Um pouco mais sobre o Ato Médico

De volta ao Ato Médico

Na quinta-feira do dia 11 de julho de 2013, depois de 11 anos de tramitação no governo, a presidenta Dilma sancionou a lei nº 12.842, conhecida como “Ato Médico”, que regulamenta o exercício da medicina (Fonte: Diário Oficial da União, de 11 de julho de 2013). Com um total de dez vetos, a promulgação foi recebida com insatisfação por senadores e pela categoria médica, mas celebrada pelas demais categorias e entidades profissionais da área da saúde (Fonte: Agência Senado, de 11 de julho de 2013). As justificativas aos vetos, publicadas no Blog do Planalto, ressaltaram pontos considerados polêmicos do projeto, alguns deles já comentados em artigo anterior do observatório (Fonte: Jornal GGN, de dois de julho de 2013). As problemáticas referem-se a três eixos considerados fundamentais, por serem pretendidos como atividades privativas de médicos, a saber: o diagnóstico, as prescrições terapêuticas e a gestão da saúde.

No presente texto, pretendemos trazer para o debate os aspectos ressaltados, por meio de algumas reflexões sobre o tema. Portanto, o enfoque será sobre os vetos aos artigos 4º e 5º da referida lei, levando-se em consideração o inciso que versa sobre psicopatologia que, no entanto, não sofreu veto. Neste artigo, novamente, chamamos atenção para a importância do reconhecimento profissional, da regulamentação da medicina e da necessidade de haver subsídios materiais suficientes e condizentes ao seu exercício profissional. A intenção, neste ínterim, manifesta-se no anseio por estimular o diálogo capaz de fomentar a formação de nossas opiniões sobre o tema do diagnóstico e das terapêuticas, estendido às outras especialidades não médicas.

Responsabilidade de quem?

Afinal, quem será o responsável por um diagnóstico supostamente mal feito ou por uma má prescrição terapêutica? Sobre essas duas perguntas, inicialmente, pretendemos chamar atenção para os seguintes atributos valorativos, um “mal diagnóstico” e uma “má prescrição”. O que confere a um diagnóstico ou a uma terapêutica, os qualificativos de bom ou mal? Seriam suas possíveis consequências? A morte, por exemplo? Na possibilidade de respondermos afirmativamente a essas questões, remetemos a um segundo problema relacionado e sinalizado no início de nossa primeira pergunta, isto é, o da responsabilidade. Vamos trazer um pequeno exemplo, hipotético, para ilustrar o problema. Uma paciente deu entrada em um hospital com fortes dores na garganta que fora anteriormente tratada por um curandeiro. A paciente morreu dias depois de ter sido internada. Este breve fragmento, sem qualquer detalhamento, incita à reflexão acerca da responsabilidade sobre a morte da paciente. A responsabilidade seria do curandeiro que prescrevera banhos e rezas? Da paciente que acreditou na possibilidade de cura pelo feiticeiro? Da medicina que não pôde curá-la?

Para além de qualquer consideração sobre a “eficácia simbólica”, que não pretendemos abordar especificamente neste texto, as questões e o exemplo anteriormente expostos se justificam em razão de a categoria médica pretender revogar os vetos presidenciais e tornar o diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica como atividades privativas de médicos (Fonte: Folha de São Paulo, de 12 de julho de 2013). A insistência neste ponto do projeto da lei, que constava no pretendido primeiro inciso do artigo 4º, tem como apelo, justamente, o cotidiano desses profissionais, de situações em que pacientes são diagnosticados e tratados de maneiras consideradas equivocadas, levando, muitas vezes, à irreversibilidade dos casos[1].

A razão diagnóstica em medicina encontra respaldo e fundamento por meio da realização da escuta das queixas dos pacientes, de anamneses somáticas, de exames clínicos e laboratoriais, que têm como objetivo a detecção de um possível problema que possa ser essencialmente orgânico, causado por alterações somáticas, ou seja, no/do corpo e que possam ser compreendidos como sendo a(s) causa(s) do(s) sintoma(s), da(s) doença(s) e do sofrimento do paciente. Para isso, em sua clínica (ao se debruçar sobre um paciente), visa reconhecer sinais clínicos característicos que permitam a realização de um diagnóstico de uma doença concebida dentro de uma tradição específica, descrita e referenciada em manuais como o CID e os DSMs.

Para retomarmos nossa questão inicial, voltemos à paciente com dores na garganta e que fora diagnosticada, ao menos inicialmente, de forma diferente. O que queria essa mulher? Uma lei poderia ter evitado o pior? Os desenvolvimentos dos conhecimentos científicos poderão dar cabo às ilusões, servindo enfim como locus da verdade? O caso pode servir de paradigma para refletirmos sobre a questão diagnóstica. Afinal, o que se busca com um diagnóstico tem relação com a verdade. Essa relação pode ser dada, por exemplo, quando uma única área supõe deter “O” conhecimento sobre “As Doenças”. Podemos dizer que o feiticeiro trazia a sua verdade como sendo, por exemplo, a do seguinte tipo: “A senhora sofre dos males do passado”; enquanto que um médico poderia trazer a sua da seguinte forma: “A senhora sofre de um câncer na laringe”.

Você tem fome de quê?

Cabe ressaltar, contudo, que a realização diagnóstica do curandeiro encontra respaldo em um conjunto de saberes particulares, geralmente socialmente compartilhados, assim como faz a própria medicina. É por meio de um conjunto de saberes que também a psicologia, assim como a psicanálise, faz um diagnóstico e, a partir disso, realiza ou propõe um tratamento. Portanto, o que deve ficar claro é que existem formas distintas de saberes sobre o sofrimento humano, suas causas e seus devires. Nesse mesmo sentido, uma única área da saúde e manuais de doenças estão longe de encarnarem “O” saber sobre o assunto.

É no interior desta problemática que chamamos atenção para o campo da psicopatologia, pois, ela também, está longe de ser um campo homogêneo ou afeito exclusivamente à medicina. A psicopatologia também não se restringe aos manuais. Trata-se de uma disciplina autônoma, desde meados do século XX, e que serve de fundamento teórico para diferentes práticas terapêuticas. A medicina, como no caso da especialidade psiquiátrica, propõe-se a realizar seus diagnósticos e suas terapêuticas privilegiando fundamentalmente o aspecto orgânico do ser humano. Mas não há, a princípio, nisso, qualquer problema. Não é a melhor nem a pior. Devemos, portanto, ter cuidado com valorações dessas ordens, sendo mais coerente, pois, encaminharmos a questão para o que consideramos ser fundamental: pode ser bom, mal ou tanto faz para “aquele” sujeito. Em outros termos, podemos retomar a música do Titãs e perguntar: “Você tem fome de quê?”. Isso porque, no campo em que verdades se digladiam, pode-se efetivamente perder aquele que sofre.

Reconhecemos que há limites do saber estruturado?

Não podemos deixar de admitir o desenvolvimento progressivo de saberes e tecnologias, assim como os limites de qualquer forma de saber estruturado e socialmente compartilhado que acabam por impor desafios (Campos, 2002). À medida que pode vigorar uma lógica de alienação, fragmentação e o tecnicismo nas práticas de saúde, é preciso ressaltar que, no campo da saúde, para além da dimensão biológica, é enriquecedor incluir as dimensões subjetiva e social. Por isso, caminhar por uma perspectiva multiprofissional é desejável na permeabilidade das instituições, com gestões menos hierarquizadas e equipes voltadas à construção e efetivação das políticas públicas. Saberes e práticas distintas estão atravessados por múltiplas forças e interesses de grupos da sociedade, mas não podemos prescindir da existência de programas que empreguem forças para uma atenção integral à saúde (SUS) e que podem ser verificados em muitos serviços de saúde com a participação de profissionais de diversas áreas.  

O universo dos cuidados se amplia e se complexiza na contemporaneidade, demandando visões plurais em que a potencialidade teórica e clínica dos estudos, pesquisas e serviços tenham o vigor necessário para lidar com desafios que não podem ser prorrogados, exigindo de todos os seus participantes, incluindo seus usuários, uma construção de responsabilidade coletiva e condições institucionais favoráveis à qualidade e abrangência dos serviços.           

Referências

Agência Senado. Senadores defendem derrubada de vetos presidenciais ao Ato Médico. Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/07/11/senadores-defendem-derrubada-de-vetos-presidenciais-ao-ato-medico. Acesso em: 11 de julho de 2013.

Blog do Planalto. Dilma sanciona com vetos Lei do Ato Médico. Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/veja-as-razoes-do-veto-parcial-ao-projeto-do-ato-medico. Acesso em 11 de julho de 2013.

Blog do Planalto. Razões dos vetos ao projeto que “Dispõe sobre o exercício da medicina”. Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/wp-content/uploads/2013/07/Raz%C3%B5es-dos-vetos.pdf. Acesso em: 11 de julho de 2013.

Diário Oficial da União (DOU). Atos do Poder Legislativo. Lei. n. 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina. Presidência da República. Brasília-DF. Publicado em: 11 de julho de 2013.

Folha de São Paulo. Conselho de medicina de SP chama vetos a Ato Médico de “declaração de Guerra”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2013/07/1310535-conselho-de-medicina-de-sp-chama-vetos-a-ato-medico-de-declaracao-de-guerra.shtml. Acesso em: 12 de julho de 2013.

Jornal GGN. Por que o ato médico pode fazer mal à saúde? Observatório de Saúde Mental, Drogas e Direitos Humanos. Disponível em: http://www.jornalggn.com.br/grupo/observatorio-de-saude-mental-drogas-e-direitos-humanos. Acesso em: 2 de julho de 2013.

Campos, G. W. S. de. A Clínica do Sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2002.

   [1] Soma-se a isso a justificativa de que, em função da formação em medicina ser maior que a de outras graduações em saúde, um médico deteria maior conhecimento no assunto. Entretanto, esta última afirmação não encontra o respaldo suficiente na realidade de muitos graduandos e pós-graduandos, seja em termos qualitativos ou quantitativos, na medida em que se apreende que as formações não se restringem necessariamente à aquisição de diplomas ou certificados, ou seja, dão-se prioritariamente no âmbito da continuidade formativa, tanto teórica quanto prática, inerente ao campo em constante transformação dos conhecimentos. Tendo como refutável essa última justificativa, voltemos ao nosso problema inicial.

*Adriana Simões Marino é psicóloga e Denise M. Cardoso Cardellini, psicanalista

Redação

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