, há uns 12 anos, estava de um lado da calçada, chutando uma bola de futsal em um golzinho de ferro do outro lado.

A perna esquerda não tinha mais a precisão de outros tempos; então ele chutava de direita, mesmo. Fiquei ali por uns 5 minutos, falamos um pouco da vida e ele propôs um desafio. Dez chutes; eu com a canhota, ele com a direita. Acertei sete. Ele, nove. Ele sempre foi muito melhor do que eu.

No final, nos despedimos, marcamos um outro desafio que nunca aconteceu e cada um tomou seu rumo.

Não perguntei sobre Dener; não seria justo. 

Não se lembrar de Dener deve doer demais. 

Redação

2 Comentários

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  1. Taça Guanabara é tão somente

    Taça Guanabara é tão somente o primeiro turno do Campeonato Fluminense (Carioca). Portanto o único título profissional que o Dener ganhou foi com o Grêmio, onde ele amadureceu e fez uma temporada esplêndida, no entanto, sempre esquecida.

    O título foi de campeão gaúcho de 1993. Quem viu jamais esqueceu. Jogador maduro, profissional, vencendo frio, chuva e zagueiros mal-intencionados. O Grêmio não consegui segurar o craque e ele rumou pro Vasco, onde morreu no ano seguinte.

    Até hoje me lembro da Seleção do Tetra homenageando o Senna (o que é justo), mas esquecendo do Dener. Como senti falta dele naquela Copa. Dener teria brilhado muito na carreira. Neymar não joga a metade do que o Dener jogou.

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