Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Som do Ruído” dispara bombas musicais contra indústria do entretenimento

Apesar de ter nascido em uma família de longa tradição de músicos famosos, Amadeus é um investigador de polícia que odeia música. Mas ironicamente destinam a ele o caso mais difícil da sua vida: seis bateristas excêntricos, liderados por um gênio musical anarquista, decidem lançar uma ataque em escala sonora transformando torres de alta tensão, salas de cirurgia e agências bancarias em inesperados instrumentos de música e ritmos. Bandidos de uma nova geração: terroristas que explodem bombas musicais. Esse é a produção sueca “O Som do Ruído” (Sound of Noise, 2010), claramente inspirado no manifesto musical futurista de 1913 “Arte dos Ruídos”. O filme é uma comédia e, ao mesmo tempo, um manifesto estético-político que mostra como a música pode produzir conformismo. Mas também no diz como é possível reagir através de guerrilhas sonoras-musicais que nos libertem da música produzida pela indústria do entretenimento.

Quando falamos em filmes gnósticos imaginamos dramas ou thrillers de ficção científica cheios de ação como Matrix ou A Origem, ironia social como em Show de Truman ou intrincadas narrativas que confundem a ilusão com a realidade como em Ilha do Medo. Os simbolismos gnósticos são pesados e épicos ao denunciarem que a realidade é ao mesmo tempo ilusão e prisão.

Um filme que combina comédia, música e romance pode também lidar com temas gnósticos profundos? Assistindo ao filme sueco O Som do Ruído (Sound of Noise, 2010) podemos chegar a uma surpreendente conclusão positiva.  Sim, a música e o som que nos rodeiam podem também modelar a nossa experiência, criar o senso comum e nos faz aderir a valores sociais, produzindo conformismo ao status quo.

Assim como o cinema nos mostrou que máquinas, alienígenas ou drogas podem nos induzir a realidades que conspiram contra nós, também a música possui o poder de nos fazer aderir a uma determinada ordem. E podemos reagir, criando verdadeiras guerrilhas sonoras-musicais que nos libertem da música produzida pela indústria do entretenimento.

 

Esse é o tema do filme O Som do Ruído, onde os protagonistas nos mostram o potencial musical de objetos comuns do dia-a-dia tidos geralmente como não musicais. Ao longo do filme acompanhamos performances de músicos de vanguarda que procuram extrair ritmos, percussão e harmonias de situações  e instrumentos mais inesperados: equipamentos de uma sala de cirurgia com um paciente sedado; equipamentos pesados de construção como escavadeiras e britadeiras; linhas das torres de alta tensão; gavetas, carimbos e máquinas de calcular de uma agência bancaria etc.

O filme

O Som do Ruído abre com uma sequência que nos oferece uma pequena amostra do experimentalismo sonoro que aguarda o espectador: Sanna (Sanna Persson) guia uma van enquanto Magnus (Magnus Börjeson) toca em um kit de bateria na parte traseira – os músicos procuram estabelecer uma áspera sinfonia instantaneamente fugaz entre o ritmo da bateria e os sons do carro e da estrada – tudo com um metrônomo fazendo a marcação do tempo em cima do painel da van. A direção errática da van faz a dupla entrar em conflito com as autoridades – passam a ser perseguidos por um policial em uma moto.

Sanna e Magnus são os cérebros de um grupo de músicos anarquistas cujo projeto é detonar uma bomba musical na cidade conservadora e “contaminada” pela música clássica e pela “música de elevador” que toca nas pequenas caixas de som colocada nos postes. A obra-prima chama-se “Música para uma Cidade e Seis Bateristas”: “essa é a nossa bomba para uma cidade contaminada por uma música de merda”, declara desafiadoramente Magnus .

A peça será formada por quatro movimentos, na verdade performances ou intervenções em espaços urbanos ou privados: primeiro chamado “Doctor, doctor, gimme gas in my ass”, onde os percussionistas tiram harmonias e ritmos de máquinas e ferramentas cirúrgicas, além do corpo do próprio paciente sedado que faria uma cirurgia de hemorroida – veja abaixo a sequência completa;

Segundo, “Money 4 U Honey”, onde invadem mascarados um banco, “armados” com um metrônomo. Pegam os seus “reféns” para serem a plateia de uma performance musical tirada de carimbos e máquinas de calcular;

Terceiro, “Fuck the Music”, onde escavadeiras e britadeiras fazem ritmos e percussão com o tempo marcado por um metrônomo, para interromper a execução de uma sinfonia de Haydin (ironicamente, um compositor que ignorava a percussão nas suas composições);

E por último “Eletric Love”: os músicos tiram som e ritmos das linhas de alta tensão de torres que repentinamente se transformam em gigantescas partituras e os performers notas musicais.

Um policial gnóstico

E perseguindo esses músicos anarquistas que pretendem detonar com o “bom gosto musical” da cidade está um investigador de polícia chamado Amadeus Warnenbring (Bengt Nilsson). Ironicamente, o único membro de uma família de maestros e músicos que não foi dotado de dom artístico: odeia música e se tornou a ovelha negra da família.

Tudo começa com a descoberta de um metrônomo na van do início do filme, após a fuga do grupo de anarquistas musicais. A partir daí, a narrativa transforma-se em um jogo de gato e rato: Amadeus fica obcecado em prender os músicos, justamente pelo seu ódio à música que o fez se tornar o patinho feio de uma família de artistas famosos.

 

Mas tudo muda, quando percebemos na construção do personagem Amadeus a fusão de dois personagens gnósticos: o Estrangeiro e o Detetive – sobre o simbolismo gnóstico desses personagens clique aqui. Aos poucos percebemos que o enigma que Amadeus tenta resolver é na verdade o enigma da sua própria vida: ele possui uma deficiência auditiva que o torna seletivo a determinados sons – típica característica do Detetive: na solução do enigma policial está a solução do próprio enigma existencial do Detetive.

E o Estrangeiro: Amadeus aparentemente odeia toda e qualquer música, músicos e instrumentos musicais. Ele se sente um Estrangeiro dentro da sua própria família e sociedade: a cidade é rodeada de música clássica e música de elevador (“muzak”) que toca nas caixas de som públicas. Mas aos poucos, Amadeus começa a se sentir estranhamente atraído pela música proibida daquele grupo anarquista cujos músicos foram expulsos do conservatório musical da cidade – não é que Amadeus não goste da música, mas sim daquela música clássica e comercial.

A gnose através do silêncio

Por tanto, o filme O Som do Ruído começa explorando dois temas gnósticos: o personagem Estrangeiro/Detetive e a construção de realidade ilusória através de uma paisagem sonora que, para os habitantes da cidade escandinava, é a única possível.

Mas além disso, o espectador perceberá que o filme aborda um tema mais profundo: a gnose através do silêncio. Amadeus no fundo busca o silêncio. Sua disfunção o auditiva é um sintoma da recusa em aceitar um cotidiano preenchido por aquela espécie de música.

O tema central do filme é a paradoxal atração de Amadeus pelo silêncio ao mesmo tempo em que admira a música rica em ritmos e percussão tirada de objetos não musicais da sinfonia vanguardista “Música para a Cidade e Seis Bateristas”.

Desde que o compositor futurista Luigi Russolo lançou o manifesto “A Arte dos Ruídos” em 1913, a música foi inserida na explosão industrial do início do século XX. Em um novo ambiente urbano repleto de novos objetos os limites estabelecidos para a instrumentação, melodias, harmonias e ritmos deveriam ser quebrados. Então, Russolo concebeu instrumentações inéditas como o “órgão de ruídos” (“intonarumori”) feitos com caixas, funis e alavancas.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. E o paciente do vídeo acima é
    E o paciente do vídeo acima é um político famoso que foi, de acordo com os suecos, violado no hospital.
    Eu assisti esta cena por acaso e depois tive que assistir o filme.
    Muito bom.

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