Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O espectro do gnosticismo ronda a cultura na animação “The Painting”

Um espectro ronda a produção cultural contemporânea: o Gnosticismo. Não, não se trata de uma conspiração ou de alguma seita secreta que silenciosamente se espreitaria subliminarmente em filmes e animações. Trata-se de uma mudança de sensibilidade em relação à realidade e aos próprios produtos culturais que procuram representá-la, um senso mais metalinguístico e auto-referencial que questiona a representação e a própria natureza da realidade. A animação francesa “The Painting” (Le Tableau, 2011), dirigida por Jean- François Laguionie é um flagrante exemplo onde personagens fauvistas no interior de quadros em um empoeirado estúdio estão em busca do Pintor, numa evidente analogia com questões teológicas e filosóficas: ele existe? Retornará um dia para completar suas obras? Quem desenhou o Pintor?

De programas infantis como “Mister Maker”, passando por animações como “Hora de Aventura” e “Apenas um Show” ou quadrinhos como “Capitão Cueca”, até os filmes mais elaborados para adultos como “Matrix”, “Show de Truman” e “A Origem”, a sensibilidade é a mesma: ironia, auto-referência, discurso indireto, metalinguagem, uma espécie de autoconsciência dos personagens de que a narrativa em que estão imersos é ficcional, um constructo de algum autor, demiurgo ou entidade arbitrária, que algumas vezes quer lhes controlar e confinar.

A animação francesa de Jean-François Laguionie, “The Paiting” (Le Tableau, 2011) é um bom exemplo dessa sensibilidade contemporânea, além de ser uma ótima alternativa às animações computadorizadas das produções norte-americanas. A narrativa é centrada em um mundo no interior de um quadro em ambientes fauvistas ao estilo de Matisse e cacos de Chagall. É apenas mais um quadro entre vários que estão no atelier de um pintor, mas para os habitantes daquela tela é um cosmos fechado em si mesmo.

Apesar da beleza das cores, texturas e traços, percebemos que aquele mundo não é tão poético: possui uma rígida ordem social dividida em três castas: a elite formada pelos Toupins que habitam um castelo. São pinturas finalizadas e de estilo definido. Em seguida vêm os Pafinis, os “não terminados”: figuras não acabadas nas quais o pintor da obra não deu um acabamento final ou deixou de pintar um detalhe qualquer. E abaixo de todos, os Reufs, verdadeiros esboços vivos, personagens cujo pintor nem iniciou e dotados apenas de linhas e contornos de lápis.

Os Toupins são arrogantes. Os mais jovens praticam cruéis jogos de caça aos Reufs no meio das florestas que circundam o castelo situado no alto de um monte. Vivem em constantes festas, enquanto o seu rei chamado de “Grande Lustre” defende a necessidade da manutenção da ordem desigual como um destino atribuído pelo Pintor (Deus?) do mundo em que vivem.

A ordem das castas é perturbada pelo amor proibido entre um Toupin sensível chamado Ramo, e uma Pafini com um rosto não terminado (uma espécie de Mona Lisa em estilo Mondigliani) chamada Claire. Ramo acredita que um dia O Pintor retornará para terminar sua obra inacabada, instaurando a igualdade. Mas os Toupins ridicularizam a ideia já que estão decididos a manter seus privilégios no mundo daquele quadro.

Decidido em provar que está certo, Ramo organiza uma expedição (formada pela melhor amiga de Claire, Lola, e um mal humorado Reuf) para encontrar O Pintor e perguntar para ele porque não acabou a obra. Eles terão que penetrar em uma região tabu do quadro, uma floresta negra que seria habitada por flores carnívoras. Lá encontrarão a moldura e o fim do quadro (ecos de filmes como “O Décimo terceiro Andar” e a sequência final de “Show de Truman”, onde Jim Carey vai até o limite da cenografia do gigantesco estúdio do reality show), numa sequência repleta de simbolismos cosmológicos e teológicos.

O Pintor é um demiurgo

“Ele pode nos destruir!”, exclamam chocados Ramo, Lola e Reuf ao verem no estúdio empoeirado e aparentemente abandonado do Pintor, diversas telas rasgadas, queimadas ou borradas como trabalhos mal sucedidos que o Pintor tivesse jogado fora e esquecidos em um canto. Novamente uma sequência de significados teológicos, só que dessa vez com conotações gnósticas: o encontro do homem com o seu próprio criador poderá ser frustrante, ao descobrir Nele a figura de um arbitrário Demiurgo. Tema recorrente na cinematografia atual, como na ficção científica de Ridley Scott “Prometheus” (2012) onde astronautas vão em busca dos “Engenheiros” da raça humana e apenas encontram em um planeta distante morte e “deuses” tão desiludidos como o próprio ser humano. Assim como em “Blade Runner” (1982), do mesmo diretor, onde o replicante Roy vai ao encontro do seu engenheiro clamando por mais tempo de vida, e encontra uma arrogante e arbitrária figura que passa o tempo jogando xadrez no alto de um gigantesco prédio da Tyrrell Corporation.

Ou ainda no primeiro filme da trilogia “Toy Stories” onde Buzz Lightyear descobre chocado que ele é mais um brinquedo feito em série por uma fábrica em Taiwan, ao ver a si mesmo na TV em um comercial.

Mais que arbitrário e insensível (ao destruir um quadro, na verdade o Pintor está destruindo mundos inteiros), os aventureiros descobrem uma o auto-retrato do Pintor em uma tela: entram na tela e descobrem através do ícone que, na verdade, o Pintor é inseguro, melancólico e cansado de conviver consigo mesmo. A pior descoberta possível sobre um Deus que, achavam, viria um dia completar a sua criação e livrar o mundo de um sistema cruel de castas.

“Na casa de meu Pai há muitas moradas”

Surpresos, o trio de aventureiros descobre que o seu quadro é apenas um dos mundos no interior do estúdio do Pintor: há o quadro da odalisca seminua, a pintura de uma batalha da qual resgatam um garoto que toca um tambor militar, um quadro de um Harlequim e um autoretrato do Pintor onde vão entrar e participar de um carnaval em Veneza etc.

Se na animação “Monstros” (2001) da Pixar a ideia de uma pluralidade de mundos e dimensões era apenas sugerida (as múltiplas portas dimensionais através das quais os monstros sequestram os gritos de terror das crianças), em “The Paiting” é explícito: na casa do Pintor há muitos mundos, lembrando o célebre versículo bíblico do Evangelho de João (“Na casa de meu Pai há muitas moradas”). Novamente ecos da cosmologia sugerida pelo filme “O Décimo Terceiro Andar” onde o universo seria um supercomputador com diversos mundos simulados, um dentro do outro. O que remete à cosmologia gnóstica de Basilides (117-138 DC – Filósofo gnóstico de Alexandria, possivelmente originário de Antioquia) de um universo composto por 365 céus, um dos quais seria o nosso mundo comandado pelo Demiurgo (Yahweh, Jeová ou Javé).

Esse multifacetamento da realidade é magistralmente expressada pelas alterações de matizes, cores e técnicas de renderização a cada mudança de “mundos”: os intrépidos aventureiros que estão em busca do Pintor atravessam diferentes quadros do estúdio, cada um com paletas diferentes de cores, canvas e texturas diferentes, criando o aspecto de que a relidade é um dado perceptivo ou construído artificialmente. Diferente dos quadros, o estúdio do Pintor é renderizado digitalmente em estilo realístico fotográfico. Essas matizações de cores e texturas lembram filmes como “O Décimo Terceiro Andar” ou “A Vida em Preto e Branco” (The Pleasantville, 1998), onde os diferentes mundos virtuais adquirem diferentes qualidades de fotografia.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

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  1. O frances tornou-se uma

    O frances tornou-se uma lingua morta (ou acessivel apenas para quem tem um ap na avenue  foch) e, portanto, as pessoas nao sabem o que significa “le tableau”. 

    Ah! Mas em um pais bilingue como o nosso, todo mundo sabe o que significa “the painting”!!!

    Por que não traduzir “le tableau” por “o quadro”? 

     

    1. Porque se traduzir não fica

      Porque se traduzir não fica tão chique, Jayme.

      Fica pobre, meio largadão. No sentido cosmológico da epifania demiurga, evidentemente.

    2. Infelizmente “The Painting” é

      Infelizmente “The Painting” é como foi titulado o filme no IMDB (Internet Movie Data Base), é por esser nome que os distribuidores “Ocidentais” (norte-americanos) irão distribuir os DVDs desta animação.

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