Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O futuro já está entre nós no filme “Metropia”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

Em um futuro não muito distante a Europa foi interligada por uma massiva rede de metro, o Estado sumiu e foi substituído por uma gigantesca corporação após o crash financeiro e a crise energética e climática. Enquanto isso, as pessoas isoladas nas suas casas se divertem vendo um game show televisivo com refugiados que disputam visto para legalizarem a situação na Europa. Quem perde é ejetado para o mar. Parece com algo familiar? Essa é a animação sueca “Metropia” (2009) uma paradoxal ficção científica na qual a sensação de futuro deixa de existir. “Metropia” é uma “hipo-utopia”: o futuro já está entre nós, no presente. Diferente das tradicionais distopias, essa animação é uma “hipo-utopia”, a exemplo de filmes como “Distrito 9”: o futuro nada mais é do que uma projeção hiperbólica das mazelas do presente – precarização do trabalho, deterioração urbana, lavagem cerebral midiática, racismo e xenofobia. 

Quando a crítica especializada se defronta com a atual onda de filmes e animações sci-fi cujas narrativas são ambientadas em mundos pós-apocalípticos e totalitários, sempre a referência é 1984 de George Orwell ou Admirável Mundo Novo de Huxley. Esses filmes sempre são analisados como meras atualizações dessas clássicas obras literárias sobre distopias.

Mas os críticos parecem passar batidos para uma novidade fundamental que os atuais filmes sci-fi apresentam: eles não são mais “distópicos”, no sentido atribuído por Orwell e Huxley. O que temos hoje vai além das distopias – são as hipo-utopias – sobre as distinções entre utopia, distopia e hipo-utopia leia artigo científico desse humilde blogueiro na revista Cosmos & Contexto – clique aqui.

São filmes sci-fi onde a alta tecnologia (ícone característico do gênero) convive com todas as mazelas da sociedade atual, porém exageradas pela estética expressionista e surrealista – favelas e cortiços, deterioração urbana, precarização do trabalho, lixo que se confunde com seres humanos que necessitam ser controlados, confinados ou descartados. Principalmente a figura do imigrante, do refugiado e do estrangeiro.

O filme Distrito 9 (2009) talvez seja a face mais visível dessa tendência – imigrantes ilegais (aliens vindos de outros mundos), xenofobia, racismo e intolerância dos tempos atuais projetados no futuro através de uma estética hiperbólica. O Apartheid da África do Sul atual projetado no futuro em tons de humor negro e ficção científica. 

 A animação sueca Metropia (2009) repete esses mesmos traços da hipo-utopia atual. Diferente da distopia (onde ainda há um “topos” chamado “futuro” como mundos diferentes dos atuais ou, pelo menos, advertências sobre no quê o mundo atual pode se tornar), na hipo-utopia (no sentido de “futuro insuficiente”) não há mais futuro: o porvir nada mais é do que a projeção dos problemas atuais – a diferença é que no “futuro” eles se transformarão em pesadelos.

Em Metropia temos todas as mazelas sócio-econômicas e humanas da Europa atual: um mundo pós crash financeiro (como a atual crise da Zona do Euro), a Europa integrada por uma vasta rede de metrôs em alta velocidade (a integração financeira do Euro), o Estado desapareceu e foi substituído por uma gigantesca corporação (afinal, não é esse o sonho do neoliberalismo atual?) e um programa de TV chamado “Asylum” no qual telespectadores se divertem vendo refugiados em um game show lutando por um visto que lhes permita entrar legalmente na comunidade europeia. 

Aqueles que perdem têm a cadeira ejetada e caem no mar para morrerem – uma projeção em humor negro da imagens diárias que assistimos de adultos e crianças refugiadas morrendo afogadas para tentar chegar à Europa. 

A hipo-utopia presente em filmes como Metropia certamente confirma o pressentimento do escritor underground e maldito Charles Bukowski: para ele, a ficção se tornaria cada vez mais insuficiente em um mundo cujos acontecimentos reais são tão estranhos e bizarros que superam qualquer imaginação literária.

O Filme

Estamos na Europa de 2024. As mudança climáticas fizeram desaparecer as estações do ano reduzindo os céus a um cinza uniforme e constante. O espaço público foi reduzido a lixo, carcaças de automóveis nas ruas e ruínas – todos se escondem em seus pequenos apartamentos e trabalham em uma espécie de gigantesco call center ou telemarketing precarizado. 

A única diversão é o game show televisivo Asylum: todos se divertem vendo refugiados serem ejetados para o mar…

O único meio de transporte lícito é a gigantesca rede de metro trans-europeia. Andar de bicicleta é proibido.

Roger (voz de Vincent Gallo) é um “cara normal” (como insiste em repetir”) que vive em Estocolmo. Roger vive frustrado na sua baia do telemarketing, suspeita que sua namorada o trai com o melhor amigo e começa a ter uma repentina queda amorosa pela garota-propaganda de um comercial do shampoo Dangst – Nina, voz de Juliette Lewis.

Roger secretamente se locomove de bicicleta de casa para o trabalho, porque acredita que algo estranho está acontecendo no Metro: é lá que Roger ouve mais claramente uma “voz interior” que alimenta todos os seus medos, segredos e desejos. 

Ao mesmo tempo, em toda cidade, vemos outdoors e cartazes com uma enigmática mensagem: “Ouça sua voz interior”.

A busca em descobrir a origem dessa estranha voz, levará Roger a uma conspiração envolvendo Governo, a corporação Trexx (gigantesca transnacional que controla o Metro, além de fabricar o shampoo Dangst e produzir alimentos) e um bizarro dispositivo de lavagem cerebral, no sentido mais literal do termo.

A hipo-utopia em Metropia

A primeira coisa que salta aos olhos nessa animação é que utiliza uma técnica diferente de tudo que o leitor já viu – personagens e cenários são feitos a partir de fotos reais para depois serem manipulados em modelos 3D em computação gráfica em um efeito deliberadamente expressionista e estranho. Um misto de realismo, rigidez e distorção, o suficiente para tornar o filme inexplicavelmente desconfortável.

Ao longo da animação, parece que assistimos a uma nova versão de 1984 através da sensibilidade de Terry Gilliam em Brazil, O Filme (1982). Porém há algo a mais, estranho e bizarro em Metropia: parece que estamos assistindo a eventos que acontecem na atualidade, porém com tintas de exagerado humor negro. É o que torna Metropia  um filme hipo-utópico, a exemplo de Distrito 9.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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