As caravanas: para Chico e Camus, o mediterrâneo também é aqui

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Sugerido por Vania
 
Por Caio Jesuss Granduque
 
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O lançamento recente de “Caravanas”, novo disco de Chico Buarque, provocou alvoroço à altura da grandiosidade da obra. Para além da algazarra catilinária presente nas redes sociais em virtude de um verso de “Tua cantiga”, um certo frisson tomou conta dos suplementos culturais dos jornais com o reconhecimento por inúmeros críticos musicais de que veio à luz mais um trabalho digno do gênio do artista.
 
“As caravanas”, em particular, última canção do álbum, impressiona e se revela como autêntica obra de arte. Ao promover uma tensão heroica entre a recusa e o consentimento da realidade, o equilíbrio entre a crítica social e a estética inerente à criação artística, Chico leva a sério a constatação de Nietzsche de que “nenhum artista tolera o real” e a explicação complementar de Camus, para quem, por essa razão, “nenhum artista pode prescindir do real”.[2]
 
O poeta toma como matéria-prima o explosivo conflito social que teve curso nos últimos verões cariocas ocasionado pela intolerância visceral que tomou conta da “gente ordeira e virtuosa” ante a presença nas praias da zona sul de jovens “com negros torsos nus” provenientes das favelas, mais precisamente das “quebradas da Maré”, do Arará, do Caxangá, da Chatuba, do Irajá, da Penha, do Jacarezinho, muitas das quais já haviam sido cantadas em “Subúrbio”, canção que integra o disco “Carioca” e nos revela que até mesmo Jesus, mais precisamente a estátua do Cristo redentor, volta a elas suas costas.
 
Embarcado nessa situação histórica, Chico demonstra a insanidade que a envolve e, com sua peculiar argúcia e privilegiada lucidez, lança luz por entre os escombros dos ideais civilizatórios transfigurados em barbárie pelo projeto democrático liberal-capitalista, que tranquilamente convive com autênticos refugiados transurbanos, cujas caravanas para fugir temporariamente do calor e da miséria dos morros em que estão confinados, em busca da beleza do mundo, do “mar turquesa à la Istambul”, provocam a ira de outros concidadãos.[3]
 
E o mais interessante é que o artista encontra alguns destroços da ruína civilizacional nos navios negreiros com os quais se forjou a empreitada colonial e na recente catástrofe humanitária dos refugiados transnacionais no mar mediterrâneo, cujas caravanas de muçulmanos tipo suburbanos, com “Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar” em busca de paz e vida digna na Europa, engendra a repristinação de ideais fascistas, aparentemente sepultados no pós-guerra mundial, fortalecendo a extrema-direita no espectro político.
 
O mesmo sol que refletiu na lâmina de um árabe e turvou a visão e o juízo de Meursault em uma praia mediterrânea na Argélia, no clássico O estrangeiro, romance festejado de Albert Camus, “bate na moleira”, “estoura as veias”, produz suor que “embaça os olhos e a razão” dos cidadãos de bem da cidade maravilhosa à beira-mar.[4]
 
O álibi que não serviu para a absolvição de Meursault no tribunal do júri, provocando risadas entre os jurados e espectadores da sessão de julgamento quando em seu interrogatório o herói absurdo explicou que matou o árabe por causa do sol,[5] jamais poderia ser invocado pela “gente ordeira e virtuosa”, que, de maneira refletida e meditada, vitupera os pobres, faz apologia a espancamentos e linchamentos, exorta, enfim, a polícia a atuar à margem da legalidade como aparelho de guerra para deter “esses estranhos”.
 
Os apelos “pra polícia despachar de volta/ O populacho pra favela/ Ou pra Benguela, ou pra Guiné” não encontram ouvidos moucos. Em setembro de 2015, por exemplo, à revelia dos direitos e garantias fundamentais especiais das crianças e dos adolescentes, cuja força de lei é oriunda da Constituição da República, dos tratados internacionais de direitos humanos e do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, jovens de diversas caravanas advindas da zona norte com destino ao “jardim de Alá” foram coletivamente abordados e apreendidos pela polícia fluminense sem qualquer suspeita de prática de ato infracional, mas tão somente por fazerem uso de determinadas linhas de ônibus cujo destino final era o mar azul da zona sul.
 
O estado de exceção, que para o “populacho” é regra permanente, ganhou visíveis contornos com a desaplicação pelos agentes de segurança pública de direitos fundamentais especiais titularizados por jovens “suburbanos tipo muçulmanos”. A relativa normalidade democrática só foi retomada após a intervenção pela via judicial da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que conseguiu suspender a atuação da polícia militar, gizando-a, ao menos formalmente, aos estritos parâmetros legais[7].
 
De acordo com o filósofo Giorgio Agamben, o estado de exceção se tornou o paradigma de governo dominante na política contemporânea a partir da criação voluntária por parte dos Estados chamados democráticos de um estado de emergência permanente que permite, através de uma guerra civil legal, eliminar inimigos políticos e cidadãos não integráveis ao sistema político, à semelhança do que faziam os regimes totalitários.[8]
 
Se para as potências mundiais o inimigo a ser combatido é o terrorista, muitas vezes amalgamado à figura do árabe e do muçulmano, para países periféricos com passado colonial como o Brasil, o inimigo compõe-se de habitantes dos subúrbios, muitos dos quais herdeiros dos negros e indígenas cujas carne e alma foram trituradas com violência nos “moinhos de gastar gente” que forjaram esta nação.[9] Daí a identificação quase automática que Chico faz entre nossos suburbanos e os muçulmanos em geral.
 
É relevante notar que nos campos de concentração nazistas, a mais perfeita realização do estado de exceção, os prisioneiros privados de qualquer dignidade, cujo estado de desnutrição tornavam-nos cadáveres ambulantes, mortos-vivos enfermos que permaneciam acocorados parecendo árabes em oração, eram denominados “os muçulmanos”. Viventes no umbral entre o humano e o inumano, vida nua matável e sacrificável sem quaisquer consequências jurídicas, os habitantes dos campos foram destituídos até mesmo da indelegável experiência da morte no processo de fabricação em série de cadáveres.[10]
 
É essa espécie de tanatopolítica, cálculo do poder sobre a morte, vocalizada em bordões indecorosos como “Tem que bater, tem que matar”, que perigosos setores da sociedade brasileira buscam dispensar aos nossos suburbanos. E se a morte não lhes advir por espancamentos ou linchamentos por milícias privadas, ou ainda nos combates da guerra às drogas, que sejam despachados para a “zoeira dentro da prisão”, para morrerem em guerras de facções criminosas, como bode expiatório em rebeliões malsucedidas ou mesmo vagarosamente como lixo biodegradável.
 
Foi sobretudo com muçulmanos que Meursault se deparou no cárcere de Argel.[11] E Camus já havia se deparado com muitos deles quando jovem jornalista visitou um navio-prisão para fazer uma reportagem ao jornal Alger républicain, publicada em 1o de janeiro de 1938 sob o título Esses homens que apartamos da humanidade, na qual concluíra que o horror do destino singular e definitivo daqueles prisioneiros decorria justamente do fato de que, como no caos prisional brasileiro, era sem qualquer recurso.[12]
 
Talvez tenha sido para aqueles presos muçulmanos, ou mesmo para os presidiários brasileiros que encontrou na penitenciária do Carandiru, em visita conduzida por Oswald de Andrade,[13] durante a viagem ao Brasil em 1949, que Camus voltou seu pensamento em 1957 ao proferir seu discurso de recebimento do prêmio Nobel de literatura: “… o silêncio de um preso desconhecido, abandonado às humilhações do outro lado do mundo, basta para retirar o escritor do exílio, cada vez, ao menos, que ele consegue, em meio aos privilégios da liberdade, não esquecer este silêncio e fazer retê-lo pelos meios da arte”.[14]
 
Para Camus, o autêntico artista, embarcado na galera de seu tempo, é uma testemunha da liberdade, que se coloca ao lado daqueles que sofrem a história e dela desaparecem sem deixar rastros, buscando transcendê-la ao traduzir com sua arte a dor e o sofrimento dos homens cuja dignidade não perderam nem diante da mais completa humilhação:
 
“Em sua mais alta encarnação o gênio é aquele que cria para que seja honrado, aos olhos de todos e a seus próprios olhos, o último dos miseráveis no fundo da cela mais escura. Por que criar se não for para dar um sentido ao sofrimento, nem que seja para dizer que ele é inadmissível? A beleza surge nesse momento dos escombros da injustiça e do mal. O fim supremo da arte é então confundir os juízes, suprimir toda acusação e tudo justificar, a vida e os homens, em uma luz que não é a da beleza porque é a da verdade”.[15]
 
Chico Buarque encarna magnificamente esse ofício ao honrar com sua música os desvalidos, os marginais, as Genis, os negros, os operários, as mulheres, os homossexuais, os sem-terra, os presidiários, os refugiados, as crianças abandonadas etc.
 
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Redação

4 Comentários

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  1. as…

    O problema de Chico Buarque , é que na Política, escolheu o lado errado. Apostou no velho Caudilhismo, “Lobo em pele de cordeiro”. Imbecilidades e ilusões que abestalharam e doutrinaram uma geração dos anos 60, que não consegue mais sair de lá. Ficaram aprisionados às suas adolescências e juventude. Crêem que queimar um “baseado” tem o mesmo apelo da rebeldia daqueles anos, ao invés de enxergarem a tragédia da epidemia de saúde pública que isto se tornou. É assim na Política. Como citou uma matéria aqui há alguns dias, o Fanatismo impede que estes extremistas (esquerdopatas) possam aceitar a opinião de contrários. Eles estão convencidos que tem poder até sobre a opinião soberana destas pessoas. Explica-se a ditadura impositiva do alto para baixo de eleições obrigatórias, reeditada numa Constituição farsante que criaram. Agora ampliando-se ainda mais o controle do Estado com Biometria Obrigatória. O Estado Obrigatório e Impositivo. Alguma semelhança com sonhos púberes dos anos 60? Alguma semelhança com os anos de ouro da juventude de Chico Buarque? O Brasil é de muito fácil explicação. 

  2. Resumão

    Vânia, tudo o que foi dito acima, com brilhantismo e erudição acadêmica, com direito a copiosas citações e rodapés, ouvi de forma simplificada de um amigo no dia 6 de setembro, na rodovia Airton Sena, quando estávamos a caminho de São Luiz do Paraitinga. Botei o CD para tocar quando saímos, quando chegou nessa música, o jornalista e editor Jorge Henrique Bastos falou do livro O Estrangeiro, do Camus, que serviu de base para a letra do Chico. Citou o enredo do livro, o julgamento e o pretexto para o assassinato: foi o sol. Só pode ser o sol. Explicou tudo, de forma sintética e acessível. Só pode ser o sol. O cabra pegou aqueles episódios do Rio, que geraram protestos e pedidos de cobrança de ingressos para acessar as praias da zona sul, mais o Camus e deu nisso. Chico Buarque não tem explicação. Chico é fueda. 

  3. Lava a alma, Chico

    Existe um povo que a bandeira empresta
    P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
    E deixa-a transformar-se nessa festa
    Em manto impuro de bacante fria!…
    Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
    Que impudente na gávea tripudia?
    Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
    Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

    [video:https://youtu.be/T4TsQBF5LkQ%5D

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